23 outubro 2003

Solidões voluntárias

Muitos anos atrás, em Paris, um amigo, jovem psiquiatra, trabalhava nos serviços de assistência pública. Ele fazia visitas domiciliares a alcoólatras severamente marginalizados. O propósito não era curá-los de seu alcoolismo (o otimismo tem limites). Tratava-se sobretudo de verificar e melhorar, se possível, as condições de higiene e saúde dos sujeitos visitados.

É preciso lembrar que os edifícios parisienses de classe média que foram construídos no fim do século 19 comportavam, em regra, um sótão, dividido em cubículos de mais ou menos dez metros quadrados. Havia uma privada comum para o andar, nunca um banheiro completo. Eventualmente, em cada cubículo, havia um lavabo. Esses espaços eram os quartos de serviço dos apartamentos do prédio.

A partir dos anos 50, o trabalho doméstico mudou: sumiram, ou quase, os empregados que residiam no trabalho. Os quartinhos tornaram-se habitações para estudantes ou para pessoas de baixíssima renda. Hoje, juntados e reformados drasticamente, eles compõem apartamentos procurados por charme e vista.

Um dia, na lista das visitas que ele deveria efetuar, meu amigo encontrou dois endereços no último andar, o sótão, do mesmo prédio.

No primeiro cubículo, ele se deparou com um colchão infecto, garrafas vazias ou quebradas no chão, um cheiro miasmático e uma mesa encostada na parede. Um homem estava sentado à mesa, bebendo.

No segundo cubículo, a cena era idêntica. Só que, à mesa encostada na parede, estava sentada, e bebendo, uma mulher.

Os cubículos eram contíguos, e as duas mesas situavam-se cada uma de um lado da mesma divisória. De forma que, se não fosse pela parede, o homem e a mulher pareceriam estar sentados frente a frente, na mesma mesa.

Meu amigo não era ingênuo a ponto de imaginar que a solidão fosse a razão do alcoolismo de seus dois "pacientes". Pensou apenas que, retirando a parede, mesmo que eles não desistissem da empresa metódica de beber até desmaiar, ao menos eles beberiam juntos. Não seria melhor?
Essa imagem ficou comigo como um protótipo do enigma da solidão apesar da proximidade. Lembro-me dela cada vez que ouço alguém se queixar da dor de estar sozinho.

Uma mulher, por exemplo, quando o marido se ausenta por uma viagem de negócios, se entrega a orgias de comida e vômito. É um efeito, ela acusa, do abandono, por temporário e justificado que seja.

Um homem, quando a mulher visita a família num outro Estado, vira a noite na frente do computador, oferecendo-se como escravo passivo nos bate-papos gay. Ele se odeia por isso e também culpa o abandono temporário.

Não é difícil constatar que o dito abandono é quase sempre um pretexto. Ou seja, uma maneira de justificar pela ausência do outro a volta insistente de uma fantasia, de uma paixão ou de uma prática da qual o sujeito preferiria se ver livre.

É uma dinâmica que atrapalha e pode destruir um casal. A presença do outro é desejada, de fato, porque freia os impulsos aos quais a solidão nos entregaria. Logo, o outro é secretamente detestado por ser aquele ou aquela que nos impede de gozar como gostaríamos.

O engraçado é que, na maioria dos casos, não seria impossível revelar ao outro nosso "segredo" (que, aliás, provavelmente ele já conhece). Ele talvez aceitasse e mesmo se fizesse cúmplice de nossas pequenas ou grandes loucuras solitárias.

Mas a revelação demora ou não acontece. Nenhum dos dois quer renunciar não tanto a sua fantasia privada, mas a seu segredo, ou melhor, à idéia de preservar um segredo. Calam-se para proteger um espaço íntimo, ao abrigo da relação.

Quando um parceiro não pode aproveitar a viagem do outro, a luta pelo segredo toma outras formas. Não são necessariamente traições, mas pequenas mentiras. Há a mulher que alega um falso horário de expediente para ganhar tempo e tomar um drinque cotidiano de solteira no balcão de um bar do centro. Há o homem que alega sobrecarga de trabalho para passar horas, depois do jantar, trancado no "office" de casa, mesmo que seja para idiotizar-se à força de paciências.

Talvez essas escolhas sejam restos inevitáveis do passado: afinal, a descoberta do prazer foi, para muitos, solitária. E um dos atrativos da masturbação na adolescência é justamente de ser secreta: tempos e pensamentos subtraídos à presença estafante dos pais na vida dos jovens.

Além disso, o óbvio: somos filhos de uma cultura que exalta a autonomia do indivíduo. Na hora de apostar nossas fichas numa relação, como não sucumbir à tentação de guardar uma ou duas no bolso para jogar sozinhos, mais tarde, enquanto o outro dorme?

Moral da história: não basta abater paredes para estar em companhia.

P.S.: Agradeço um leitor, Wander Cortezzi, que me fez prontamente notar que, na coluna da semana passada, o título da edição brasileira do best-seller de Mitch Albom não é "A Última Grande Conversa", mas "A Última Grande Lição". Peço desculpa; devo ter errado por contaminação, pois o livro é composto pelas conversas do autor com Morrie, seu ex-professor que está morrendo.

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