Passei o fim de semana em Curitiba, acompanhando um filho que vai passar um ano fazendo intercâmbio na cidade.
Aproveitei para visitar, domingo à noite, na rua Marechal Deodoro, um prédio que pertencia ao Banestado, o ex-banco do Estado do Paraná, que faliu e cuja massa foi adquirida pelo banco Itaú. O edifício, vazio há tempos, foi invadido e ocupado, quase dois meses atrás, pelo Movimento Nacional de Luta pela Moradia. Mudaram-se para lá, de mala e cuia, 40 famílias.
Enquanto o perfume de uma boa sopa caseira enchia o ar e crianças brincavam por todos os lados, conversei com Anselmo Schwertner, 39, membro da coordenação estadual e nacional do movimento.
Entendi o seguinte: o MNLM é mais que um projeto de assentamentos urbanos. Não se trata apenas de forçar a barra para que os sem-teto do país encontrem, nas cidades, condições aceitáveis de moradia. A idéia é produzir uma "reforma urbana".
Pois bem, o que seria uma reforma que nos tornasse mais urbanos?
Imagine que, pelos diferentes bairros (incluindo os mais privilegiados), prédios abandonados sejam transformados em moradias dignas para cidadãos com condições precárias de habitação: não só favelados ou moradores de rua mas também pessoas forçadas a viver a distâncias atrozes de seu lugar de trabalho, jovens famílias que não conseguem constituir um lar independente do de seus pais etc. Essa transformação urbana, por si só, teria um mérito. Qual?
As diferenças sociais, nas cidades brasileiras, se organizam, geralmente, numa segregação habitacional. A "senzala" pode ser identificada com grandes áreas da periferia (modelo paulista) ou com favelas que se insinuam nas áreas ditas nobres (modelo carioca). De qualquer forma, o lugar ou a qualidade da moradia funcionam como atributos de castas separadas. Diga-me onde e como você mora e saberei não como você está, mas se você é dos meus ou não.
Uma convivência efetiva pediria que houvesse um denominador comum de conforto. Nesse caso, as experiências cotidianas de cruzar-se, de dizer-se bom-dia, de comprar pão na mesma padaria e, idealmente, de levar os filhos para uma mesma escola pública (se fosse, como deveria, a melhor aos olhos de todos) alimentariam o sentimento de que as diferenças econômicas não são destinos, mas contingências sob as quais nossas vidas se assemelham.
Claro, se, para ser realizado, o projeto de uma convivência citadina contasse só com traslados e mudanças, ele seria singularmente ineficiente. Os cariocas observariam que essa redistribuição topográfica resultaria logo na mudança maciça do crime organizado do morro para o asfalto (como se os dois já não estivessem suficientemente próximos). E os paulistas diriam que é só o que faltava, semear por Higienópolis e pelos Jardins uma série de prédios que produziriam microclimas assustadores -para quê?
Entendo as objeções dos hipotéticos paulistas e cariocas. Aliás, o próprio MNLM também parece entender: seu projeto não consiste apenas em ocupar e distribuir pelas cidades residências para os mais necessitados. A idéia é que os assentamentos sejam, para as famílias, a ocasião de uma saída da marginalidade social e econômica. Como?
Imagine que os prédios multifamiliares consigam funcionar como cooperativas de produção de bens ou serviços que correspondam a uma necessidade do mercado. Claro, não é fácil: trabalhadores pouco qualificados deveriam ser formados, seriam necessários quadros de gestão cooperativa etc. Mas os atrativos do projeto são indiscutíveis: uma massa consistente de desfavorecidos viria integrar-se, ao mesmo tempo, no tecido urbano e nas fileiras das pequenas classes médias.
Existem pesquisas demonstrando que, quando, num bairro pobre, a percentagem de habitantes de classe média desce abaixo de 5% ou 6%, aumentam vertiginosamente os índices de marginalidade (gravidezes indesejadas de menores, desistências escolares, delitos etc.). Por falta de convivência com faixas mais privilegiadas, o grupo carente se percebe como uma tribo à parte e, portanto, sem compromisso com os valores da sociedade como um todo.
Não deveria ser impossível mostrar a recíproca. Quando, num bairro rico, a percentagem de habitantes pobres desce abaixo de um limite definido, aumentam vertiginosamente os índices da estupidez social (falta de solidariedade, decadência dos ideais comunitários, culto do privilégio exclusivo etc.).
Em suma, a convivência urbana das diferenças sociais é crucial para manter um sentimento básico de valores e destinos compartilhados. Mas essa convivência não é a simples proximidade física de morro e asfalto: ela pressupõe, por assim dizer, uma moradia comum.
Resta sonhar com duas coisas improváveis: que a separação social não tenha tornado os privilegiados irremediavelmente incapazes de solidariedade e que o movimento de luta pela moradia não adote uma ideologia rançosa de Guerra Fria (no estilo atual de João Pedro Stédile), confirmando assim uma fratura social que deveríamos resolver na reinvenção de uma comunidade.
