17 julho 2003

Vidas em quadrinhos

No cruzamento da rua 50 com a Broadway (esquina noroeste), em Manhattan, quando o clima permite, aparecem três bancas. Uma vende fruta, outra, cachorro-quente, e a terceira é mais complexa.

Há um estrado com telas verticais para expor revistas de histórias em quadrinhos da Marvel Comics. São exemplares dos últimos anos, oferecidos por US$ 3,50: "Hulk", "Spider-Man", "Captain America", "Daredevil", "Batman", "X-Men" e por aí vai. E, na continuação do estrado, há um tabuleiro de xadrez. Por 25 centavos (de dólar), você pode sentar numa das duas cadeiras e esperar que alguém se instale na sua frente para começar uma partida.

Não consigo me concentrar no meio da multidão de Times Square. Mas acho engraçado jogar xadrez na sombra, literalmente, das HQs da Marvel.

É uma espécie de metáfora da tendência dominante da narrativa popular contemporânea. Há super-heróis e vilões com aptidões e traços de caráter constantes e férreos como as regras que movimentam as peças no tabuleiro. E essas personagens se engajam em aventuras que são, a cada vez, um pouco diferentes, mas que fundamentalmente são iniciadas e acabam sempre de um jeito semelhante, repetindo-se como partidas de um mesmo jogo. Como o rei no xadrez, o protagonista morre, mas sobra-lhe vida suficiente para se erguer de novo e recomeçar igual na próxima. Ressalva: a combinatória das narrativas atuais é mais simples e limitada do que o jogo de xadrez.

Um dos maiores historiadores da arte do século 20, Erwin Panovsky, escreveu, em 1934, o ensaio "Style and Medium in the Motion Pictures" (Estilo e Meio no Cinema; republicado em "Three Essays on Style", MIT Press). Panovsky mostrava que o cinema não é herdeiro do teatro: desde o começo, deve sua maneira de narrar (cortando, mudando de plano, deslocando a câmara) às histórias em quadrinhos.

Na passagem de um conto para a tela, a fase intermediária não é a transformação da história em diálogos, mas sua adaptação para "graphic novel", história em quadrinhos. O tratamento cinematográfico de uma narração, segundo Panovsky, não é uma peça na espera de ser montada: são quadrinhos na espera de serem desenhados.

Quem não puder ler o texto de Panovsky assista a "Hulk" de Ang Lee, em que é (maravilhosamente) evidente o parentesco entre a montagem cinematográfica e o estilo gráfico dos quadrinhos.

Ora, a intuição de Panovsky fica, hoje, confirmada não só em matéria de estilo.

As histórias em quadrinhos, que pareciam perder seus leitores nos anos 60 e 70, triunfam nas telas de cinema. Nesse segundo sopro de vida, os quadrinhos contribuem bastante para impor ao cinema outra modalidade narrativa que lhes é essencial: a sequência de aventuras que manifestam e confirmam as aptidões, boas ou ruins, dos protagonistas.

Nessa perspectiva, opõem-se dois modelos narrativos. Há a história que acontece uma vez e pronto. E há a série tipo revistinha que, como o seriado televisivo, propõe regularmente novas peripécias de nosso herói e de seus inimigos.

Imagine que Umberto Eco, encorajado pelo sucesso de "O Nome da Rosa", escrevesse um "Nome da Rosa 2" ou mais. A série não seria o aprofundamento de uma história que agita um caldeirão de paixões humanas, da intolerância à sede de poder, passando pela luxúria etc. Ela seria, inevitavelmente, a composição e a confirmação progressivas da personagem de Guilherme de Baskerville, o frade detetive.

É banal afirmar que o modelo da série ou da revistinha é preferido por narrativas de segunda divisão: quem não sabe agitar a complexidade da realidade humana optaria por compor um protagonista com o qual fosse desejável identificar-se e, com ele, repetidamente, seduziria seus leitores. Ganância da indústria cultural, não é?

Mas resta entender qual é a razão do sucesso do modelo da revistinha, seja ele próprio da segunda divisão ou não. O que nos torna, em massa, bom público para as séries? Por que gostamos de reencontrar, mais e mais vezes, os super-heróis da Marvel Comics, James Bond, Indiana Jones, Lara Croft, Crocodilo Dundee e Freddy Kruger?

O fenômeno é provavelmente uma consequência da fraqueza subjetiva moderna. A questão de quem somos e a que viemos está sempre em suspenso: depende do olhar dos outros, que nada garante. Nessa incerteza permanente, por que encarar abismos enigmáticos do drama humano?
Melhor sonhar com heróis que voltam sempre iguais a si mesmos. Afinal, tudo seria mais fácil se, em nossas vidas, tivéssemos a extraordinária e repetida consistência das personagens dos quadrinhos.

PS: Os investidores que, desde 2000, perderam feio na crise de Wall Street deveriam ter consultado um crítico da cultura. Aprenderiam que nunca é errado investir na satisfação das necessidades impostas pelas fraquezas de nosso narcisismo.

De fato, quem, três anos atrás, comprou ações da Mattel (fabricante da Barbie) dobrou seu capital, enquanto o mercado desmoronava. E quem comprou ações da Marvel Comics triplicou seus haveres.

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