Até agora, são sete (três mulheres e quatro homens) os reservistas americanos apontados como responsáveis pelos abusos praticados na prisão de Abu Ghraib.
O comando afirma que eles agiram por inspiração própria: uma vez essas maçãs podres retiradas da cesta, o problema estará resolvido. Muitos comentadores acham difícil acreditar que os soldados tenham agido sem a ordem ou, no mínimo, o encorajamento implícito de seus superiores.
Mas num ponto todos parecem concordar: os sete seriam um bando de tarados.
Já surgiu a pergunta de sempre: como foram fabricados os sete horrorosos de Abu Ghraib? A gente é tarado de nascença ou se torna tarado à força de infâncias e experiências traumáticas, infelizes ou, simplesmente, tortas? No caso, essa pergunta é sem pertinência; eis por quê.
Quinze anos atrás, na França, defendi minha tese de doutorado em psicopatologia (o calhamaço, traduzido em inglês pela editora The Other Press, dorme na minha gaveta, à espera de revisão e cortes que nunca tenho tempo de fazer). O ponto de partida de minhas indagações era um batalhão de 500 reservistas da polícia alemã que, durante a Segunda Guerra Mundial, assassinaram metodicamente, com tiros individuais na nuca, milhares de judeus poloneses, famílias com crianças e mulheres.
Os ditos soldados alemães não eram tropa de elite. Tinham-se alistado na polícia porque essa escolha parecia garantir que ficariam longe da ativa, não arriscariam a pele e não teriam que matar inimigos. De forma parecida, os sete de Abu Ghraib entraram na National Guard (a reserva) para conseguir bolsas para a universidade; nada a ver com os anseios militaristas dos voluntários que compõem o Exército ou os fuzileiros navais.
Os reservistas alemães não tinham sido selecionados por alguma predisposição ao mal (quer fosse de nascença, quer fosse por história de vida). É impossível imaginar que, por um milagre do acaso, eles constituíssem uma turma de 500 assassinos potenciais. Mas, se eram pessoas quaisquer, como se tornaram capazes do horror?
Note-se que a obediência às ordens não explica nada. Contrariamente ao que se imagina, durante toda a Segunda Guerra, ninguém foi perseguido pela Justiça militar alemã por ter-se recusado a atormentar ou exterminar populações civis. Os poucos soldados que não quiseram obedecer a ordens genocidas foram apenas dispensados da tarefa.
Conclusão: há sujeitos que nada, em sua história ou em seus genes, predispõe a ser torturadores ou assassinos, mas que, numa situação social específica, sem precisar de ordens, tornam-se monstros. Ou seja, as condutas humanas não dependem só dos genes e da história singulares de cada um, mas também (e bastante) da situação coletiva na qual cada um está enredado na hora de agir.
Uma experiência famosa (e relevante na argumentação de minha tese) foi conduzida em 1971 por Philip Zimbardo, um grande psicólogo social que ainda ensina na Universidade Stanford, na Califórnia. Numa prisão simulada, Zimbardo encerrou 21 estudantes escolhidos a esmo e divididos (também a esmo) em dois grupos: presos e guardas. Os guardas eram livres para impor as punições que julgariam necessárias ao bom funcionamento do estabelecimento. A experiência, que devia durar duas semanas, foi interrompida no sexto dia, pois o comportamento dos guardas colocava em perigo a saúde mental e a incolumidade física dos presos. Alguns dos abusos praticados se pareciam estranhamente com o que aconteceu na prisão de Abu Ghraib: presos desnudados, encapuzados e por aí vai.
Quais situações sociais transformam moços e moças de boa índole em algozes? A condição básica para que isso aconteça é que a sensação de pertencer solidamente a um grupo seja servida como remédio contra as dores e as dúvidas que habitam a solidão do indivíduo. Em Abu Ghraib, as fotos-suvenir conferem aos sete a coesão "alegre" e brutal de um bando de amigos decididos a passar férias memoráveis.
Mas é fácil encontrar outros exemplos. A cada ano, uma excitação festiva e uma sensação coletiva de superioridade levam universitários bem-comportados a torturar calouros estarrecidos. Uma torcida pode converter um bom pai de família em vândalo. Uma multidão enfurecida faz de cada um de seus membros um linchador assassino. Uma burocracia bem organizada pode transformar seus tranqüilos funcionários em agentes de extermínio.
A plasticidade social do sujeito humano não constitui uma desculpa. Ao contrário, o indivíduo é sempre responsável por não saber resistir à sedução dos grupos nos quais ele se perde.
No entanto, há também a responsabilidade de quem cria as condições para que outros se percam na estupidez do grupo. Como? Por exemplo, organizando uma prisão em que os guardas teriam poderes incontrolados sobre seres ditos inferiores por raça, cultura ou religião.