31 julho 2003
24 julho 2003
Escolher uma profissão
Meu amigo Jean Bergès é psicanalista e foi, durante anos, chefe do serviço de neuro- psiquiatria infantil do hospital Sainte-Anne, em Paris. Aprendi com ele muitas coisas valiosas. Uma, em particular, vai me servir hoje.
Segundo a época e o lugar de nossa infância, fomos alfabetizados de maneiras diferentes. Em particular, aprendemos a reconhecer as letras de um jeito, por assim dizer, abstrato ou então com o auxílio de analogias e comparações. Ou colocaram um "m" no quadro e nos mandaram reproduzi-lo até acabar a tinta. Ou excitaram nossa imaginação para que memorizássemos mais facilmente; o "m" é uma ponte com três pilares sobre um grande rio, ou então é um velhinho que precisa de bengala. Você não quer que a ponte nem o velhinho se espatifem no chão? Então escreva direito, com três perninhas.
Pois bem, Bergès verificou que as crianças alfabetizadas com a ajuda de comparações carinhosas encontram com maior frequência (não sempre, longe disso) dificuldades de leitura e de escrita.
Entende-se por quê: se o "m" tem pernas e se, por alguma razão, eu tiver problemas com as pernas, minha capacidade de reconhecer a letra "m" será comprometida.
Imagine que, na sua família, seja proibido mostrar as pernas. Na sua casa até as mesas vestem saia, para evitar tentações. Óbvio, se, na escola, a professora não se lançar em analogia nenhuma, a aula será chata: olhem aqui, este é o "m", com três linhas verticais, aprendam e ponto. Mas o que acontecerá, se ela, com as melhores intenções, afirmar que a letra "m" tem PERNAS?
Freud, em "Inibição, Sintoma, Angústia", não dizia diferente. Afirmava que nossas inibições surgem quando damos um valor excessivo (e, direta ou indiretamente, subjetivo e erótico) ao objeto de nossa atenção. Se quero aprender a tocar violão porque é o jeito decisivo de conquistar o amor da mãe ou da mulher de meus sonhos (esperando que não se trate da mesma), é mais provável que eu tenha câimbras incontroláveis a cada vez que toco no arco.
Lembrei-me disso ao encontrar um adolescente angustiado por aproximar-se da hora em que ele deve escolher faculdade e profissão, ou seja, no seu dizer, "o que fazer com a vida". Também nestes dias, li o livro "What Should I Do with My Life?" (O que Deveria Fazer com Minha Vida?), de Po Bronson (Random House).
Primeiro, o adolescente e sua incerteza dolorosa. Ele tinha consultado orientadores profissionais, que aplicaram os testes de praxe e indicaram as direções nas quais o jovem, provavelmente, se daria melhor. No entanto, o adolescente declarava que não queria escolher segundo suas competências, mas segundo seu desejo. Os profissionais, com razão, concordavam com essa atitude e exortavam (com cautela, claro): diga, então, qual é seu desejo, e vamos ver como ele se concilia com suas aptidões.
Problema: em matéria de profissão, nosso adolescente não sabe o que ele quer. Ele resiste a escolher segundo suas disposições, pois receia se engajar numa direção que não seja a de seu desejo. Também não quer definir seu desejo de maneira aproximativa. Quando criança, ele tinha aspirações, mas será que elas ainda valem? O que ele espera, hoje, da vida não sugere uma profissão definida. Gostaria, por exemplo, de ganhar "um dinheiro legal". Será que, então, ele está livre para escolher qualquer direção compatível com as tendências do mercado? Nada disso: o jovem sente uma verdadeira obrigação de escolher uma profissão que coincida especificamente com seu desejo. Mas qual desejo? Impasse.
Chego ao livro de Po Bronson, que é uma ilustração do imperativo cultural que persegue os jovens de nossos tempos. Bronson declara: escolher uma profissão significa decidir o que fazer com sua vida. Parcialmente falso: há vidas centradas ao redor da escolha profissional, e outras, não. Além disso, lembre-se da história do "m": quanto mais dermos relevância a uma escolha, tanto mais ela vai se tornar difícil. Segue a receita de Bronson: escolha uma profissão que corresponda a seu desejo. Com isso, o trabalho lhe será agradável, leve e proveitoso. Falso: fazer o que queremos não é garantia de facilidade nem de sucesso. De novo, vale a história do "m": por esse caminho, encontram-se complicações subjetivas e inibições.
Ninguém, há tempos, quer escolher uma profissão porque foi a do pai ou da mãe: o imperativo é "afirmar-se" de maneira independente. Também não cai bem ser engenheiro "só" porque a gente é bom de contas ou porque o mercado precisa. O imperativo, desde os anos 60, é que a escolha profissional obedeça à mesma regra da escolha amorosa. Siga seu desejo e seja feliz.
Um psicanalista pode observar, no mínimo, que esse imperativo cultural é fonte de sofrimentos (inúteis) por acarretar uma idéia falsa do desejo. Como tentei explicar ao adolescente atormentado, nosso desejo não está escondido no cerebelo (no estilo: procure e descobrirá). Ele é uma invenção que acontece a cada dia, a partir, certo, de nosso passado, mas também ao vento de encontros, oportunidades e acasos.
