17 junho 2004

Guerras íntimas

Trégua de política nacional e internacional. E volta às guerras íntimas.

A ocasião surgiu na semana passada, quando eu estava atendendo um casal briguento e, como de costume, tentava propor uma mediação.

Em regra, nas brigas, a gente age como aquele jogador que está perdendo e dobra raivosamente as apostas até, num último gesto, colocar em cima da mesa sua camisa, seu cachorro e sua aliança: a perspectiva de uma catástrofe conclusiva nos fascina com uma falsa promessa de paz no fim do túnel.

É banal, portanto, que, ao ser consultado por um casal em crise, o terapeuta tente acalmar o jogo.
Era o que eu estava fazendo, quando, de repente, o marido me interrompeu com uma certa irritação: "Mas quando você considera que um casamento não vale mais a pena?".

A pergunta me pegou. E gostaria de tentar responder.

Todos vivemos, de uma maneira ou de outra, um conflito entre o que desejamos e o que nos permitimos desejar. E é bom que seja assim. Se nos autorizássemos tudo o que queremos, a vida e a convivência social seriam complicadas.

Em outras palavras, é normal que a gente navegue num equilíbrio mais ou menos precário entre os desejos que brotam (devaneios, projetos, tesões) e as mil vozes (conscientes ou inconscientes) que nos inibem, que nos pedem procrastinação e desistência ou, simplesmente, que propõem escolhas diferentes.

A indústria farmacêutica conhece bem esse conflito básico; seus maiores sucessos comerciais são remédios que tentam balancear as duas vertentes. A Ritalina para quem não consegue focalizar os esforços, de tanto que seus desejos proliferam; os antidepressivos para quem não deseja o suficiente, de tanto escutar as vozes que aconselham a abstenção, a espera, a prudência e a preguiça.

É irônico, aliás, que, depois de alguns séculos de modernidade (de dois a cinco, segundo a data que a gente escolha para começar a contar), sejamos reduzidos a delegar à química a tarefa de disciplinar o desejo. Mas esse é outro assunto.

Recursos químicos à parte, o conflito em questão produz quase sempre projeções. Ou seja, é freqüente que, para evitar os tormentos da contradição interna, atribuamos aos outros (em particular, aos que nos são mais próximos, mas também ao mundo em geral) a função de nos impedir de desejar além da conta.

São aquelas lamúrias: queria mesmo ser trompetista, mas não deu porque é uma carreira incerta e é preciso pagar a mensalidade da escola das crianças; queria passar as noites nas casas de suingue, mas não ficaria bem para minha mulher se encontrássemos alguém que a conhece; queria passar o dia como uma amélia, cozinhando geléias naturais e bolos de chocolate, mas meu marido quer uma boneca de luxo.

É claro que nós mesmos preferimos a família ao trompete, a respeitabilidade ao suingue e a vida urbana à geléia. Mas é mais fácil encarar nossas desistências transformando os outros em imaginários carrascos de nosso desejo: "Foi por causa deles".

É banal, portanto, que, num casal, cada um considere que o parceiro e o casamento são responsáveis pelas renúncias. "Se não tivesse casado tão cedo, hoje seria atriz", e fica pudicamente esquecido que a futura atriz preferiu casar a encarar filas, testes, provas e fracassos.

Essas acusações, triviais numa crise, não constituem uma boa razão para descartar a relação. Ao contrário, é graças a essas acusações recíprocas que cada um poderia encontrar (e, eventualmente, confirmar ou amenizar) as defesas que ele mesmo inventou para evitar um de seus desejos. Brigando com o outro, que quis um filho logo e, "portanto, acabou com minha carreira de cantora lírica", ganho uma chance de descobrir que, de fato, eu mesma quis ter um filho e que ainda me debato com o preço que esse desejo me custou (a carreira de cantora lírica, que, aliás, talvez eu não tivesse a coragem de peitar). Em suma, acusando o outro, consigo brigar com minhas próprias contradições, preguiças, inibições ou covardias.

Em geral, quando as separações acontecem porque acusamos nosso parceiro de ser um obstáculo em nossa vida, o prognóstico é péssimo. Se o outro era a tela na qual eu projetava impedimentos que eu mesmo invento, é quase garantido que projetarei os mesmos impedimentos no parceiro de minha próxima relação. Em vez de separar-se, seria melhor se dar o tempo e a coragem de aproveitar o dissídio e lidar com aquela parte de mim que me incomoda e que meu parceiro me faz o favor de encarnar.

Então, como responder à pergunta do marido? Será que nenhuma separação se justifica?

Não é bem assim, pois acontece, às vezes, que um dos parceiros vista com gosto a camisa que lhe é oferecida, ou seja, acontece que ele ou ela achem graça em colocar limites ao desejo do outro.

A diferença é pequena, mas decisiva e fácil de ser constatada: tudo depende de quem fala. Se eu me queixo de que o outro me impede de ser rei da China, muito bem, é minha projeção; melhor perseverar e, quem sabe, descobrir, na briga, por que eu mesmo não me mudei para Pequim. Mas, se meu parceiro se queixa de que tenho o extravagante desejo de ser rei da China, o casal está próximo de sua falência.

Pois, afinal, um casal existe para ampliar, não para limitar o campo do que cada um é capaz de sonhar.

A união, como prega o ditado, deveria fazer a força.

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