Aliás, ao redigir uma ata de acusação contra o comando americano, eu me indignaria, claro, com o que aconteceu com os presos iraquianos de Abu Ghraib. Mas também me indignaria com o seguinte: foi permitido que sete jovens soldados se transformassem em torturadores.
27 maio 2004
20 maio 2004
De onde vem o autoritarismo?
A história é conhecida: o "New York Times" de 9 de maio publicou um artigo de seu correspondente, Larry Rohter, afirmando que havia no Brasil uma "preocupação nacional" com o uso de álcool pelo presidente Lula. O presidente reagiu cassando o visto do jornalista e ameaçando sua expulsão. O Legislativo intercedeu, a imprensa entrou em campanha, e uma liminar do Superior Tribunal de Justiça protegeu Rohter. O governo recuou. Ótimo.
Mas por que um Poder Executivo democrático se extraviou numa birra autoritária supérflua? Eis uma das respostas possíveis.
Em antropologia e em psicologia, vale esta implicação: quando um sujeito ou um grupo consideram que sua dignidade não é reconhecida pela comunidade da qual supostamente eles fazem parte, esse sujeito ou esse grupo se afirmam no braço.
Exemplo. A violência de nossas ruas não é fruto da miséria, mas da exclusão. Por mais que alguém seja desfavorecido, se ele constatar que a comunidade o reconhece como cidadão, seu protesto poderá respeitar a lei comum. Mas imagine que, pela desigualdade excessiva ou por tradição escravagista, pobres e miseráveis sejam propriamente deserdados. Aos filhos deserdados é recusada, com a herança, a qualidade de filhos; da mesma forma, aos deserdados sociais é negada a qualidade de cidadãos. O fracasso que lhes toca não é só econômico, ele é simbólico. E a quem é excluído simbolicamente (a quem se sente socialmente insignificante) sobra impor-se no real, na marra.
Esse mecanismo explica (parcialmente, é óbvio) por que, quando os deserdados ou seus representantes chegam ao poder, eles sucumbem facilmente a tentações autoritárias. Uma história de exclusão os predispõe a acreditar que, mesmo no governo, eles continuarão excluídos. Convencidos de que a dignidade de seu poder não está sendo reconhecida, fazem-se valer pela brutalidade.
Uma dinâmica parecida pode funcionar entre nações. O economista Alfredo Behrens me fazia observar, numa conversa, que "a suscetibilidade é uma doença afetiva do subdesenvolvimento".
Notas
1) Qualquer dificuldade simbólica (não só uma história de exclusão social) pode levar um governo a mostrar músculos desnecessários. É possível, por exemplo, que o autoritarismo do atual governo americano seja também um efeito do pleito duvidoso que elegeu o presidente Bush. Uma incerteza quanto à legitimidade do governo seria compensada pela brutalidade no exercício do poder.
2) Alguém deveria ter assinalado ao presidente Lula que o artigo de Rohter, estranho para os padrões de nossa imprensa, é banal na cultura americana, onde a) quem se dedica à vida pública renuncia à privacidade; b) é tarefa básica da imprensa vasculhar a vida do homem público. Nos EUA, qualquer candidato enfrenta interrogatórios, investigações, boatos sobre seus hábitos, costumes, comportamentos sexuais e por aí vai.
Alguém também deveria ter explicado ao presidente que, na cultura americana, a menção de sua difícil história familiar e do alcoolismo de seu pai não constituem uma ofensa. Para qualquer americano, esses traços valem como elogios, pois salientam a dificuldade do caminho que o filho percorreu.
3) O chanceler Celso Amorim declarou que o artigo de Rohter ofendia a honra da nação. É uma retórica análoga à dos fascismos europeus: às armas, cidadãos, alguém (um estrangeiro, claro) desrespeita a mãe pátria. Talvez fosse mais sábio entender que a nação tem mais a ver com um conjunto de valores do que com um território à espera de ser violado pelo invasor. Nessa ótica, quem ofende a nação é quem desrespeita um valor fundamental, como a liberdade de expressão. Por exemplo, aos americanos é permitido protestar queimando a bandeira, pois a nação seria ofendida muito mais pela interdição de queimar a bandeira do que pelo próprio ato de queimá-la.
4) O porta-voz da Presidência, André Singer, afirmou que o artigo de Rohter, ofendendo o presidente, ofendia a instituição da Presidência. Incompreensível: a Presidência continua intata mesmo se o presidente escarra, faz cocô, bebe, fuma, transa ou, pior, se ele é corrupto, cocainômano ou idiota. André Singer certamente leu "Os Dois Corpos do Rei", de Ernest Kantorowicz. Talvez o exemplar da biblioteca do Alvorada tenha sido perdido.