Segundo a época e o lugar de nossa infância, fomos alfabetizados de maneiras diferentes. Em particular, aprendemos a reconhecer as letras de um jeito, por assim dizer, abstrato ou então com o auxílio de analogias e comparações. Ou colocaram um "m" no quadro e nos mandaram reproduzi-lo até acabar a tinta. Ou excitaram nossa imaginação para que memorizássemos mais facilmente; o "m" é uma ponte com três pilares sobre um grande rio, ou então é um velhinho que precisa de bengala. Você não quer que a ponte nem o velhinho se espatifem no chão? Então escreva direito, com três perninhas.
Pois bem, Bergès verificou que as crianças alfabetizadas com a ajuda de comparações carinhosas encontram com maior frequência (não sempre, longe disso) dificuldades de leitura e de escrita.
Entende-se por quê: se o "m" tem pernas e se, por alguma razão, eu tiver problemas com as pernas, minha capacidade de reconhecer a letra "m" será comprometida.
Imagine que, na sua família, seja proibido mostrar as pernas. Na sua casa até as mesas vestem saia, para evitar tentações. Óbvio, se, na escola, a professora não se lançar em analogia nenhuma, a aula será chata: olhem aqui, este é o "m", com três linhas verticais, aprendam e ponto. Mas o que acontecerá, se ela, com as melhores intenções, afirmar que a letra "m" tem PERNAS?
Freud, em "Inibição, Sintoma, Angústia", não dizia diferente. Afirmava que nossas inibições surgem quando damos um valor excessivo (e, direta ou indiretamente, subjetivo e erótico) ao objeto de nossa atenção. Se quero aprender a tocar violão porque é o jeito decisivo de conquistar o amor da mãe ou da mulher de meus sonhos (esperando que não se trate da mesma), é mais provável que eu tenha câimbras incontroláveis a cada vez que toco no arco.
Lembrei-me disso ao encontrar um adolescente angustiado por aproximar-se da hora em que ele deve escolher faculdade e profissão, ou seja, no seu dizer, "o que fazer com a vida". Também nestes dias, li o livro "What Should I Do with My Life?" (O que Deveria Fazer com Minha Vida?), de Po Bronson (Random House).
Primeiro, o adolescente e sua incerteza dolorosa. Ele tinha consultado orientadores profissionais, que aplicaram os testes de praxe e indicaram as direções nas quais o jovem, provavelmente, se daria melhor. No entanto, o adolescente declarava que não queria escolher segundo suas competências, mas segundo seu desejo. Os profissionais, com razão, concordavam com essa atitude e exortavam (com cautela, claro): diga, então, qual é seu desejo, e vamos ver como ele se concilia com suas aptidões.
Problema: em matéria de profissão, nosso adolescente não sabe o que ele quer. Ele resiste a escolher segundo suas disposições, pois receia se engajar numa direção que não seja a de seu desejo. Também não quer definir seu desejo de maneira aproximativa. Quando criança, ele tinha aspirações, mas será que elas ainda valem? O que ele espera, hoje, da vida não sugere uma profissão definida. Gostaria, por exemplo, de ganhar "um dinheiro legal". Será que, então, ele está livre para escolher qualquer direção compatível com as tendências do mercado? Nada disso: o jovem sente uma verdadeira obrigação de escolher uma profissão que coincida especificamente com seu desejo. Mas qual desejo? Impasse.
Chego ao livro de Po Bronson, que é uma ilustração do imperativo cultural que persegue os jovens de nossos tempos. Bronson declara: escolher uma profissão significa decidir o que fazer com sua vida. Parcialmente falso: há vidas centradas ao redor da escolha profissional, e outras, não. Além disso, lembre-se da história do "m": quanto mais dermos relevância a uma escolha, tanto mais ela vai se tornar difícil. Segue a receita de Bronson: escolha uma profissão que corresponda a seu desejo. Com isso, o trabalho lhe será agradável, leve e proveitoso. Falso: fazer o que queremos não é garantia de facilidade nem de sucesso. De novo, vale a história do "m": por esse caminho, encontram-se complicações subjetivas e inibições.
Ninguém, há tempos, quer escolher uma profissão porque foi a do pai ou da mãe: o imperativo é "afirmar-se" de maneira independente. Também não cai bem ser engenheiro "só" porque a gente é bom de contas ou porque o mercado precisa. O imperativo, desde os anos 60, é que a escolha profissional obedeça à mesma regra da escolha amorosa. Siga seu desejo e seja feliz.
Um psicanalista pode observar, no mínimo, que esse imperativo cultural é fonte de sofrimentos (inúteis) por acarretar uma idéia falsa do desejo. Como tentei explicar ao adolescente atormentado, nosso desejo não está escondido no cerebelo (no estilo: procure e descobrirá). Ele é uma invenção que acontece a cada dia, a partir, certo, de nosso passado, mas também ao vento de encontros, oportunidades e acasos.
17 julho 2003
Vidas em quadrinhos
No cruzamento da rua 50 com a Broadway (esquina noroeste), em Manhattan, quando o clima permite, aparecem três bancas. Uma vende fruta, outra, cachorro-quente, e a terceira é mais complexa.
