13 maio 2004

As fotografias dos presos iraquianos

Na capa da Folha de sexta passada e nos jornais do mundo inteiro: a soldado americana Lynndie England segurando a tira que mantém um iraquiano, nu e rastejante, na coleira.

O governo americano anunciou que, infelizmente, o conjunto dos documentos sobre a tortura na prisão de Abu Ghraib contém coisas "piores", em foto e em vídeo.

A "New Yorker" publicou a fotografia de um iraquiano nu ameaçado por dois cachorros (capa da Folha de segunda-feira) e descreveu outra, em que aparece um preso ensangüentado. Mas, ao que parece, essas imagens são exceções.

Pelo que se sabe hoje (terça-feira, quando encerro esta coluna), as fotografias que veremos não são imagens de tortura física, mutilação ou assassinato. A galeria dos horrores é no mesmo tom das fotos da semana passada. Só para lembrar: além de Lynndie England com o preso na coleira, Lynndie e Charles Graner (seu companheiro de cama) triunfantes sobre um amontoado de iraquianos nus numa suruba forçada, Lynndie rindo enquanto aponta para o pênis de um preso, outro preso nu encapuzado com uma calcinha e por aí vai.

Segunda à noite, aliás, a CNN informou que, entre as novidades, se destacam presos forçados a simular sodomia e um ato sexual entre soldados americanos.

Apesar de tudo isso, a mídia, quase unânime, fala genericamente de violência e abuso; esquece pudicamente que as imagens são intragáveis por serem FOTOGRAFIAS ERÓTICAS.
Essas maiúsculas respondem ao esforço em curso para que desviemos o olhar do óbvio erotismo das fotografias da semana passada. Dois exemplos.

À esquerda, Robert Fisk (Folha de 9 de maio) dá prova de uma ingenuidade que beira a idiotice, perguntando, sério: quem treinou Lynndie e Charles, quem lhes ensinou essas práticas? Ele vê nos atos fotografados a prova evidente de que torturadores profissionais da CIA presidiram os interrogatórios. Mas de quais interrogatórios ele está falando? Será que Robert Fisk não vê que, nas fotos da semana passada, as humilhações impostas aos presos não têm outra finalidade senão o gozo de Lynndie, Charles e seus cúmplices (da CIA ou não)? Será que Robert Fisk nunca entrou numa "sex shop"? Será, em suma, que ele não percebe que as fotografias reproduzem a banalidade do repertório sadomasoquista? Será que não se dá conta de que a foto de Lynndie de uniforme e botas, com o preso na coleira, poderia ser, assim como está, o anúncio de uma "dominatrix"?

À direita (também na Folha de 9 de maio), Gerald Baker declara que a "depravação" de Lynndie e Charles "é tão difícil de compreender quanto é abominável". Abominável não há dúvida (por ser imposta aos presos); mas "difícil de compreender"? Como é possível, quando o sadomasoquismo integra o jogo sexual da metade (conto por baixo) dos casais do mundo? Qual é a surpresa?

Por que Fisk faz de conta que não percebe o erotismo das imagens? Por que Baker se apressa a declarar que elas manifestam um desvio patológico extremo?

Parece que, para ambos, a trivialidade que se trata de negar é a mesma que foi revelada pelo marquês de Sade: na modernidade, O EXERCÍCIO DO PODER É ERÓTICO. Incômodo, não é?
O presidente Bush disse que achou as imagens de Lynndie e Charles "sickening", nauseabundas. Acredito. Mas, se ele ficou com vontade de vomitar, é porque as imagens devem ter-lhe lembrado, justamente, que o poder é uma fonte de gozo, sempre: goza-se com um preso na coleira, assim como se goza ordenando que comece um bombardeio ou que as tropas avancem.
Não existem motivos nobres que possam eliminar a parte de gozo que acompanha o exercício do poder. Para nós, o poder é sempre erótico, e o erotismo é sempre atravessado pelo jogo do poder.

Quem não quer saber disso se condena a um uso louco do poder, inocentado por suas pretensas melhores intenções.

Se não reprimirem o erotismo que explode na cara de quem contempla as imagens da semana passada, talvez, desta vez, os americanos consigam inventar um uso mais complexo (e, por que não, mais envergonhado) de seu poder. Se isso acontecer, agradeçam a Lynndie e Charles.
Para complementar:

1) A imprensa americana não pára de contrapor duas mulheres soldados: Lynndie England, a abominável, e Jessica Lynch, que foi ferida, presa pelos iraquianos e liberada por um comando americano. Aposto que as duas receberão (para Jessica já é o caso) cartas com juras de amor e propostas de casamento. Muitos, como o presidente Bush, acharão "sickening" (nauseabundos) os homens que implorarão a Lynndie para que ela os amarre na coleira. O problema é que esses muitos não querem saber o seguinte: aqueles que escreveram para Jessica, por traz das promessas de carinho e flores (as famosas melhores intenções), são provavelmente levados pela fantasia de possuir o corpo da jovem como eles imaginam que foi possuído e estuprado pelos iraquianos que a prenderam (os quais, aliás, na ocasião, parece que se comportaram decentemente).

2) Domingo à noite, fiz uma pesquisa na internet. Em menos de duas horas encontrei o que procurava. Nas salas de bate-papo abertas pelos assinantes de um grande provedor americano, seção "Special Interests", numa sala cujo título convidativo era "Squeeze my balls" (aperte meus testículos), lá estava: alguém se apresentava como uma dominadora e usava, como "nick" (pseudônimo), numa palavra só, "LynndieEngland".

Não acabei, a coluna continua na semana que vem, salvo imprevistos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário