Estréiam amanhã dois documentários notáveis, "Entreatos" e "Peões".
Em "Entreatos", João Moreira Salles documenta os últimos 30 dias da campanha presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, desde pouco antes do primeiro turno até o dia da vitória.
Em "Peões", Eduardo Coutinho entrevista 21 metalúrgicos e metalúrgicas do ABC paulista que participaram das greves de 1979 e 1980, quando se afirmou a liderança de Lula.
Os filmes são formalmente diferentes: "Entreatos" é uma filmagem indiscreta, uma espécie de longo flagrante, enquanto "Peões" é um documentário ativo, em que os protagonistas são convidados a falar. Eles são unidos, obviamente, por um fio narrativo, que vai do bojo do percurso político de Lula até sua eleição à Presidência.
E há uma outra razão que reúne os dois filmes: juntos, eles constituem uma meditação comovedora sobre as relações entre o público e o privado, ou melhor, entre o cotidiano de nossas vidas e a história que lhe dá sentido, que o justifica e, eventualmente, que o atropela.
Primeiro, "Peões". As personagens escolhidas por Coutinho são trabalhadores do ABC que participaram das greves de 79 e 80, mas que não se enveredaram para a política.
Para realizar o documentário, foi necessário reconhecer e encontrar militantes "anônimos" que apareciam em filmagens e fotografias da época. O espectador assiste, aliás, a reuniões em que grupos de sindicalistas se dedicam a essa tarefa. Também é apresentado o momento em que as personagens se deparam com suas próprias imagens nas manifestações de 79 ou 80.
É possível que você tenha participado de uma daquelas manifestações de massa que, retroativamente, parecem mudar um pouco o rumo da história. Talvez você estivesse no comício das Diretas na praça da Sé, em janeiro de 1984, ou na Passeata dos Cem Mil, em 1968. Claro, nem por isso você aparece nas fotos (evitar de aparecer nas fotos podia ser uma medida razoável de prudência política), mas, ainda hoje, contemplando as imagens da multidão, você se lembra de que estava lá, em algum lugar, no meio daquele mar de povo.
Talvez você tente se enxergar na multidão. Talvez você brinque de "Onde Está Wally na História?". Afinal, seria um jeito de dar a sua vida uma significação maior do que as dores e os prazeres de sua vida amorosa, familiar e profissional.
A qualidade do filme de Coutinho e a razão da emoção que ele proporciona é essa: as entrevistas devolvem aos ex-metalúrgicos "anônimos" o orgulho de terem estado lá, de terem sido protagonistas de um grande momento coletivo de protesto e de liberdade.
O cotidiano do aposentado é resgatado por uma lembrança que confere lustre e sentido à vida.
Ora, "Entreatos" é o contraponto de "Peões". A significação coletiva do momento apresentado é evidente e invasiva: Lula se torna presidente do Brasil. Mas o filme privilegia quase exclusivamente as cenas do cotidiano, espreita as palavras e os gestos que, geralmente, seriam excluídos dos livros de história.
A questão é saber se esses gestos e essas palavras ainda são possíveis. Num momento do filme, Lula observa: "Estou começando a ficar preocupado com o que é que vai mudar na minha vida a partir de uma eleição (...) com a perda de liberdade". Ele está pensando no peso dos rituais da Presidência: "Aquela coisa toda oficial".
Essa consideração, pensativa e tocante, faz que o humor brincalhão de Lula no filme assuma, de repente, um tom nostálgico, como se fosse o resto de uma parte de seu ser condenada ao silêncio pelos rigores de sua futura função.
Os peões de Coutinho se afastaram do momento em que suas vidas fizeram história. O Lula de João Salles decidiu fazer história e sabe que, por isso, está sacrificando um pouco de sua vida.
Talvez essa nostalgia do cotidiano perdido seja o traço mais íntimo de Lula presidente. Ela se expressa, por exemplo, na obstinação em continuar sendo "ele mesmo".