Há um estrado com telas verticais para expor revistas de histórias em quadrinhos da Marvel Comics. São exemplares dos últimos anos, oferecidos por US$ 3,50: "Hulk", "Spider-Man", "Captain America", "Daredevil", "Batman", "X-Men" e por aí vai. E, na continuação do estrado, há um tabuleiro de xadrez. Por 25 centavos (de dólar), você pode sentar numa das duas cadeiras e esperar que alguém se instale na sua frente para começar uma partida.
Não consigo me concentrar no meio da multidão de Times Square. Mas acho engraçado jogar xadrez na sombra, literalmente, das HQs da Marvel.
É uma espécie de metáfora da tendência dominante da narrativa popular contemporânea. Há super-heróis e vilões com aptidões e traços de caráter constantes e férreos como as regras que movimentam as peças no tabuleiro. E essas personagens se engajam em aventuras que são, a cada vez, um pouco diferentes, mas que fundamentalmente são iniciadas e acabam sempre de um jeito semelhante, repetindo-se como partidas de um mesmo jogo. Como o rei no xadrez, o protagonista morre, mas sobra-lhe vida suficiente para se erguer de novo e recomeçar igual na próxima. Ressalva: a combinatória das narrativas atuais é mais simples e limitada do que o jogo de xadrez.
Um dos maiores historiadores da arte do século 20, Erwin Panovsky, escreveu, em 1934, o ensaio "Style and Medium in the Motion Pictures" (Estilo e Meio no Cinema; republicado em "Three Essays on Style", MIT Press). Panovsky mostrava que o cinema não é herdeiro do teatro: desde o começo, deve sua maneira de narrar (cortando, mudando de plano, deslocando a câmara) às histórias em quadrinhos.
Na passagem de um conto para a tela, a fase intermediária não é a transformação da história em diálogos, mas sua adaptação para "graphic novel", história em quadrinhos. O tratamento cinematográfico de uma narração, segundo Panovsky, não é uma peça na espera de ser montada: são quadrinhos na espera de serem desenhados.
Quem não puder ler o texto de Panovsky assista a "Hulk" de Ang Lee, em que é (maravilhosamente) evidente o parentesco entre a montagem cinematográfica e o estilo gráfico dos quadrinhos.
Ora, a intuição de Panovsky fica, hoje, confirmada não só em matéria de estilo.
As histórias em quadrinhos, que pareciam perder seus leitores nos anos 60 e 70, triunfam nas telas de cinema. Nesse segundo sopro de vida, os quadrinhos contribuem bastante para impor ao cinema outra modalidade narrativa que lhes é essencial: a sequência de aventuras que manifestam e confirmam as aptidões, boas ou ruins, dos protagonistas.
Nessa perspectiva, opõem-se dois modelos narrativos. Há a história que acontece uma vez e pronto. E há a série tipo revistinha que, como o seriado televisivo, propõe regularmente novas peripécias de nosso herói e de seus inimigos.
Imagine que Umberto Eco, encorajado pelo sucesso de "O Nome da Rosa", escrevesse um "Nome da Rosa 2" ou mais. A série não seria o aprofundamento de uma história que agita um caldeirão de paixões humanas, da intolerância à sede de poder, passando pela luxúria etc. Ela seria, inevitavelmente, a composição e a confirmação progressivas da personagem de Guilherme de Baskerville, o frade detetive.
É banal afirmar que o modelo da série ou da revistinha é preferido por narrativas de segunda divisão: quem não sabe agitar a complexidade da realidade humana optaria por compor um protagonista com o qual fosse desejável identificar-se e, com ele, repetidamente, seduziria seus leitores. Ganância da indústria cultural, não é?
Mas resta entender qual é a razão do sucesso do modelo da revistinha, seja ele próprio da segunda divisão ou não. O que nos torna, em massa, bom público para as séries? Por que gostamos de reencontrar, mais e mais vezes, os super-heróis da Marvel Comics, James Bond, Indiana Jones, Lara Croft, Crocodilo Dundee e Freddy Kruger?
O fenômeno é provavelmente uma consequência da fraqueza subjetiva moderna. A questão de quem somos e a que viemos está sempre em suspenso: depende do olhar dos outros, que nada garante. Nessa incerteza permanente, por que encarar abismos enigmáticos do drama humano?
Melhor sonhar com heróis que voltam sempre iguais a si mesmos. Afinal, tudo seria mais fácil se, em nossas vidas, tivéssemos a extraordinária e repetida consistência das personagens dos quadrinhos.
PS: Os investidores que, desde 2000, perderam feio na crise de Wall Street deveriam ter consultado um crítico da cultura. Aprenderiam que nunca é errado investir na satisfação das necessidades impostas pelas fraquezas de nosso narcisismo.
De fato, quem, três anos atrás, comprou ações da Mattel (fabricante da Barbie) dobrou seu capital, enquanto o mercado desmoronava. E quem comprou ações da Marvel Comics triplicou seus haveres.
Há um estrado com telas verticais para expor revistas de histórias em quadrinhos da Marvel Comics. São exemplares dos últimos anos, oferecidos por US$ 3,50: "Hulk", "Spider-Man", "Captain America", "Daredevil", "Batman", "X-Men" e por aí vai. E, na continuação do estrado, há um tabuleiro de xadrez. Por 25 centavos (de dólar), você pode sentar numa das duas cadeiras e esperar que alguém se instale na sua frente para começar uma partida.
