31 julho 2003

Um prédio ocupado, em Curitiba

Passei o fim de semana em Curitiba, acompanhando um filho que vai passar um ano fazendo intercâmbio na cidade.

Aproveitei para visitar, domingo à noite, na rua Marechal Deodoro, um prédio que pertencia ao Banestado, o ex-banco do Estado do Paraná, que faliu e cuja massa foi adquirida pelo banco Itaú. O edifício, vazio há tempos, foi invadido e ocupado, quase dois meses atrás, pelo Movimento Nacional de Luta pela Moradia. Mudaram-se para lá, de mala e cuia, 40 famílias.

Enquanto o perfume de uma boa sopa caseira enchia o ar e crianças brincavam por todos os lados, conversei com Anselmo Schwertner, 39, membro da coordenação estadual e nacional do movimento.
Entendi o seguinte: o MNLM é mais que um projeto de assentamentos urbanos. Não se trata apenas de forçar a barra para que os sem-teto do país encontrem, nas cidades, condições aceitáveis de moradia. A idéia é produzir uma "reforma urbana".

Pois bem, o que seria uma reforma que nos tornasse mais urbanos?

Imagine que, pelos diferentes bairros (incluindo os mais privilegiados), prédios abandonados sejam transformados em moradias dignas para cidadãos com condições precárias de habitação: não só favelados ou moradores de rua mas também pessoas forçadas a viver a distâncias atrozes de seu lugar de trabalho, jovens famílias que não conseguem constituir um lar independente do de seus pais etc. Essa transformação urbana, por si só, teria um mérito. Qual?

As diferenças sociais, nas cidades brasileiras, se organizam, geralmente, numa segregação habitacional. A "senzala" pode ser identificada com grandes áreas da periferia (modelo paulista) ou com favelas que se insinuam nas áreas ditas nobres (modelo carioca). De qualquer forma, o lugar ou a qualidade da moradia funcionam como atributos de castas separadas. Diga-me onde e como você mora e saberei não como você está, mas se você é dos meus ou não.

Uma convivência efetiva pediria que houvesse um denominador comum de conforto. Nesse caso, as experiências cotidianas de cruzar-se, de dizer-se bom-dia, de comprar pão na mesma padaria e, idealmente, de levar os filhos para uma mesma escola pública (se fosse, como deveria, a melhor aos olhos de todos) alimentariam o sentimento de que as diferenças econômicas não são destinos, mas contingências sob as quais nossas vidas se assemelham.

Claro, se, para ser realizado, o projeto de uma convivência citadina contasse só com traslados e mudanças, ele seria singularmente ineficiente. Os cariocas observariam que essa redistribuição topográfica resultaria logo na mudança maciça do crime organizado do morro para o asfalto (como se os dois já não estivessem suficientemente próximos). E os paulistas diriam que é só o que faltava, semear por Higienópolis e pelos Jardins uma série de prédios que produziriam microclimas assustadores -para quê?
Entendo as objeções dos hipotéticos paulistas e cariocas. Aliás, o próprio MNLM também parece entender: seu projeto não consiste apenas em ocupar e distribuir pelas cidades residências para os mais necessitados. A idéia é que os assentamentos sejam, para as famílias, a ocasião de uma saída da marginalidade social e econômica. Como?

Imagine que os prédios multifamiliares consigam funcionar como cooperativas de produção de bens ou serviços que correspondam a uma necessidade do mercado. Claro, não é fácil: trabalhadores pouco qualificados deveriam ser formados, seriam necessários quadros de gestão cooperativa etc. Mas os atrativos do projeto são indiscutíveis: uma massa consistente de desfavorecidos viria integrar-se, ao mesmo tempo, no tecido urbano e nas fileiras das pequenas classes médias.

Existem pesquisas demonstrando que, quando, num bairro pobre, a percentagem de habitantes de classe média desce abaixo de 5% ou 6%, aumentam vertiginosamente os índices de marginalidade (gravidezes indesejadas de menores, desistências escolares, delitos etc.). Por falta de convivência com faixas mais privilegiadas, o grupo carente se percebe como uma tribo à parte e, portanto, sem compromisso com os valores da sociedade como um todo.

Não deveria ser impossível mostrar a recíproca. Quando, num bairro rico, a percentagem de habitantes pobres desce abaixo de um limite definido, aumentam vertiginosamente os índices da estupidez social (falta de solidariedade, decadência dos ideais comunitários, culto do privilégio exclusivo etc.).

Em suma, a convivência urbana das diferenças sociais é crucial para manter um sentimento básico de valores e destinos compartilhados. Mas essa convivência não é a simples proximidade física de morro e asfalto: ela pressupõe, por assim dizer, uma moradia comum.

Resta sonhar com duas coisas improváveis: que a separação social não tenha tornado os privilegiados irremediavelmente incapazes de solidariedade e que o movimento de luta pela moradia não adote uma ideologia rançosa de Guerra Fria (no estilo atual de João Pedro Stédile), confirmando assim uma fratura social que deveríamos resolver na reinvenção de uma comunidade.

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