A cada vez que Lula improvisa, afastando-se do texto escrito de um discurso, imagino que sua assessoria de imprensa segure a respiração. Mas, seja qual for a digressão, resta que a dificuldade em adotar a retórica abstrata do poder é uma qualidade moral.
O ditado diz que não há grandes homens para seus mordomos. Ou seja, o privado nunca seria glorioso, e o grande homem seria aquele que não luta com o nó de sua gravata, pois já está, sempre, engravatado: ele renunciou às "misérias" privadas para enaltecer sua significação pública.
Ora, sempre pensei o contrário do ditado. Parece-me que só pode haver grandes homens para seus mordomos. Não porque os mordomos conheceriam os segredos de alcova que comprovam ou não a grandeza do homem. Mas porque uma condição da grandeza está na própria incapacidade de renunciar à concretude da vida privada: se não há nada para mordomo ver, é que a função substituiu o sujeito. Ele não terá como ser grande, por falta de ser homem.
Essa condição mínima da grandeza vale sobretudo para um governante, pois sua incapacidade de renunciar à sua vida privada, nesse caso, deveria garantir que ele não esquecerá a vida concreta dos governados.
25 novembro 2004
21 novembro 2004
"A Dona da História"
Assisti a "A Dona da História", de Daniel Filho, seguindo o conselho de amigos e pacientes, todos entusiastas. Queriam que eu visse, porque para eles tinha sido uma experiência comovedora e feliz. Pois bem, agradeço-lhes.
O filme funciona como uma maravilhosa sessão de terapia, para casais e para solteiros. Explico por quê.
Primeiro, um resumo da trama (adaptada da peça homônima de João Falcão). Nesta altura, quase todos devem conhecê-la.
Carolina e Luís Cláudio são casados há 30 anos. É aquele momento de sossego, quando "as crianças" já foram embora, e está na hora de vender o apartamento onde elas foram criadas. Quem sabe agora dê para fazer aquela famosa viagem, não é?
É também o momento de olhar para trás e fazer um balanço. Carolina se pergunta se sua cara de hoje tem algo a ver com seus sonhos adolescentes. No meio dessa tarefa impossível (ou melhor, possível, mas logicamente decepcionante), ela acaba descobrindo que a banalidade aparente de sua vida (como de qualquer vida, na verdade) constitui uma história que vale a pena. Ou seja, que valeu a pena ser vivida e vale a pena ser contada.
Disse que o filme é uma sessão de terapia para casais. Faça o teste: assista com seu companheiro ou sua companheira de muitos anos. Talvez ambos achem que estão hoje numa união um pouco chocha: uma televisão à noite, transa-se uma vez por semana e olhe lá. Esta união, durante anos, foi uma batalha com fraldas, mamadeiras, febres, choros noturnos e orientadoras pedagógicas, sem contar as corridas noturnas para apanhar "as crianças" naquelas festas malditas. Faz tempo que a dificuldade do fim de mês produz brigas inúteis. Às vezes, parece-lhes que esta união roubou os melhores anos de suas vidas. Você não foi pintor maldito em Pigalle porque não podia largar tudo e viver de expedientes. E você deixou de dançar jazz e tentar fortuna na Broadway porque, depois de duas gravidezes, o corpo não é mais o mesmo. É tudo verdade, ou quase.
Parêntese aberto. É "quase" verdade porque a lista das renúncias que o outro nos impôs serve para evitar a responsabilidade por nossas próprias escolhas. Quis ter dois filhos e, em vez de medir o custo de meu próprio desejo, prefiro achar que foi o parceiro que matou meus outros sonhos, aqueles que deixei de lado para realizar a vontade de ser pai ou mãe. Parêntese fechado.
Mas imaginemos que seja verdade, que nossas renúncias sempre aconteçam por causa do outro.
Mesmo assim, aposto que você sairá da sala de cinema pensando que esta sua vida, que parece pequena, protegida demais, distante dos arrepios do mar aberto e das emoções do começo de seu amor, esta vida, na verdade, foi uma grande aventura. A banalidade do cotidiano pode dar samba; é só saber olhar (e tocar cavaquinho ou contar) com ternura nem tanto para o parceiro que está ao seu lado, mas para você mesmo ou mesma, para a vida que foi e é a sua.
Quem operará esse milagre? O próprio filme. Pois, nele, a história de Carolina e Luís Cláudio, assim como é, com seus bate-bocas e seus sonhos perdidos, torna-se um romance.
Nossa cultura idealiza o amor romântico. Mas você deve ter constatado: filmes e contos propõem quase sempre que idealizemos amores impossíveis, separações e nostalgias arrasadoras ou primeiros encontros deslumbrantes. Pouquíssimas vezes, encontramos uma visão ideal de como é durar no amor e viver juntos. Em geral, esse é um tema para comédia ou "vaudeville". É sublime apaixonar-se, separar-se ou ser separado pela fatalidade, mas é ridículo conviver. O filme de Daniel Filho é uma exceção: ele é freqüentemente engraçado, é claro, mas não é uma versão cômica do casamento. É uma (rara) visão do amor que dura, que é parecido com os nossos amores e que, mesmo assim, pode ser idealizado.
Não pense que o filme seja terapêutico apenas para casais com dez anos de união ou mais. Como disse, ele vale também para solteiros.
No sábado passado, com um grupo de colegas, falávamos de como é importante e complicado, numa terapia, fazer que alguém dê valor à sua própria vida. Uma colega notou que muitos pais ateus criam seus filhos numa religião; querem que os jovens tenham uma boa razão de viver.
Ora, uma tarefa essencial do terapeuta poderia ser resumida assim: ajudar cada um a dar significação à sua vida, sem que, por isso, ele deva acreditar num sentido do mundo. Ou seja, permitir que cada um descubra que, mesmo que não faça parte de um grande esquema (divino ou humano), sua vida vale a pena. E por que valeria a pena? Simplesmente porque cada vida pode ser um romance que merece ser contado. Se soubermos atribuir à nossa vida a qualidade de uma história, reconheceremos sua dignidade.
Como se consegue isso? O percurso de Carolina, no filme, mostra exata e humildemente como.
Resta apenas dizer que Marieta Severo e Débora Falabella (Carolina, agora e no passado), assim como Antônio Fagundes e Rodrigo Santoro (Luís Cláudio, agora e no passado) são perfeitos. Aliás, Marieta Severo é mais que perfeita.
Obrigado a Daniel Filho e a toda a turma.
O filme funciona como uma maravilhosa sessão de terapia, para casais e para solteiros. Explico por quê.
Primeiro, um resumo da trama (adaptada da peça homônima de João Falcão). Nesta altura, quase todos devem conhecê-la.
Carolina e Luís Cláudio são casados há 30 anos. É aquele momento de sossego, quando "as crianças" já foram embora, e está na hora de vender o apartamento onde elas foram criadas. Quem sabe agora dê para fazer aquela famosa viagem, não é?
É também o momento de olhar para trás e fazer um balanço. Carolina se pergunta se sua cara de hoje tem algo a ver com seus sonhos adolescentes. No meio dessa tarefa impossível (ou melhor, possível, mas logicamente decepcionante), ela acaba descobrindo que a banalidade aparente de sua vida (como de qualquer vida, na verdade) constitui uma história que vale a pena. Ou seja, que valeu a pena ser vivida e vale a pena ser contada.
