20 maio 2004

De onde vem o autoritarismo?

A história é conhecida: o "New York Times" de 9 de maio publicou um artigo de seu correspondente, Larry Rohter, afirmando que havia no Brasil uma "preocupação nacional" com o uso de álcool pelo presidente Lula. O presidente reagiu cassando o visto do jornalista e ameaçando sua expulsão. O Legislativo intercedeu, a imprensa entrou em campanha, e uma liminar do Superior Tribunal de Justiça protegeu Rohter. O governo recuou. Ótimo.

Mas por que um Poder Executivo democrático se extraviou numa birra autoritária supérflua? Eis uma das respostas possíveis.

Em antropologia e em psicologia, vale esta implicação: quando um sujeito ou um grupo consideram que sua dignidade não é reconhecida pela comunidade da qual supostamente eles fazem parte, esse sujeito ou esse grupo se afirmam no braço.

Exemplo. A violência de nossas ruas não é fruto da miséria, mas da exclusão. Por mais que alguém seja desfavorecido, se ele constatar que a comunidade o reconhece como cidadão, seu protesto poderá respeitar a lei comum. Mas imagine que, pela desigualdade excessiva ou por tradição escravagista, pobres e miseráveis sejam propriamente deserdados. Aos filhos deserdados é recusada, com a herança, a qualidade de filhos; da mesma forma, aos deserdados sociais é negada a qualidade de cidadãos. O fracasso que lhes toca não é só econômico, ele é simbólico. E a quem é excluído simbolicamente (a quem se sente socialmente insignificante) sobra impor-se no real, na marra.

Esse mecanismo explica (parcialmente, é óbvio) por que, quando os deserdados ou seus representantes chegam ao poder, eles sucumbem facilmente a tentações autoritárias. Uma história de exclusão os predispõe a acreditar que, mesmo no governo, eles continuarão excluídos. Convencidos de que a dignidade de seu poder não está sendo reconhecida, fazem-se valer pela brutalidade.

Uma dinâmica parecida pode funcionar entre nações. O economista Alfredo Behrens me fazia observar, numa conversa, que "a suscetibilidade é uma doença afetiva do subdesenvolvimento".
Notas

1) Qualquer dificuldade simbólica (não só uma história de exclusão social) pode levar um governo a mostrar músculos desnecessários. É possível, por exemplo, que o autoritarismo do atual governo americano seja também um efeito do pleito duvidoso que elegeu o presidente Bush. Uma incerteza quanto à legitimidade do governo seria compensada pela brutalidade no exercício do poder.

2) Alguém deveria ter assinalado ao presidente Lula que o artigo de Rohter, estranho para os padrões de nossa imprensa, é banal na cultura americana, onde a) quem se dedica à vida pública renuncia à privacidade; b) é tarefa básica da imprensa vasculhar a vida do homem público. Nos EUA, qualquer candidato enfrenta interrogatórios, investigações, boatos sobre seus hábitos, costumes, comportamentos sexuais e por aí vai.

Alguém também deveria ter explicado ao presidente que, na cultura americana, a menção de sua difícil história familiar e do alcoolismo de seu pai não constituem uma ofensa. Para qualquer americano, esses traços valem como elogios, pois salientam a dificuldade do caminho que o filho percorreu.

3) O chanceler Celso Amorim declarou que o artigo de Rohter ofendia a honra da nação. É uma retórica análoga à dos fascismos europeus: às armas, cidadãos, alguém (um estrangeiro, claro) desrespeita a mãe pátria. Talvez fosse mais sábio entender que a nação tem mais a ver com um conjunto de valores do que com um território à espera de ser violado pelo invasor. Nessa ótica, quem ofende a nação é quem desrespeita um valor fundamental, como a liberdade de expressão. Por exemplo, aos americanos é permitido protestar queimando a bandeira, pois a nação seria ofendida muito mais pela interdição de queimar a bandeira do que pelo próprio ato de queimá-la.

4) O porta-voz da Presidência, André Singer, afirmou que o artigo de Rohter, ofendendo o presidente, ofendia a instituição da Presidência. Incompreensível: a Presidência continua intata mesmo se o presidente escarra, faz cocô, bebe, fuma, transa ou, pior, se ele é corrupto, cocainômano ou idiota. André Singer certamente leu "Os Dois Corpos do Rei", de Ernest Kantorowicz. Talvez o exemplar da biblioteca do Alvorada tenha sido perdido.

5) O antiamericanismo, por mais que tenha razões históricas, é uma escapatória tradicional para elites decadentes e vorazes. É o caso em muitos países islâmicos do Oriente Médio: fogo na bandeira americana e pedras no McDonald's são distrações que impedem de pensar que a situação é sobretudo culpa dos poderosos de casa. Não há por que suspeitar que o governo atual queira proteger as elites nacionais, mas, segundo o "Painel" da Folha de 13 de maio, o presidente contava com a boa repercussão interna de sua decisão: achava que o público gostaria (cito a Folha) "de ver o Brasil "enfrentando" os EUA". Como não dá mais para oferecer jogos de gladiadores ou bingos, demos ao povo um pouco de antiamericanismo, para que se divirta.

6) Depois de ter cassado o visto de Rohter, o presidente declarou que o gesto "serviria de exemplo". Em matéria de autoritarismo, essa foi a pior, a que me obrigou a escrever (postergando a continuação da coluna da semana passada). Pois me ensinaram assim: quando alguém quer nos intimidar, é a hora de se expor, pagar o blefe ou levar uma paulada, tanto faz; o importante é forçar quem intimida a mostrar seu jogo. Aliás, se alguém do governo não gostou do que escrevi, é só mandar um e-mail pedindo meu número de RNE.

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