06 maio 2004

"Diários de Motocicleta"

Estréia amanhã "Diários de Motocicleta", de Walter Salles, inspirado nos diários que Ernesto Guevara escreveu em 1952, quando, com o amigo Alberto Granado, percorreu a América Latina da Argentina à Venezuela, de moto, a pé, de barco ou de carona.

No filme (como provavelmente aconteceu na realidade), a experiência de Ernesto e Alberto é um momento mágico, em que convivem as duas grandes aspirações das gerações que cresceram na segunda metade do século 20: o anseio de liberdade individual, que nos tornou todos um pouco mochileiros (de verdade ou em sonho), e o anseio de viver numa sociedade justa.

Essas vertentes de nossas esperanças se divorciaram precocemente, e o mundo se dividiu em dois blocos: os mochileiros sem justiça e os justiceiros sem mochila. Somos os filhos problemáticos desse casal divorciado e, como tais, logicamente, gostaríamos de juntar os cacos.
Talvez a vontade de reconciliar nossos dois anseios explique por que a figura do Che se tornou uma marca registrada do espírito de revolta.

Na vida de Ernesto Guevara, a travessia narrada no filme não é só um episódio juvenil, mas uma espécie de matriz. Guevara, por mais que se tornasse uma eminência da Revolução Cubana, nunca tirou o pé da estrada. Pouco importa decidir se, do ponto de vista político e estratégico, as expedições congolesa e boliviana fizeram sentido ou não. Para entender o mito do Che, vale uma outra consideração: as expedições foram, para ele, uma maneira (desvairada, se você quiser) de continuar a viagem, de não se transformar num burocrata do poder (num justiceiro sem mochila). Se o Che foi um ídolo pop de ambos os lados da Cortina de Ferro, é porque, durante toda a sua vida, como naquela viagem inicial, ele não parou de encarnar tanto nossos devaneios de livres aventuras quanto nossas exigências de engajamento radical.

Falando em radical, há, no filme, um diálogo memorável entre Alberto e Ernesto, sentados nas pedras de Machu Picchu. Nessa altura, os dois amigos já sentem os efeitos da viagem: a injustiça os assombra. Alberto tem a idéia de casar-se com uma descendente de inca: "Fundaríamos um partido indígena (...). Incentivamos todo o povo a votar, reativamos a revolução de Tupac Amaru, a revolução indo-americana, o que você acha?". Ernesto responde: "Uma revolução sem tiros? Você está louco" (é, aliás, um dos vários momentos em que Gael García Bernal, no papel de Ernesto, passa repentina e perfeitamente da ternura à dureza).

Brincando, poderíamos dizer que a proposta de Alberto foi tentada por João Ramalho com a ajuda de Bartira: chama-se Brasil. Quanto à proposta de Ernesto, ela não parou de fracassar durante o século 20: do Camboja à própria Cuba, passando pela China, o que foi ganho na ponta do fuzil custou caríssimo em liberdade e em vidas.

Mesmo assim, o caráter radical dos sentimentos de Alberto e Ernesto deixa um gosto amargo. É por decepção ou por covardia que nos tornamos incapazes de inventar e projetar utopias radicais?

É estranho assistir à viagem dos dois amigos numa época em que mal se consegue imaginar um mundo diferente e nos resta sonhar apenas com uma melhoria progressiva das condições econômicas de todos. É estranho escutar a conversa de Machu Picchu numa época em que nossa imagem do radicalismo extremo é o MST, um movimento inspirado por uma ideologia católica do fim do século 19, cuja visão do futuro é um mundo arcaico de pequenos proprietários rurais em economia de subsistência, todos rezando o ângelus do fim do dia. Legal e bem melhor que a fome, mas é isso que chamamos de radical?

Claro, a frustração de não saber mais sonhar é acompanhada pela consciência do malogro que sempre parece espreitar nossos sonhos. É difícil olhar para Ernesto jogando pedras no caminhão de uma mineradora sem pensar em suas lutas futuras. Mas, para mim (e deve ser assim para muitos), o caminho entre a raiva do jovem Ernesto e a morte do Che na Bolívia não é uma gloriosa ascensão em direção à santidade. A regra (trágica) é esta: a magnanimidade que pode nos levar a menosprezar nossa própria vida e a encarar o martírio é a mesma que pode nos induzir a menosprezar a vida dos que obstaculizam nossos projetos. Medindo as palavras: quase sempre as melhores intenções alegam sua generosidade para justificar a pior intransigência.

Constato que falei do filme menos do que queria. Mas falei da viagem na qual Alberto e Ernesto me levaram: montanhas-russas de contradições não resolvidas, no mundo e dentro de mim.
Na chegada, fico dividido dolorosamente entre a nostalgia de uma capacidade perdida de sonhar livremente e a consciência das restrições que os próprios sonhos, quando se realizaram, impuseram à liberdade. Acompanha a sensação de que essa divisão nos condena a uma intolerável preguiça.

P.S.:
1) O filme, isso consegui dizer (ao menos, espero), é uma viagem ao coração das esperanças (as quais carregam a ameaça das trevas, como qualquer sol de verão carrega a ameaça da chuva). Mas ele não é só isso: é também um maravilhosa história de amizade entre dois jovens.

2) Rodrigo de la Serna, no papel de Alberto, deveria ser um sério candidato ao Oscar de melhor ator coadjuvante.

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