Disse que o filme é uma sessão de terapia para casais. Faça o teste: assista com seu companheiro ou sua companheira de muitos anos. Talvez ambos achem que estão hoje numa união um pouco chocha: uma televisão à noite, transa-se uma vez por semana e olhe lá. Esta união, durante anos, foi uma batalha com fraldas, mamadeiras, febres, choros noturnos e orientadoras pedagógicas, sem contar as corridas noturnas para apanhar "as crianças" naquelas festas malditas. Faz tempo que a dificuldade do fim de mês produz brigas inúteis. Às vezes, parece-lhes que esta união roubou os melhores anos de suas vidas. Você não foi pintor maldito em Pigalle porque não podia largar tudo e viver de expedientes. E você deixou de dançar jazz e tentar fortuna na Broadway porque, depois de duas gravidezes, o corpo não é mais o mesmo. É tudo verdade, ou quase.
Parêntese aberto. É "quase" verdade porque a lista das renúncias que o outro nos impôs serve para evitar a responsabilidade por nossas próprias escolhas. Quis ter dois filhos e, em vez de medir o custo de meu próprio desejo, prefiro achar que foi o parceiro que matou meus outros sonhos, aqueles que deixei de lado para realizar a vontade de ser pai ou mãe. Parêntese fechado.
Mas imaginemos que seja verdade, que nossas renúncias sempre aconteçam por causa do outro.
Mesmo assim, aposto que você sairá da sala de cinema pensando que esta sua vida, que parece pequena, protegida demais, distante dos arrepios do mar aberto e das emoções do começo de seu amor, esta vida, na verdade, foi uma grande aventura. A banalidade do cotidiano pode dar samba; é só saber olhar (e tocar cavaquinho ou contar) com ternura nem tanto para o parceiro que está ao seu lado, mas para você mesmo ou mesma, para a vida que foi e é a sua.
Quem operará esse milagre? O próprio filme. Pois, nele, a história de Carolina e Luís Cláudio, assim como é, com seus bate-bocas e seus sonhos perdidos, torna-se um romance.
Nossa cultura idealiza o amor romântico. Mas você deve ter constatado: filmes e contos propõem quase sempre que idealizemos amores impossíveis, separações e nostalgias arrasadoras ou primeiros encontros deslumbrantes. Pouquíssimas vezes, encontramos uma visão ideal de como é durar no amor e viver juntos. Em geral, esse é um tema para comédia ou "vaudeville". É sublime apaixonar-se, separar-se ou ser separado pela fatalidade, mas é ridículo conviver. O filme de Daniel Filho é uma exceção: ele é freqüentemente engraçado, é claro, mas não é uma versão cômica do casamento. É uma (rara) visão do amor que dura, que é parecido com os nossos amores e que, mesmo assim, pode ser idealizado.
Não pense que o filme seja terapêutico apenas para casais com dez anos de união ou mais. Como disse, ele vale também para solteiros.
No sábado passado, com um grupo de colegas, falávamos de como é importante e complicado, numa terapia, fazer que alguém dê valor à sua própria vida. Uma colega notou que muitos pais ateus criam seus filhos numa religião; querem que os jovens tenham uma boa razão de viver.
Ora, uma tarefa essencial do terapeuta poderia ser resumida assim: ajudar cada um a dar significação à sua vida, sem que, por isso, ele deva acreditar num sentido do mundo. Ou seja, permitir que cada um descubra que, mesmo que não faça parte de um grande esquema (divino ou humano), sua vida vale a pena. E por que valeria a pena? Simplesmente porque cada vida pode ser um romance que merece ser contado. Se soubermos atribuir à nossa vida a qualidade de uma história, reconheceremos sua dignidade.
Como se consegue isso? O percurso de Carolina, no filme, mostra exata e humildemente como.
Resta apenas dizer que Marieta Severo e Débora Falabella (Carolina, agora e no passado), assim como Antônio Fagundes e Rodrigo Santoro (Luís Cláudio, agora e no passado) são perfeitos. Aliás, Marieta Severo é mais que perfeita.
Obrigado a Daniel Filho e a toda a turma.
