16 outubro 2003

A vida faz sentido? A) Muito B) Nenhum C) Um pouco

Escolha uma resposta. Provavelmente, se você quiser deixar uma boa impressão, marcará a primeira opção. Com razão, pois, ao que dizem, o sentido nos faz bem e a falta de sentido nos deprime e angustia.

Mitch Albom é o autor de um best-seller de auto-ajuda que foi traduzido em 30 línguas e, de 1997 a 2001, ficou no primeiro lugar da lista dos livros mais vendidos nos EUA: "Tuesdays with Morrie" (publicado em português como "A Última Grande Conversa").

Ele acaba de publicar um novo livro que também se instalou no primeiro lugar dos mais vendidos nos EUA: "The Five People You Meet in Heaven" (as cinco pessoas que você encontra no Paraíso). É a história de Eddie, empregado da manutenção de um parque de diversões, que, aos 83 anos, morre num acidente e descobre que o primeiro estágio do Paraíso consiste em encontrar cinco pessoas que, de perto ou de longe, foram parte de sua vida. Diz a primeira: "Cada um de nós esteve na sua vida por uma razão. Na época, você podia não conhecer essa razão, e, por isso existe o Paraíso, para compreender sua vida na Terra". "É o maior presente que Deus pode lhe oferecer: entender o que aconteceu em sua vida, ter uma explicação. É a paz que você estava procurando." A recompensa por nossas atribulações será descobrir que elas faziam sentido, pois nada aconteceu por acaso, nenhum gesto foi à toa.

Em suma, não só sobreviveremos a nossa morte (o que já é bom), mas nossas vidas, por fajutas que sejam, são necessárias no grande esquema do mundo. Portanto, se você está resfriado e de cama, não é o caso de maldizer sua sorte; de fato, os vírus que infestam seu nariz foram desviados até lá para poupar a vida de uma criança carente e desnutrida que teria sucumbido ao ataque. Vamos ver quem explica por que um relâmpago, no domingo passado, logo em Bikoro, no Congo, matou 11 crianças e deixou 25 em coma.

Peço desculpa; é fácil ironizar. Na verdade, tenho simpatia pelo pequeno livro de Albom. Ele trará a milhões de pessoas um instante de sossego: a sensação de que seu esforço de viver não é fútil e de que o descaso do mundo para com suas existências é apenas aparente. Pois seríamos todos, de alguma forma, necessários aos olhos de uma razão superior: nenhuma vida, por miserável ou triste que seja, é desperdiçada.

Eddie, por exemplo, pensava assim: "Eu não era nada. Não consegui nada. Estava perdido". No encontro final, ele descobre que seu percurso de derrotas e renúncias obedecia a um desenho secreto que lhe é, enfim, revelado.

Em 1933, Arthur O. Lovejoy fundou a história das idéias com uma série de palestras proferidas em Harvard e publicadas sob o título "The Great Chain of Being: A Study in the History of an Idea" (A grande cadeia do ser: um estudo na história de uma idéia). Lovejoy reconstruía, de Platão ao romantismo, as vicissitudes do sonho humano de completude e continuidade, ou seja, de uma ordem racional em que nada seria arbitrário, casual ou contingente, de um mundo em que a questão do "porquê" seria legítima e sempre encontraria, mais cedo ou mais tarde, uma resposta satisfatória.

Ele reconhecia que a fé numa racionalidade do mundo permitiu o nascimento da ciência, mas acrescentava que esse sonho grandioso esbarra numa dificuldade. Por mais que acreditemos que alguma razão governa o mundo, resta que esta história teve um começo: o Big Bang ou a decisão divina de criar, por serem obras do acaso ou da liberdade do criador, escapam à razão que explicaria o Universo.

Do mesmo jeito, podemos aceitar a perspectiva de morrermos um dia, pois nossa morte não é incompatível com a idéia de que tudo tenha sentido. Aqui Ablom ajuda. Mas, em regra, achamos intolerável pensar que, como prometem os astrônomos, daqui a alguns bilhões de anos, o Universo acabará. Dar sentido a uma vida que termina é possível. Dar sentido ao fim de toda vida já é outra história.

Seja como for, o livro de Albom integra a nobre tradição descrita por Lovejoy. Desde Platão acreditamos que, como é dito a Eddie, uma explicação nos dará a paz que estamos procurando. Dar sentido ao mundo e à nossa existência seria, em suma, a condição de uma tranquila e boa saúde mental.

Pequeno problema: depois de quase 30 anos de prática clínica, ainda não sei direito se o que produz mais estragos numa vida é a falta ou o excesso de sentido. O que é pior, por exemplo? A convicção de que nossos atos de hoje confirmam inevitavelmente nosso passado, a ponto de configurar um destino, ou a sensação de sermos apenas um encontro fortuito de células, palavras e paixões?

O verdadeiro drama é que permanecemos na alternativa entre uma leveza intolerável e a procura de um sentido global. Como se os gestos e as escolhas de cada dia nunca se justificassem por virtude própria. Como se o sentido não pudesse ser uma invenção limitada, pontual e modesta. Como se apostar numa ordem do mundo fosse mais fácil que acreditar, simplesmente, no que a gente faz.

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