Não consigo me concentrar no meio da multidão de Times Square. Mas acho engraçado jogar xadrez na sombra, literalmente, das HQs da Marvel.
É uma espécie de metáfora da tendência dominante da narrativa popular contemporânea. Há super-heróis e vilões com aptidões e traços de caráter constantes e férreos como as regras que movimentam as peças no tabuleiro. E essas personagens se engajam em aventuras que são, a cada vez, um pouco diferentes, mas que fundamentalmente são iniciadas e acabam sempre de um jeito semelhante, repetindo-se como partidas de um mesmo jogo. Como o rei no xadrez, o protagonista morre, mas sobra-lhe vida suficiente para se erguer de novo e recomeçar igual na próxima. Ressalva: a combinatória das narrativas atuais é mais simples e limitada do que o jogo de xadrez.
Um dos maiores historiadores da arte do século 20, Erwin Panovsky, escreveu, em 1934, o ensaio "Style and Medium in the Motion Pictures" (Estilo e Meio no Cinema; republicado em "Three Essays on Style", MIT Press). Panovsky mostrava que o cinema não é herdeiro do teatro: desde o começo, deve sua maneira de narrar (cortando, mudando de plano, deslocando a câmara) às histórias em quadrinhos.
Na passagem de um conto para a tela, a fase intermediária não é a transformação da história em diálogos, mas sua adaptação para "graphic novel", história em quadrinhos. O tratamento cinematográfico de uma narração, segundo Panovsky, não é uma peça na espera de ser montada: são quadrinhos na espera de serem desenhados.
Quem não puder ler o texto de Panovsky assista a "Hulk" de Ang Lee, em que é (maravilhosamente) evidente o parentesco entre a montagem cinematográfica e o estilo gráfico dos quadrinhos.
Ora, a intuição de Panovsky fica, hoje, confirmada não só em matéria de estilo.
As histórias em quadrinhos, que pareciam perder seus leitores nos anos 60 e 70, triunfam nas telas de cinema. Nesse segundo sopro de vida, os quadrinhos contribuem bastante para impor ao cinema outra modalidade narrativa que lhes é essencial: a sequência de aventuras que manifestam e confirmam as aptidões, boas ou ruins, dos protagonistas.
Nessa perspectiva, opõem-se dois modelos narrativos. Há a história que acontece uma vez e pronto. E há a série tipo revistinha que, como o seriado televisivo, propõe regularmente novas peripécias de nosso herói e de seus inimigos.
Imagine que Umberto Eco, encorajado pelo sucesso de "O Nome da Rosa", escrevesse um "Nome da Rosa 2" ou mais. A série não seria o aprofundamento de uma história que agita um caldeirão de paixões humanas, da intolerância à sede de poder, passando pela luxúria etc. Ela seria, inevitavelmente, a composição e a confirmação progressivas da personagem de Guilherme de Baskerville, o frade detetive.
É banal afirmar que o modelo da série ou da revistinha é preferido por narrativas de segunda divisão: quem não sabe agitar a complexidade da realidade humana optaria por compor um protagonista com o qual fosse desejável identificar-se e, com ele, repetidamente, seduziria seus leitores. Ganância da indústria cultural, não é?
Mas resta entender qual é a razão do sucesso do modelo da revistinha, seja ele próprio da segunda divisão ou não. O que nos torna, em massa, bom público para as séries? Por que gostamos de reencontrar, mais e mais vezes, os super-heróis da Marvel Comics, James Bond, Indiana Jones, Lara Croft, Crocodilo Dundee e Freddy Kruger?
O fenômeno é provavelmente uma consequência da fraqueza subjetiva moderna. A questão de quem somos e a que viemos está sempre em suspenso: depende do olhar dos outros, que nada garante. Nessa incerteza permanente, por que encarar abismos enigmáticos do drama humano?
Melhor sonhar com heróis que voltam sempre iguais a si mesmos. Afinal, tudo seria mais fácil se, em nossas vidas, tivéssemos a extraordinária e repetida consistência das personagens dos quadrinhos.
PS: Os investidores que, desde 2000, perderam feio na crise de Wall Street deveriam ter consultado um crítico da cultura. Aprenderiam que nunca é errado investir na satisfação das necessidades impostas pelas fraquezas de nosso narcisismo.
De fato, quem, três anos atrás, comprou ações da Mattel (fabricante da Barbie) dobrou seu capital, enquanto o mercado desmoronava. E quem comprou ações da Marvel Comics triplicou seus haveres.
10 julho 2003
Sonhar com o fim do mundo
Fui assistir a "Exterminador do Futuro 3" porque gosto das histórias de fim do mundo.