5) O antiamericanismo, por mais que tenha razões históricas, é uma escapatória tradicional para elites decadentes e vorazes. É o caso em muitos países islâmicos do Oriente Médio: fogo na bandeira americana e pedras no McDonald's são distrações que impedem de pensar que a situação é sobretudo culpa dos poderosos de casa. Não há por que suspeitar que o governo atual queira proteger as elites nacionais, mas, segundo o "Painel" da Folha de 13 de maio, o presidente contava com a boa repercussão interna de sua decisão: achava que o público gostaria (cito a Folha) "de ver o Brasil "enfrentando" os EUA". Como não dá mais para oferecer jogos de gladiadores ou bingos, demos ao povo um pouco de antiamericanismo, para que se divirta.
6) Depois de ter cassado o visto de Rohter, o presidente declarou que o gesto "serviria de exemplo". Em matéria de autoritarismo, essa foi a pior, a que me obrigou a escrever (postergando a continuação da coluna da semana passada). Pois me ensinaram assim: quando alguém quer nos intimidar, é a hora de se expor, pagar o blefe ou levar uma paulada, tanto faz; o importante é forçar quem intimida a mostrar seu jogo. Aliás, se alguém do governo não gostou do que escrevi, é só mandar um e-mail pedindo meu número de RNE.
Mas por que um Poder Executivo democrático se extraviou numa birra autoritária supérflua? Eis uma das respostas possíveis.
Em antropologia e em psicologia, vale esta implicação: quando um sujeito ou um grupo consideram que sua dignidade não é reconhecida pela comunidade da qual supostamente eles fazem parte, esse sujeito ou esse grupo se afirmam no braço.
Exemplo. A violência de nossas ruas não é fruto da miséria, mas da exclusão. Por mais que alguém seja desfavorecido, se ele constatar que a comunidade o reconhece como cidadão, seu protesto poderá respeitar a lei comum. Mas imagine que, pela desigualdade excessiva ou por tradição escravagista, pobres e miseráveis sejam propriamente deserdados. Aos filhos deserdados é recusada, com a herança, a qualidade de filhos; da mesma forma, aos deserdados sociais é negada a qualidade de cidadãos. O fracasso que lhes toca não é só econômico, ele é simbólico. E a quem é excluído simbolicamente (a quem se sente socialmente insignificante) sobra impor-se no real, na marra.
Esse mecanismo explica (parcialmente, é óbvio) por que, quando os deserdados ou seus representantes chegam ao poder, eles sucumbem facilmente a tentações autoritárias. Uma história de exclusão os predispõe a acreditar que, mesmo no governo, eles continuarão excluídos. Convencidos de que a dignidade de seu poder não está sendo reconhecida, fazem-se valer pela brutalidade.
Uma dinâmica parecida pode funcionar entre nações. O economista Alfredo Behrens me fazia observar, numa conversa, que "a suscetibilidade é uma doença afetiva do subdesenvolvimento".
Notas
1) Qualquer dificuldade simbólica (não só uma história de exclusão social) pode levar um governo a mostrar músculos desnecessários. É possível, por exemplo, que o autoritarismo do atual governo americano seja também um efeito do pleito duvidoso que elegeu o presidente Bush. Uma incerteza quanto à legitimidade do governo seria compensada pela brutalidade no exercício do poder.
2) Alguém deveria ter assinalado ao presidente Lula que o artigo de Rohter, estranho para os padrões de nossa imprensa, é banal na cultura americana, onde a) quem se dedica à vida pública renuncia à privacidade; b) é tarefa básica da imprensa vasculhar a vida do homem público. Nos EUA, qualquer candidato enfrenta interrogatórios, investigações, boatos sobre seus hábitos, costumes, comportamentos sexuais e por aí vai.
Alguém também deveria ter explicado ao presidente que, na cultura americana, a menção de sua difícil história familiar e do alcoolismo de seu pai não constituem uma ofensa. Para qualquer americano, esses traços valem como elogios, pois salientam a dificuldade do caminho que o filho percorreu.
3) O chanceler Celso Amorim declarou que o artigo de Rohter ofendia a honra da nação. É uma retórica análoga à dos fascismos europeus: às armas, cidadãos, alguém (um estrangeiro, claro) desrespeita a mãe pátria. Talvez fosse mais sábio entender que a nação tem mais a ver com um conjunto de valores do que com um território à espera de ser violado pelo invasor. Nessa ótica, quem ofende a nação é quem desrespeita um valor fundamental, como a liberdade de expressão. Por exemplo, aos americanos é permitido protestar queimando a bandeira, pois a nação seria ofendida muito mais pela interdição de queimar a bandeira do que pelo próprio ato de queimá-la.
