03 junho 2004

Paranóias e conspirações

Ainda bem que, de vez em quando, alguém me "informa" direito (as aspas significam que estou sendo irônico; melhor dizer, nunca se sabe).

Por exemplo, você sabia que, entre o 11 de setembro de 2001 e o dia dos atentados de Madri, passaram-se exatamente 911 dias? Ora, 9-11 (setembro-11) é, nos EUA, a abreviação da data do ataque ao World Trade Center. Mas não pense que se trate apenas de uma "óbvia" assinatura da Al Qaeda. Não, isso é só o começo: 911 é o número telefônico que, em Nova York, serve para chamar a polícia em caso de urgência. Ironia dos terroristas? Fácil demais. Será que não é um criptograma que revela os verdadeiros autores do atentado? Não é a prova de que foi o governo americano que orquestrou o ataque que justifica a guerra em curso?

Você duvida? É porque você não sabe que, de manhã cedo, em 11 de setembro, milhares de judeus que trabalhavam nas torres gêmeas (sempre eles, ah?) receberam telefonemas anônimos exortando-os a não ir para o trabalho naquele dia. Está entendendo?

Outro exemplo. Você não estranhou o momento em que o "New York Times" publicou o artigo de Larry Rohter sobre a "preocupação nacional" brasileira com os hábitos alcoólicos do presidente Lula? Foi logo quando o Brasil acabava de ganhar a guerra dos subsídios agrícolas na Organização Mundial do Comércio. Quem tinha interesse em desacreditar o Brasil pelo mundo afora, ah? E se Larry Rohter fosse um agente da CIA há tempo escondido no Brasil para ser ativado de repente na hora de tamanha necessidade estratégica? Aliás, nem é preciso que ele seja um agente, pois é notório (não é?) que a imprensa americana é escrava do complexo político-militar-midiático do império. Rohter pode ter obedecido ao "New York Times", que, por sua vez, deve ter respondido a um daqueles telefonemas do governo que eles recebem a cada dia na hora de decidir a pauta.

Ao escutar pacientes paranóicos capazes de delírios organizados, é fácil constatar que um delírio não é necessariamente menos verossímil que outras crenças que não nos parecem delirantes. Por exemplo, a convicção de que Deus exige que os homens se transformem em mulheres para servi-lo melhor é tão verossímil quanto a idéia de que, a cada missa, a hóstia se transforma realmente no corpo de Cristo. A diferença é apenas esta: o projeto de mudar de sexo para servir a Deus não é coletivo, enquanto a transformação da hóstia (a transubstanciação) é uma fé compartilhada.

Os delírios são crenças que não conseguem se socializar.

Hoje essa diferença se tornou incerta. Graças à internet, qualquer delírio pode se tornar público, circular e conquistar adeptos. Logicamente, este é o argumento decisivo de quem delira: está num site na internet. E, olhe lá, é um site que recebe 12 mil visitantes por dia.

Mas a facilidade com a qual os delírios se socializam não explica sua extraordinária proliferação.
Em 11 de maio (de novo, o 11, viu?), chegou às livrarias americanas "The Rule of Four" (A Regra de Quatro), de Ian Caldwell e Dustin Thomason. Em duas semanas, o romance já é número três da lista dos mais vendidos. Conta a história de dois amigos que devem descobrir os arcanos de um texto renascentista (que existe e que é mesmo repleto de enigmas não resolvidos) para entender o que acontece ao redor deles e, enfim, salvar a pele. Em princípio, quem gostou de "O Código da Vinci", de Dan Brown (número um da lista há 60 semanas nos EUA e agora número um no Brasil), vai gostar de "The Rule of Four".

Os comentadores propõem uma genealogia que começa com "O Nome da Rosa", de Umberto Eco, e continua com esses dois romances recentes. De fato, os três livros têm em comum um gosto pela cultura da Idade Média (no caso de "O Nome da Rosa") ou do Renascimento (para os outros dois), épocas em que o mundo ainda era encantado, ou seja, percebido como um teatro de símbolos e signos que, uma vez decifrados, revelariam que os desenhos da providência divina se estendem, feito vasos capilares, até a periferia da criação. Naquela época, só vivia uma vida sem sentido quem não se desse ao trabalho de resolver as charadas inscritas em cada página do mundo.

Mas "O Nome da Rosa" conta uma história policial acontecida na Idade Média (por mais que ela tenha conseqüências em nossa cultura), enquanto "O Código da Vinci" e "The Rule of Four" nos propõem enigmas cuja solução explica os malogros do presente (para manter a filiação com Umberto Eco, os dois romances são mais comparáveis com "O Pêndulo de Foucault" do que com "O Nome da Rosa"). Em suma, o leitor de hoje gosta de enigmas porque eles confirmam que a bagunça de nosso mundo esconde um sentido.

Depois de dois séculos de individualismo realizado, estamos aparentemente cansados de cruzar os dedos esperando com Adam Smith que, por um acerto do acaso, as peripécias de nossas vidas singulares resultem num mundo minimamente ordenado e compreensível.

Somos animados pela mesma angústia que anima os delírios da internet, pois descobrimos, com razão, que a tragédia não é que poderosos e feiosos tramem e manipulem nas sombras. A tragédia, o intolerável é que os feiosos, exatamente como nós, são um atrapalhado exército de Brancaleone. E nossa história, como dizia o poeta, é um conto cheio de barulho e fúria, que não significa nada.

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