Como a estréia do filme no Brasil está prevista para o dia 1º de agosto, só uma pequena antecipação. Os espectadores do "Exterminador" 1 e 2 (que, em regra, gostam de apocalipse) fiquem sossegados. Apesar da luta de Sarah Connor e do heróico suicídio do exterminador número 2, a catástrofe só pode ser retardada, não evitada. Era lógico que fosse assim. Se nunca chegasse o mundo futuro em que as máquinas tentarão acabar com os humanos, não existiriam o tempo e o lugar de onde os exterminadores voltam para o passado, com o intento de modificá-lo. Ou seja, a história da série "Exterminador" não aconteceria.
Mas vamos ao essencial: gostamos de sonhar com o fim do mundo. Uso o plural, pois, obviamente, não sou o único. O apocalipse é um vasto gênero narrativo. Fora os romances, uma filmografia detalhada já seria indigesta. Ela comportaria diversas seções.
Há o fim do mundo por invasão sideral, de "A Guerra dos Mundos" (1952) a "Independence Day" (2001). Há o fim do mundo tipo "Impacto Profundo" (1997), por choque com um imenso meteorito. Há o fim do mundo biológico, de "A Última Esperança da Terra" ("The Omega Man", 1971) à minissérie "The Stand", de 1994 (o livro de Stephen King, traduzido como "A Dança da Morte", é bem superior ao filmado). Há o fim do mundo pela revolta de bichos, mortos-vivos e afins, desde os vários "Planeta dos Macacos" até "Reino de Fogo" (2001). E há o fim do mundo mais popular, por catástrofe interna e, de alguma forma, merecida, nuclear ou não: a trilogia de Mad Max, os filmes de Kevin Costner "Waterworld - O Segredo das Águas", de 1995, e "The Postman - O Mensageiro", de 1997, a série dos exterminadores, "Matrix" 1 e 2 etc.
De nacional, vale lembrar, ao menos, o romance "Blecaute", de Marcelo Rubens Paiva.
O tamanho do gênero mostra que o sonho de apocalipse é parte integrante da cultura popular contemporânea. Resta se perguntar por quê.
Jacques Lacan, o psicanalista francês, disse uma vez que não poderíamos aguentar nossas vidas se não tivéssemos a certeza de que, um dia, essa história vai acabar. É uma inversão provocadora de uma idéia do senso comum segundo a qual conseguimos viver só à condição de esquecer o caráter efêmero da vida e do mundo. O que é mais intolerável: que a coisa acabe um dia ou que não acabe nunca? Difícil dizer.
As histórias de fim do mundo respondem a essa alternativa incômoda sugerindo uma terceira via. O essencial, nelas, não é que o mundo acabe, mas é o destino dos escassos sobreviventes. Pois sempre há sobreviventes.
Para eles (e nós, de qualquer modo, fazemos parte do grupo, não é?), o fim do mundo é o fim da complexidade e da frivolidade da vida.
Acaba a preocupação com redes incompreensíveis de poder econômico, político e social. Acaba o cuidado com as aparências, com as seduções e com as mentiras que decidem nosso lugar na sociedade. Acaba a incerteza que nos leva a questionar nosso próprio desejo como se fosse o oráculo de Delfos. Acaba a mesquinhez de nossos dramas amorosos.
Tudo fica claro. Os inimigos são evidentes, sejam vírus, vampiros, máquinas ou extraterrestres. Por serem inimigos dos humanos em geral, eles estabelecem de vez e imperativamente nossa unidade: quem se importa com religiões, etnias, ressentimentos e dívidas passadas diante da ameaça de extermínio? Copular torna-se necessário para garantir a continuação da espécie, e, francamente, não há tempo para procurar um parceiro de ombros mais largos ou uma parceira mais peituda. As tarefas são facilmente definidas: a miragem do sucesso não faz sentido, é preciso encontrar gasolina, abrigo, armas e comida.
O fim do mundo satisfaz todas as nostalgias, prometendo aos sobreviventes a volta a um mítico mundo pré-moderno. O apocalipse nos livra da indeterminação e da insatisfação do desejo; entramos num cenário simples, autêntico, dominado por necessidades imediatas. Que alívio.
De repente, uma lembrança de infância. Aos 12 anos, leitor assíduo de ficção científica, a cada noite, na cama, antes de dormir, oferecia-me de presente um pequeno devaneio: no meio de meu sono, chegariam os marcianos, decididos a nos aniquilar. Seu raio destruidor cairia, naturalmente, bem em cima de minha escola. Acordaria, no dia seguinte, num universo transformado. Nada de interrogações, provas e testes: quem ousaria me perguntar as declinações latinas na hora de coordenar a resistência terrestre?
Nada de esconder meu interesse pela pequena Loredana, que se sentava no banco da frente, pois, de qualquer forma, jovens casais seriam decididos por sorteio, para fortalecer e renovar a espécie. Nada de me perguntar angustiado o que seria minha vida adulta, pois a ameaça faria do presente nosso único tempo verbal. Chegando, os marcianos exterminariam as obrigações vindas de meu passado e o peso de meu futuro.
PS: Quatro ou cinco anos mais tarde, meus sonhos revolucionários radicais talvez pertencessem ao mesmo gênero literário.
03 julho 2003
Vitória da intimidade
A Suprema Corte dos EUA acaba de chegar a uma decisão relevante, embora engraçada pelo atraso.