4) O porta-voz da Presidência, André Singer, afirmou que o artigo de Rohter, ofendendo o presidente, ofendia a instituição da Presidência. Incompreensível: a Presidência continua intata mesmo se o presidente escarra, faz cocô, bebe, fuma, transa ou, pior, se ele é corrupto, cocainômano ou idiota. André Singer certamente leu "Os Dois Corpos do Rei", de Ernest Kantorowicz. Talvez o exemplar da biblioteca do Alvorada tenha sido perdido.
5) O antiamericanismo, por mais que tenha razões históricas, é uma escapatória tradicional para elites decadentes e vorazes. É o caso em muitos países islâmicos do Oriente Médio: fogo na bandeira americana e pedras no McDonald's são distrações que impedem de pensar que a situação é sobretudo culpa dos poderosos de casa. Não há por que suspeitar que o governo atual queira proteger as elites nacionais, mas, segundo o "Painel" da Folha de 13 de maio, o presidente contava com a boa repercussão interna de sua decisão: achava que o público gostaria (cito a Folha) "de ver o Brasil "enfrentando" os EUA". Como não dá mais para oferecer jogos de gladiadores ou bingos, demos ao povo um pouco de antiamericanismo, para que se divirta.
6) Depois de ter cassado o visto de Rohter, o presidente declarou que o gesto "serviria de exemplo". Em matéria de autoritarismo, essa foi a pior, a que me obrigou a escrever (postergando a continuação da coluna da semana passada). Pois me ensinaram assim: quando alguém quer nos intimidar, é a hora de se expor, pagar o blefe ou levar uma paulada, tanto faz; o importante é forçar quem intimida a mostrar seu jogo. Aliás, se alguém do governo não gostou do que escrevi, é só mandar um e-mail pedindo meu número de RNE.
13 maio 2004
As fotografias dos presos iraquianos
Na capa da Folha de sexta passada e nos jornais do mundo inteiro: a soldado americana Lynndie England segurando a tira que mantém um iraquiano, nu e rastejante, na coleira.
O governo americano anunciou que, infelizmente, o conjunto dos documentos sobre a tortura na prisão de Abu Ghraib contém coisas "piores", em foto e em vídeo.
A "New Yorker" publicou a fotografia de um iraquiano nu ameaçado por dois cachorros (capa da Folha de segunda-feira) e descreveu outra, em que aparece um preso ensangüentado. Mas, ao que parece, essas imagens são exceções.
Pelo que se sabe hoje (terça-feira, quando encerro esta coluna), as fotografias que veremos não são imagens de tortura física, mutilação ou assassinato. A galeria dos horrores é no mesmo tom das fotos da semana passada. Só para lembrar: além de Lynndie England com o preso na coleira, Lynndie e Charles Graner (seu companheiro de cama) triunfantes sobre um amontoado de iraquianos nus numa suruba forçada, Lynndie rindo enquanto aponta para o pênis de um preso, outro preso nu encapuzado com uma calcinha e por aí vai.
Segunda à noite, aliás, a CNN informou que, entre as novidades, se destacam presos forçados a simular sodomia e um ato sexual entre soldados americanos.
Apesar de tudo isso, a mídia, quase unânime, fala genericamente de violência e abuso; esquece pudicamente que as imagens são intragáveis por serem FOTOGRAFIAS ERÓTICAS.
Essas maiúsculas respondem ao esforço em curso para que desviemos o olhar do óbvio erotismo das fotografias da semana passada. Dois exemplos.
À esquerda, Robert Fisk (Folha de 9 de maio) dá prova de uma ingenuidade que beira a idiotice, perguntando, sério: quem treinou Lynndie e Charles, quem lhes ensinou essas práticas? Ele vê nos atos fotografados a prova evidente de que torturadores profissionais da CIA presidiram os interrogatórios. Mas de quais interrogatórios ele está falando? Será que Robert Fisk não vê que, nas fotos da semana passada, as humilhações impostas aos presos não têm outra finalidade senão o gozo de Lynndie, Charles e seus cúmplices (da CIA ou não)? Será que Robert Fisk nunca entrou numa "sex shop"? Será, em suma, que ele não percebe que as fotografias reproduzem a banalidade do repertório sadomasoquista? Será que não se dá conta de que a foto de Lynndie de uniforme e botas, com o preso na coleira, poderia ser, assim como está, o anúncio de uma "dominatrix"?
