Meu amigo Jean Bergès é psicanalista e foi, durante anos, chefe do serviço de neuro- psiquiatria infantil do hospital Sainte-Anne, em Paris. Aprendi com ele muitas coisas valiosas. Uma, em particular, vai me servir hoje.
Segundo a época e o lugar de nossa infância, fomos alfabetizados de maneiras diferentes. Em particular, aprendemos a reconhecer as letras de um jeito, por assim dizer, abstrato ou então com o auxílio de analogias e comparações. Ou colocaram um "m" no quadro e nos mandaram reproduzi-lo até acabar a tinta. Ou excitaram nossa imaginação para que memorizássemos mais facilmente; o "m" é uma ponte com três pilares sobre um grande rio, ou então é um velhinho que precisa de bengala. Você não quer que a ponte nem o velhinho se espatifem no chão? Então escreva direito, com três perninhas.
Pois bem, Bergès verificou que as crianças alfabetizadas com a ajuda de comparações carinhosas encontram com maior frequência (não sempre, longe disso) dificuldades de leitura e de escrita.
Entende-se por quê: se o "m" tem pernas e se, por alguma razão, eu tiver problemas com as pernas, minha capacidade de reconhecer a letra "m" será comprometida.
Imagine que, na sua família, seja proibido mostrar as pernas. Na sua casa até as mesas vestem saia, para evitar tentações. Óbvio, se, na escola, a professora não se lançar em analogia nenhuma, a aula será chata: olhem aqui, este é o "m", com três linhas verticais, aprendam e ponto. Mas o que acontecerá, se ela, com as melhores intenções, afirmar que a letra "m" tem PERNAS?
Freud, em "Inibição, Sintoma, Angústia", não dizia diferente. Afirmava que nossas inibições surgem quando damos um valor excessivo (e, direta ou indiretamente, subjetivo e erótico) ao objeto de nossa atenção. Se quero aprender a tocar violão porque é o jeito decisivo de conquistar o amor da mãe ou da mulher de meus sonhos (esperando que não se trate da mesma), é mais provável que eu tenha câimbras incontroláveis a cada vez que toco no arco.
Lembrei-me disso ao encontrar um adolescente angustiado por aproximar-se da hora em que ele deve escolher faculdade e profissão, ou seja, no seu dizer, "o que fazer com a vida". Também nestes dias, li o livro "What Should I Do with My Life?" (O que Deveria Fazer com Minha Vida?), de Po Bronson (Random House).
Primeiro, o adolescente e sua incerteza dolorosa. Ele tinha consultado orientadores profissionais, que aplicaram os testes de praxe e indicaram as direções nas quais o jovem, provavelmente, se daria melhor. No entanto, o adolescente declarava que não queria escolher segundo suas competências, mas segundo seu desejo. Os profissionais, com razão, concordavam com essa atitude e exortavam (com cautela, claro): diga, então, qual é seu desejo, e vamos ver como ele se concilia com suas aptidões.
Problema: em matéria de profissão, nosso adolescente não sabe o que ele quer. Ele resiste a escolher segundo suas disposições, pois receia se engajar numa direção que não seja a de seu desejo. Também não quer definir seu desejo de maneira aproximativa. Quando criança, ele tinha aspirações, mas será que elas ainda valem? O que ele espera, hoje, da vida não sugere uma profissão definida. Gostaria, por exemplo, de ganhar "um dinheiro legal". Será que, então, ele está livre para escolher qualquer direção compatível com as tendências do mercado? Nada disso: o jovem sente uma verdadeira obrigação de escolher uma profissão que coincida especificamente com seu desejo. Mas qual desejo? Impasse.
Chego ao livro de Po Bronson, que é uma ilustração do imperativo cultural que persegue os jovens de nossos tempos. Bronson declara: escolher uma profissão significa decidir o que fazer com sua vida. Parcialmente falso: há vidas centradas ao redor da escolha profissional, e outras, não. Além disso, lembre-se da história do "m": quanto mais dermos relevância a uma escolha, tanto mais ela vai se tornar difícil. Segue a receita de Bronson: escolha uma profissão que corresponda a seu desejo. Com isso, o trabalho lhe será agradável, leve e proveitoso. Falso: fazer o que queremos não é garantia de facilidade nem de sucesso. De novo, vale a história do "m": por esse caminho, encontram-se complicações subjetivas e inibições.
Ninguém, há tempos, quer escolher uma profissão porque foi a do pai ou da mãe: o imperativo é "afirmar-se" de maneira independente. Também não cai bem ser engenheiro "só" porque a gente é bom de contas ou porque o mercado precisa. O imperativo, desde os anos 60, é que a escolha profissional obedeça à mesma regra da escolha amorosa. Siga seu desejo e seja feliz.
Um psicanalista pode observar, no mínimo, que esse imperativo cultural é fonte de sofrimentos (inúteis) por acarretar uma idéia falsa do desejo. Como tentei explicar ao adolescente atormentado, nosso desejo não está escondido no cerebelo (no estilo: procure e descobrirá). Ele é uma invenção que acontece a cada dia, a partir, certo, de nosso passado, mas também ao vento de encontros, oportunidades e acasos.
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