10 junho 2004

Benfica e a Funai da marginalidade

Entre os mortos do motim da Casa de Custódia de Benfica, no Rio de Janeiro, havia dois presos condenados "só" por dano e furto. É óbvio que eles deveriam estar cumprindo sua pena num outro lugar ou, se esse outro lugar não existe, em regime aberto. É triste que a Justiça funcione de maneira abstrata, fingindo ignorar as condições e os riscos objetivos do cárcere onde ela encerra os condenados.

Mas será que é sempre desejável que a administração da Justiça se dobre a exigências práticas?
A matança de Benfica começou quando um grupo de rebelados do Comando Vermelho invadiu o andar onde cumpriam sua pena os membros do Terceiro Comando. Provavelmente, o horror teria sido evitado se os condenados fossem divididos em cárceres diferentes, segundo a organização criminosa à qual eles declaram pertencer (Amigo dos Amigos, Terceiro Comando, Comando Vermelho etc.). É uma consideração prática: o Estado é responsável pela vida de quem está sob sua custódia, portanto (já que nossos recursos são limitados) adotemos disposições que tornem menos custoso garantir a segurança dos presos. Faz sentido.

No entanto, sou sensível ao argumento de Astério Pereira dos Santos, secretário da Administração Penitenciária do Rio: quem manda na prisão deve ser o governo, não as organizações criminosas.

Aceitar o princípio da divisão dos presos segundo suas facções é uma maneira de considerá-los estrangeiros à nossa comunidade. Como é isso?

Um exemplo: na hora de instituir reservas indígenas, ninguém propõe um mesmo espaço para tribos que tradicionalmente se odeiam e se matam com gosto. Essa escolha se impõe porque pensamos que é nosso dever respeitar o que sobrou das culturas indígenas, ou seja, porque o projeto de nossa comunidade, no que concerne aos índios, não é sua integração como cidadãos quaisquer. Por paixão etnográfica ou pela culpa da conquista e do extermínio passados, os índios são, para nós, um mundo separado, com regras próprias, que queremos preservar.

Ora, será que os criminosos, em nosso país, são afastados do projeto de uma cidadania nacional a ponto de que a Administração Penitenciária deveria se tornar uma espécie de Funai da marginalidade?

A comparação é aproximativa. Uma verdadeira Funai da marginalidade operaria antes do encarceramento; erigiria muros entre as favelas, delimitando espaços autônomos, cada um dominado e administrado por uma facção. A divisão nos cárceres é mais parecida com a organização de um zoológico, em que animais inimigos são guardados em jaulas distintas e afastadas (para seu próprio bem, naturalmente).

O pressuposto, em ambos os casos, é o mesmo: marginais e criminosos não fazem parte de nosso mundo. É preciso, de uma maneira ou de outra, mantê-los em seu hábitat natural, que pode ser diferente segundo as "espécies" (os ursos brancos não convivem com os ursos negros).

Quais são os argumentos que se opõem à idéia de um mesmo cárcere para todos?

Há o pragmatismo já mencionado: a gestão da prisão será mais fácil se os presos forem divididos em cárceres diferentes, segundo suas facções.

E há a consideração seguinte. A exclusão social é um processo antigo, pelo qual nossa coletividade é responsável. É irrisório que, logo na hora da prisão, a comunidade nacional se lembre de que seu projeto deveria valer para todos e imponha pelo cárcere comum uma igualdade de direito que é desmentida fora da prisão. Vocês são bichos, tratamos vocês como tais e pouco fazemos para que se tornem gente, mas pretendemos forçá-los a ser cidadãos como nós na hora de enfiá-los numa jaula. Irônico, não é?

Sobre o debate, paira uma reflexão cínica que é freqüente nestes dias: será que o governo carioca não inventou a fórmula certa? Coloque-os todos juntos, feche os olhos e deixe que se matem. Ninguém poderá dizer que houve uma chacina de Estado, tipo Carandiru, e o resultado será o mesmo: a solução para a sobrecarga da população carcerária e uma economia de dinheiro público. Cá entre nós, não dá para dizer que foi uma grande perda para nossa sociedade, não é?

Pois é, o que aconteceu em Benfica constitui ou não uma perda para nossa sociedade?

Não se trata de discutir sobre a promessa e o valor das vidas que foram perdidas. Sei que eram perdidas há tempo; ninguém é ingênuo a ponto de acreditar que o cárcere teria reabilitado os presos que morreram e os teria devolvido à comunidade como cidadãos.

A perda que nos espreita é outra. Se tratarmos os marginais como índios, "respeitando" suas tribos, teremos que admitir que o Brasil não é nem o projeto de uma Belíndia, mas o teatro de uma guerra entre duas nações distintas, Bélgica e Índia.

Se desrespeitarmos as tribos na esperança de que as prisões se tornem assim matadouros da escória social, nossa Justiça será apenas uma arma de extermínio no conflito entre as ditas duas nações.

Para não perder o rumo de um projeto nacional, resta um caminho árduo. Consiste em encarcerar os presos não como membros de uma ou outra facção criminosa, mas como cidadãos. E em fazer (em gastar) o que é preciso para que, mesmo assim, seja garantida a segurança de todos.

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