À direita (também na Folha de 9 de maio), Gerald Baker declara que a "depravação" de Lynndie e Charles "é tão difícil de compreender quanto é abominável". Abominável não há dúvida (por ser imposta aos presos); mas "difícil de compreender"? Como é possível, quando o sadomasoquismo integra o jogo sexual da metade (conto por baixo) dos casais do mundo? Qual é a surpresa?
Por que Fisk faz de conta que não percebe o erotismo das imagens? Por que Baker se apressa a declarar que elas manifestam um desvio patológico extremo?
Parece que, para ambos, a trivialidade que se trata de negar é a mesma que foi revelada pelo marquês de Sade: na modernidade, O EXERCÍCIO DO PODER É ERÓTICO. Incômodo, não é?
O presidente Bush disse que achou as imagens de Lynndie e Charles "sickening", nauseabundas. Acredito. Mas, se ele ficou com vontade de vomitar, é porque as imagens devem ter-lhe lembrado, justamente, que o poder é uma fonte de gozo, sempre: goza-se com um preso na coleira, assim como se goza ordenando que comece um bombardeio ou que as tropas avancem.
Não existem motivos nobres que possam eliminar a parte de gozo que acompanha o exercício do poder. Para nós, o poder é sempre erótico, e o erotismo é sempre atravessado pelo jogo do poder.
Quem não quer saber disso se condena a um uso louco do poder, inocentado por suas pretensas melhores intenções.
Se não reprimirem o erotismo que explode na cara de quem contempla as imagens da semana passada, talvez, desta vez, os americanos consigam inventar um uso mais complexo (e, por que não, mais envergonhado) de seu poder. Se isso acontecer, agradeçam a Lynndie e Charles.
Para complementar:
1) A imprensa americana não pára de contrapor duas mulheres soldados: Lynndie England, a abominável, e Jessica Lynch, que foi ferida, presa pelos iraquianos e liberada por um comando americano. Aposto que as duas receberão (para Jessica já é o caso) cartas com juras de amor e propostas de casamento. Muitos, como o presidente Bush, acharão "sickening" (nauseabundos) os homens que implorarão a Lynndie para que ela os amarre na coleira. O problema é que esses muitos não querem saber o seguinte: aqueles que escreveram para Jessica, por traz das promessas de carinho e flores (as famosas melhores intenções), são provavelmente levados pela fantasia de possuir o corpo da jovem como eles imaginam que foi possuído e estuprado pelos iraquianos que a prenderam (os quais, aliás, na ocasião, parece que se comportaram decentemente).
2) Domingo à noite, fiz uma pesquisa na internet. Em menos de duas horas encontrei o que procurava. Nas salas de bate-papo abertas pelos assinantes de um grande provedor americano, seção "Special Interests", numa sala cujo título convidativo era "Squeeze my balls" (aperte meus testículos), lá estava: alguém se apresentava como uma dominadora e usava, como "nick" (pseudônimo), numa palavra só, "LynndieEngland".
Não acabei, a coluna continua na semana que vem, salvo imprevistos.
O governo americano anunciou que, infelizmente, o conjunto dos documentos sobre a tortura na prisão de Abu Ghraib contém coisas "piores", em foto e em vídeo.
A "New Yorker" publicou a fotografia de um iraquiano nu ameaçado por dois cachorros (capa da Folha de segunda-feira) e descreveu outra, em que aparece um preso ensangüentado. Mas, ao que parece, essas imagens são exceções.
Pelo que se sabe hoje (terça-feira, quando encerro esta coluna), as fotografias que veremos não são imagens de tortura física, mutilação ou assassinato. A galeria dos horrores é no mesmo tom das fotos da semana passada. Só para lembrar: além de Lynndie England com o preso na coleira, Lynndie e Charles Graner (seu companheiro de cama) triunfantes sobre um amontoado de iraquianos nus numa suruba forçada, Lynndie rindo enquanto aponta para o pênis de um preso, outro preso nu encapuzado com uma calcinha e por aí vai.
Segunda à noite, aliás, a CNN informou que, entre as novidades, se destacam presos forçados a simular sodomia e um ato sexual entre soldados americanos.
Apesar de tudo isso, a mídia, quase unânime, fala genericamente de violência e abuso; esquece pudicamente que as imagens são intragáveis por serem FOTOGRAFIAS ERÓTICAS.
Essas maiúsculas respondem ao esforço em curso para que desviemos o olhar do óbvio erotismo das fotografias da semana passada. Dois exemplos.