Eis os fatos. No começo dos anos 90, em 23 Estados dos EUA (quase a metade da Federação), ainda estavam em vigor leis que proibiam a prática do sexo anal e oral. Até a semana passada, 13 Estados mantinham a interdição. Alguns, como o Texas, castigavam diretamente a homossexualidade. Outros, como era o caso da Geórgia, definiam como sodomia o delito de qualquer pessoa "que pratique ou se submeta a um ato sexual que envolva os órgãos sexuais de uma pessoa e a boca ou o ânus de outra".
Com a decisão atual da Suprema Corte, essas leis tornam-se caducas. Aconteceu assim: em 1998, a polícia do Texas foi chamada, parece, por um cidadão que ouvia gritos num apartamento próximo ao seu. Os agentes, entrando no aposento, esbarraram em dois homens, J.G. Lawrence e T. Garner, engajados em sexo anal. Os amantes foram punidos com uma multa de US$ 200.
Lawrence e Garner contestaram a constitucionalidade da lei que os reprimia. Na semana passada, eles ganharam a batalha final. Por maioria de 6 a 3, a Suprema Corte dos EUA decretou que a Constituição americana garante o direito dos cidadãos à privacidade. Como os atos não feriam o pudor de ninguém, eram consensuais e não envolviam menores, Lawrence e Garner estavam livres para fazer o amor como bem entendessem, na tranquilidade de suas casas.
Os juízes minoritários, que se opuseram à deliberação, manifestaram seu dissenso. O juiz Scalia argumentou que a homossexualidade seria contrária ao sentimento moral da comunidade. O juiz Thomas afirmou que, a seu ver, em nenhum artigo a Constituição americana garantiria um direito dos cidadãos à privacidade, ou seja, a serem deixados em paz pela comunidade.
Os argumentos são, de fato, complementares. Pois, se não existe direito à privacidade, é lógico que a qualidade moral e legal das condutas íntimas seja decidida pela comunidade. Nessa perspectiva, aliás, para decidir democraticamente se o sexo oral e anal devem ser proibidos por lei, poderíamos recorrer a um referendo (a campanha seria divertida). Será que a voz das urnas proibiria a homossexualidade? Certamente os heterossexuais seriam autorizados (enfim, não é?) a praticar sexo oral e anal. Por sorte dos juízes Scalia e Thomas, o ridículo não mata.
Esqueçamos, por um instante, que a Suprema Corte apenas ratificou uma mudança no senso comum. E consideremos o argumento que sustentou a decisão da corte: o direito à privacidade.
A Constituição brasileira (título II, artigo 5º) declara que a intimidade e a vida privada dos cidadãos são invioláveis. Mas ela foi escrita menos de 20 anos atrás, enquanto a Constituição dos EUA entrou em vigor em 1787.
Hoje nos parece óbvio reconhecer a intimidade como espaço autônomo em que a comunidade não se mete. A coisa começou com a idéia romântica de que as afinidades (amizades, amores etc.) são eletivas (decididas por opção, não por tradição, obrigação ou convenção). E continua com a livre escolha dos parceiros e dos gestos do sexo e do amor. Não há costume nem moral pseudo-racional (tipo: o sexo deveria servir à reprodução) que valham: o indivíduo é árbitro de seus prazeres privados.
Foram necessários dois séculos para que essas idéias se consolidassem e para que o espaço autônomo da intimidade se ampliasse. A ponto de acharmos normal escolher uma profissão por gosto, e não segundo as necessidades da sociedade. Ou decidirmos ter filhos ou não sem perguntar se a comunidade precisa de braços ou cresce demais. A legalização do aborto, nos EUA, foi justamente um efeito do reconhecimento da autonomia na vida íntima.
Em suma, ao estilo de Anthony Giddens (em "A Transformação da Intimidade"), podemos festejar o triunfo da livre intimidade do homem moderno.
Mas voltemos ao dissenso do juiz Scalia. A indignação o leva a antecipar um mundo (devasso aos seus olhos) em que as leis se dobrariam ao capricho íntimo do indivíduo. Se posso escolher que meu parceiro seja do mesmo sexo que eu, por que não pediria que a lei sancionasse o casamento gay? Scalia fica horrorizado. Eu, ao contrário, aprovo o pedido. Na mesma linha, por que a comunidade me impediria de usar drogas na privacidade de minha casa? Ou de prostituir livremente meu corpo? De novo, Scalia ficaria horrorizado. Quanto a mim, desta vez, aprovo, mas tenho ressalvas.
Ora, ressalvas em nome de quê? O mundo da intimidade livre é o mundo que prefiro. Mas resta que, nesse mundo, fica difícil inventar regras ou mesmo ressalvas que valham para todos. À força de ampliar a intimidade, perde-se o sentido de uma lei que tenha dignidade e autoridade coletivas. E a diferença é frágil entre a liberdade de nossos desejos íntimos e a selvageria que reconheceria a cada um o bom direito de perseguir sempre sua vantagem exclusiva.
O que nos ameaça, por sermos modernos, não é tanto a sociedade devassa que receia Scalia, mas uma sociedade dissoluta, ou seja, desfeita pela falta de normas propriamente sociais.