À esquerda, Robert Fisk (Folha de 9 de maio) dá prova de uma ingenuidade que beira a idiotice, perguntando, sério: quem treinou Lynndie e Charles, quem lhes ensinou essas práticas? Ele vê nos atos fotografados a prova evidente de que torturadores profissionais da CIA presidiram os interrogatórios. Mas de quais interrogatórios ele está falando? Será que Robert Fisk não vê que, nas fotos da semana passada, as humilhações impostas aos presos não têm outra finalidade senão o gozo de Lynndie, Charles e seus cúmplices (da CIA ou não)? Será que Robert Fisk nunca entrou numa "sex shop"? Será, em suma, que ele não percebe que as fotografias reproduzem a banalidade do repertório sadomasoquista? Será que não se dá conta de que a foto de Lynndie de uniforme e botas, com o preso na coleira, poderia ser, assim como está, o anúncio de uma "dominatrix"?
À direita (também na Folha de 9 de maio), Gerald Baker declara que a "depravação" de Lynndie e Charles "é tão difícil de compreender quanto é abominável". Abominável não há dúvida (por ser imposta aos presos); mas "difícil de compreender"? Como é possível, quando o sadomasoquismo integra o jogo sexual da metade (conto por baixo) dos casais do mundo? Qual é a surpresa?
Por que Fisk faz de conta que não percebe o erotismo das imagens? Por que Baker se apressa a declarar que elas manifestam um desvio patológico extremo?
Parece que, para ambos, a trivialidade que se trata de negar é a mesma que foi revelada pelo marquês de Sade: na modernidade, O EXERCÍCIO DO PODER É ERÓTICO. Incômodo, não é?
O presidente Bush disse que achou as imagens de Lynndie e Charles "sickening", nauseabundas. Acredito. Mas, se ele ficou com vontade de vomitar, é porque as imagens devem ter-lhe lembrado, justamente, que o poder é uma fonte de gozo, sempre: goza-se com um preso na coleira, assim como se goza ordenando que comece um bombardeio ou que as tropas avancem.
Não existem motivos nobres que possam eliminar a parte de gozo que acompanha o exercício do poder. Para nós, o poder é sempre erótico, e o erotismo é sempre atravessado pelo jogo do poder.
Quem não quer saber disso se condena a um uso louco do poder, inocentado por suas pretensas melhores intenções.
Se não reprimirem o erotismo que explode na cara de quem contempla as imagens da semana passada, talvez, desta vez, os americanos consigam inventar um uso mais complexo (e, por que não, mais envergonhado) de seu poder. Se isso acontecer, agradeçam a Lynndie e Charles.
Para complementar:
1) A imprensa americana não pára de contrapor duas mulheres soldados: Lynndie England, a abominável, e Jessica Lynch, que foi ferida, presa pelos iraquianos e liberada por um comando americano. Aposto que as duas receberão (para Jessica já é o caso) cartas com juras de amor e propostas de casamento. Muitos, como o presidente Bush, acharão "sickening" (nauseabundos) os homens que implorarão a Lynndie para que ela os amarre na coleira. O problema é que esses muitos não querem saber o seguinte: aqueles que escreveram para Jessica, por traz das promessas de carinho e flores (as famosas melhores intenções), são provavelmente levados pela fantasia de possuir o corpo da jovem como eles imaginam que foi possuído e estuprado pelos iraquianos que a prenderam (os quais, aliás, na ocasião, parece que se comportaram decentemente).
2) Domingo à noite, fiz uma pesquisa na internet. Em menos de duas horas encontrei o que procurava. Nas salas de bate-papo abertas pelos assinantes de um grande provedor americano, seção "Special Interests", numa sala cujo título convidativo era "Squeeze my balls" (aperte meus testículos), lá estava: alguém se apresentava como uma dominadora e usava, como "nick" (pseudônimo), numa palavra só, "LynndieEngland".
Não acabei, a coluna continua na semana que vem, salvo imprevistos.
06 maio 2004
"Diários de Motocicleta"
Estréia amanhã "Diários de Motocicleta", de Walter Salles, inspirado nos diários que Ernesto Guevara escreveu em 1952, quando, com o amigo Alberto Granado, percorreu a América Latina da Argentina à Venezuela, de moto, a pé, de barco ou de carona.
No filme (como provavelmente aconteceu na realidade), a experiência de Ernesto e Alberto é um momento mágico, em que convivem as duas grandes aspirações das gerações que cresceram na segunda metade do século 20: o anseio de liberdade individual, que nos tornou todos um pouco mochileiros (de verdade ou em sonho), e o anseio de viver numa sociedade justa.
Essas vertentes de nossas esperanças se divorciaram precocemente, e o mundo se dividiu em dois blocos: os mochileiros sem justiça e os justiceiros sem mochila. Somos os filhos problemáticos desse casal divorciado e, como tais, logicamente, gostaríamos de juntar os cacos.
Talvez a vontade de reconciliar nossos dois anseios explique por que a figura do Che se tornou uma marca registrada do espírito de revolta.
Na vida de Ernesto Guevara, a travessia narrada no filme não é só um episódio juvenil, mas uma espécie de matriz. Guevara, por mais que se tornasse uma eminência da Revolução Cubana, nunca tirou o pé da estrada. Pouco importa decidir se, do ponto de vista político e estratégico, as expedições congolesa e boliviana fizeram sentido ou não. Para entender o mito do Che, vale uma outra consideração: as expedições foram, para ele, uma maneira (desvairada, se você quiser) de continuar a viagem, de não se transformar num burocrata do poder (num justiceiro sem mochila). Se o Che foi um ídolo pop de ambos os lados da Cortina de Ferro, é porque, durante toda a sua vida, como naquela viagem inicial, ele não parou de encarnar tanto nossos devaneios de livres aventuras quanto nossas exigências de engajamento radical.
Falando em radical, há, no filme, um diálogo memorável entre Alberto e Ernesto, sentados nas pedras de Machu Picchu. Nessa altura, os dois amigos já sentem os efeitos da viagem: a injustiça os assombra. Alberto tem a idéia de casar-se com uma descendente de inca: "Fundaríamos um partido indígena (...). Incentivamos todo o povo a votar, reativamos a revolução de Tupac Amaru, a revolução indo-americana, o que você acha?". Ernesto responde: "Uma revolução sem tiros? Você está louco" (é, aliás, um dos vários momentos em que Gael García Bernal, no papel de Ernesto, passa repentina e perfeitamente da ternura à dureza).
Brincando, poderíamos dizer que a proposta de Alberto foi tentada por João Ramalho com a ajuda de Bartira: chama-se Brasil. Quanto à proposta de Ernesto, ela não parou de fracassar durante o século 20: do Camboja à própria Cuba, passando pela China, o que foi ganho na ponta do fuzil custou caríssimo em liberdade e em vidas.
Mesmo assim, o caráter radical dos sentimentos de Alberto e Ernesto deixa um gosto amargo. É por decepção ou por covardia que nos tornamos incapazes de inventar e projetar utopias radicais?
É estranho assistir à viagem dos dois amigos numa época em que mal se consegue imaginar um mundo diferente e nos resta sonhar apenas com uma melhoria progressiva das condições econômicas de todos. É estranho escutar a conversa de Machu Picchu numa época em que nossa imagem do radicalismo extremo é o MST, um movimento inspirado por uma ideologia católica do fim do século 19, cuja visão do futuro é um mundo arcaico de pequenos proprietários rurais em economia de subsistência, todos rezando o ângelus do fim do dia. Legal e bem melhor que a fome, mas é isso que chamamos de radical?
Claro, a frustração de não saber mais sonhar é acompanhada pela consciência do malogro que sempre parece espreitar nossos sonhos. É difícil olhar para Ernesto jogando pedras no caminhão de uma mineradora sem pensar em suas lutas futuras. Mas, para mim (e deve ser assim para muitos), o caminho entre a raiva do jovem Ernesto e a morte do Che na Bolívia não é uma gloriosa ascensão em direção à santidade. A regra (trágica) é esta: a magnanimidade que pode nos levar a menosprezar nossa própria vida e a encarar o martírio é a mesma que pode nos induzir a menosprezar a vida dos que obstaculizam nossos projetos. Medindo as palavras: quase sempre as melhores intenções alegam sua generosidade para justificar a pior intransigência.
Constato que falei do filme menos do que queria. Mas falei da viagem na qual Alberto e Ernesto me levaram: montanhas-russas de contradições não resolvidas, no mundo e dentro de mim.
Na chegada, fico dividido dolorosamente entre a nostalgia de uma capacidade perdida de sonhar livremente e a consciência das restrições que os próprios sonhos, quando se realizaram, impuseram à liberdade. Acompanha a sensação de que essa divisão nos condena a uma intolerável preguiça.
P.S.:
1) O filme, isso consegui dizer (ao menos, espero), é uma viagem ao coração das esperanças (as quais carregam a ameaça das trevas, como qualquer sol de verão carrega a ameaça da chuva). Mas ele não é só isso: é também um maravilhosa história de amizade entre dois jovens.
2) Rodrigo de la Serna, no papel de Alberto, deveria ser um sério candidato ao Oscar de melhor ator coadjuvante.
No filme (como provavelmente aconteceu na realidade), a experiência de Ernesto e Alberto é um momento mágico, em que convivem as duas grandes aspirações das gerações que cresceram na segunda metade do século 20: o anseio de liberdade individual, que nos tornou todos um pouco mochileiros (de verdade ou em sonho), e o anseio de viver numa sociedade justa.