Eis os fatos. No começo dos anos 90, em 23 Estados dos EUA (quase a metade da Federação), ainda estavam em vigor leis que proibiam a prática do sexo anal e oral. Até a semana passada, 13 Estados mantinham a interdição. Alguns, como o Texas, castigavam diretamente a homossexualidade. Outros, como era o caso da Geórgia, definiam como sodomia o delito de qualquer pessoa "que pratique ou se submeta a um ato sexual que envolva os órgãos sexuais de uma pessoa e a boca ou o ânus de outra".
Com a decisão atual da Suprema Corte, essas leis tornam-se caducas. Aconteceu assim: em 1998, a polícia do Texas foi chamada, parece, por um cidadão que ouvia gritos num apartamento próximo ao seu. Os agentes, entrando no aposento, esbarraram em dois homens, J.G. Lawrence e T. Garner, engajados em sexo anal. Os amantes foram punidos com uma multa de US$ 200.
Lawrence e Garner contestaram a constitucionalidade da lei que os reprimia. Na semana passada, eles ganharam a batalha final. Por maioria de 6 a 3, a Suprema Corte dos EUA decretou que a Constituição americana garante o direito dos cidadãos à privacidade. Como os atos não feriam o pudor de ninguém, eram consensuais e não envolviam menores, Lawrence e Garner estavam livres para fazer o amor como bem entendessem, na tranquilidade de suas casas.
Os juízes minoritários, que se opuseram à deliberação, manifestaram seu dissenso. O juiz Scalia argumentou que a homossexualidade seria contrária ao sentimento moral da comunidade. O juiz Thomas afirmou que, a seu ver, em nenhum artigo a Constituição americana garantiria um direito dos cidadãos à privacidade, ou seja, a serem deixados em paz pela comunidade.
Os argumentos são, de fato, complementares. Pois, se não existe direito à privacidade, é lógico que a qualidade moral e legal das condutas íntimas seja decidida pela comunidade. Nessa perspectiva, aliás, para decidir democraticamente se o sexo oral e anal devem ser proibidos por lei, poderíamos recorrer a um referendo (a campanha seria divertida). Será que a voz das urnas proibiria a homossexualidade? Certamente os heterossexuais seriam autorizados (enfim, não é?) a praticar sexo oral e anal. Por sorte dos juízes Scalia e Thomas, o ridículo não mata.
Esqueçamos, por um instante, que a Suprema Corte apenas ratificou uma mudança no senso comum. E consideremos o argumento que sustentou a decisão da corte: o direito à privacidade.
A Constituição brasileira (título II, artigo 5º) declara que a intimidade e a vida privada dos cidadãos são invioláveis. Mas ela foi escrita menos de 20 anos atrás, enquanto a Constituição dos EUA entrou em vigor em 1787.
Hoje nos parece óbvio reconhecer a intimidade como espaço autônomo em que a comunidade não se mete. A coisa começou com a idéia romântica de que as afinidades (amizades, amores etc.) são eletivas (decididas por opção, não por tradição, obrigação ou convenção). E continua com a livre escolha dos parceiros e dos gestos do sexo e do amor. Não há costume nem moral pseudo-racional (tipo: o sexo deveria servir à reprodução) que valham: o indivíduo é árbitro de seus prazeres privados.
Foram necessários dois séculos para que essas idéias se consolidassem e para que o espaço autônomo da intimidade se ampliasse. A ponto de acharmos normal escolher uma profissão por gosto, e não segundo as necessidades da sociedade. Ou decidirmos ter filhos ou não sem perguntar se a comunidade precisa de braços ou cresce demais. A legalização do aborto, nos EUA, foi justamente um efeito do reconhecimento da autonomia na vida íntima.
Em suma, ao estilo de Anthony Giddens (em "A Transformação da Intimidade"), podemos festejar o triunfo da livre intimidade do homem moderno.
Mas voltemos ao dissenso do juiz Scalia. A indignação o leva a antecipar um mundo (devasso aos seus olhos) em que as leis se dobrariam ao capricho íntimo do indivíduo. Se posso escolher que meu parceiro seja do mesmo sexo que eu, por que não pediria que a lei sancionasse o casamento gay? Scalia fica horrorizado. Eu, ao contrário, aprovo o pedido. Na mesma linha, por que a comunidade me impediria de usar drogas na privacidade de minha casa? Ou de prostituir livremente meu corpo? De novo, Scalia ficaria horrorizado. Quanto a mim, desta vez, aprovo, mas tenho ressalvas.
Ora, ressalvas em nome de quê? O mundo da intimidade livre é o mundo que prefiro. Mas resta que, nesse mundo, fica difícil inventar regras ou mesmo ressalvas que valham para todos. À força de ampliar a intimidade, perde-se o sentido de uma lei que tenha dignidade e autoridade coletivas. E a diferença é frágil entre a liberdade de nossos desejos íntimos e a selvageria que reconheceria a cada um o bom direito de perseguir sempre sua vantagem exclusiva.
O que nos ameaça, por sermos modernos, não é tanto a sociedade devassa que receia Scalia, mas uma sociedade dissoluta, ou seja, desfeita pela falta de normas propriamente sociais.
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