Essas vertentes de nossas esperanças se divorciaram precocemente, e o mundo se dividiu em dois blocos: os mochileiros sem justiça e os justiceiros sem mochila. Somos os filhos problemáticos desse casal divorciado e, como tais, logicamente, gostaríamos de juntar os cacos.
Talvez a vontade de reconciliar nossos dois anseios explique por que a figura do Che se tornou uma marca registrada do espírito de revolta.
Na vida de Ernesto Guevara, a travessia narrada no filme não é só um episódio juvenil, mas uma espécie de matriz. Guevara, por mais que se tornasse uma eminência da Revolução Cubana, nunca tirou o pé da estrada. Pouco importa decidir se, do ponto de vista político e estratégico, as expedições congolesa e boliviana fizeram sentido ou não. Para entender o mito do Che, vale uma outra consideração: as expedições foram, para ele, uma maneira (desvairada, se você quiser) de continuar a viagem, de não se transformar num burocrata do poder (num justiceiro sem mochila). Se o Che foi um ídolo pop de ambos os lados da Cortina de Ferro, é porque, durante toda a sua vida, como naquela viagem inicial, ele não parou de encarnar tanto nossos devaneios de livres aventuras quanto nossas exigências de engajamento radical.
Falando em radical, há, no filme, um diálogo memorável entre Alberto e Ernesto, sentados nas pedras de Machu Picchu. Nessa altura, os dois amigos já sentem os efeitos da viagem: a injustiça os assombra. Alberto tem a idéia de casar-se com uma descendente de inca: "Fundaríamos um partido indígena (...). Incentivamos todo o povo a votar, reativamos a revolução de Tupac Amaru, a revolução indo-americana, o que você acha?". Ernesto responde: "Uma revolução sem tiros? Você está louco" (é, aliás, um dos vários momentos em que Gael García Bernal, no papel de Ernesto, passa repentina e perfeitamente da ternura à dureza).
Brincando, poderíamos dizer que a proposta de Alberto foi tentada por João Ramalho com a ajuda de Bartira: chama-se Brasil. Quanto à proposta de Ernesto, ela não parou de fracassar durante o século 20: do Camboja à própria Cuba, passando pela China, o que foi ganho na ponta do fuzil custou caríssimo em liberdade e em vidas.
Mesmo assim, o caráter radical dos sentimentos de Alberto e Ernesto deixa um gosto amargo. É por decepção ou por covardia que nos tornamos incapazes de inventar e projetar utopias radicais?
É estranho assistir à viagem dos dois amigos numa época em que mal se consegue imaginar um mundo diferente e nos resta sonhar apenas com uma melhoria progressiva das condições econômicas de todos. É estranho escutar a conversa de Machu Picchu numa época em que nossa imagem do radicalismo extremo é o MST, um movimento inspirado por uma ideologia católica do fim do século 19, cuja visão do futuro é um mundo arcaico de pequenos proprietários rurais em economia de subsistência, todos rezando o ângelus do fim do dia. Legal e bem melhor que a fome, mas é isso que chamamos de radical?
Claro, a frustração de não saber mais sonhar é acompanhada pela consciência do malogro que sempre parece espreitar nossos sonhos. É difícil olhar para Ernesto jogando pedras no caminhão de uma mineradora sem pensar em suas lutas futuras. Mas, para mim (e deve ser assim para muitos), o caminho entre a raiva do jovem Ernesto e a morte do Che na Bolívia não é uma gloriosa ascensão em direção à santidade. A regra (trágica) é esta: a magnanimidade que pode nos levar a menosprezar nossa própria vida e a encarar o martírio é a mesma que pode nos induzir a menosprezar a vida dos que obstaculizam nossos projetos. Medindo as palavras: quase sempre as melhores intenções alegam sua generosidade para justificar a pior intransigência.
Constato que falei do filme menos do que queria. Mas falei da viagem na qual Alberto e Ernesto me levaram: montanhas-russas de contradições não resolvidas, no mundo e dentro de mim.
Na chegada, fico dividido dolorosamente entre a nostalgia de uma capacidade perdida de sonhar livremente e a consciência das restrições que os próprios sonhos, quando se realizaram, impuseram à liberdade. Acompanha a sensação de que essa divisão nos condena a uma intolerável preguiça.
P.S.:
1) O filme, isso consegui dizer (ao menos, espero), é uma viagem ao coração das esperanças (as quais carregam a ameaça das trevas, como qualquer sol de verão carrega a ameaça da chuva). Mas ele não é só isso: é também um maravilhosa história de amizade entre dois jovens.
2) Rodrigo de la Serna, no papel de Alberto, deveria ser um sério candidato ao Oscar de melhor ator coadjuvante.
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