18 novembro 2004
"Transex"
Assisti (com atraso) a "Transex", de Rodolfo García Vázquez, no Espaço dos Satyros da praça Roosevelt. Na peça, além dos atores, atuam Phedra D. Córdoba e Savana Meirelles, no papel de si mesmas. Phedra é uma das transexuais mais ilustres de São Paulo. Savana (Bibi), também transexual, apareceu na mídia em 2003, ao defender a idéia de que ela é a namorada de um extraterrestre que a visita regularmente.
Um ano atrás, num café da praça Roosevelt, Phedra e Bibi (que, na época, moravam juntas) discutiam sobre o namorado de Bibi. Phedra, pé no chão, declarava que não podia ser um extraterrestre, mas se tratava, obviamente, de um exu. Rodolfo e Ivam ouviram essa conversa, que inspirou a peça.
Não sei dizer se o namorado de Bibi é um exu ou um extraterrestre. Mas sei que, em nossa cultura, quem não consegue se posicionar na alternativa entre dois gêneros (masculino ou feminino) se torna, aos olhos dos demais, um ser de outro mundo. Não me estranha, portanto, que, para ser amada, Bibi anseie encontrar alguém que a compreenda, um ser de outro mundo, extraterrestre ou exu que seja.
De qualquer forma, "Transex" é uma peça para quem não acha que as e os transexuais sejam seres de outro mundo ou para os que querem parar de pensar assim.
O sucesso nessa empreitada é possível porque as protagonistas de "Transex" (como todas as transexuais, aliás) não sofrem de estranhos desvios sexuais. Elas sofrem de uma dificuldade em estabelecer e afirmar uma identidade (feminina, por exemplo), que elas sentem ser a sua, mas que não corresponde ao corpo que lhes coube ao nascer. Se se prostituem, é por duas razões: porque a sociedade não lhes oferece muitas outras chances de ganhar a vida e porque a prostituição talvez seja um jeito de confirmar o gênero que elas vivem como seu. Se tantos homens me desejam, deve ser verdade que sou mulher.
Estatísticas de países europeus em que a cirurgia de mudança de sexo é legal dizem que um homem em cada 30 mil e uma mulher em cada 100 mil procuram essa intervenção cirúrgica. Poucos, não é? Mas resta saber quantos, sem chegar a tanto, convivem com alguma contradição entre seu corpo e sua identidade de gênero.
A sensação de pertencer a um gênero que contradiz a anatomia do sujeito é menos rara do que a gente imagina. Consideremos uma distinção (freqüentemente adotada) entre travestismo e transexualismo.
Travesti seria quem não vive propriamente um divórcio entre seu gênero e seu corpo, mas veste os apetrechos do outro gênero apenas como fetiches para alimentar desejo e fantasia sexuais.
Transexual seria quem conhece uma contradição aguda entre seu sexo anatômico e sua identidade de gênero, a ponto de agir para mudar seu corpo e ajustá-lo (à força de hormônios e cirurgias) ao gênero que ele sente ser o seu.
Essa distinção simplifica uma realidade que, de fato, é menos descontínua. Num livro recente, Helen Boyd descreve sua relação com o marido, que gosta de usar roupa feminina, "My Husband Betty: Love, Sex and Life with a Cross-Dresser" (Meu Marido Betty: O Amor, o Sexo e a Vida com um Travesti). No começo, ela parece contar um jogo sexual que não compromete nem um pouco a identidade de gênero do marido. Afinal, por que um homem não brincaria de cinta-liga sem deixar de ser e de se sentir homem? Ora, um desfile variado de casos e entrevistas mostra logo a Helen e a seu leitor que o ato de se travestir, mesmo quando serve uma "brincadeira" sexual, mal esconde uma dúvida ou uma crise de identidade.
Travestismo e transexualismo falam da mesma inquietude quanto a uma identidade de gênero que discute com a anatomia do sujeito.
Em "Transex", não há apenas homens que se tornam mulheres. Há também uma mulher que se tornou homem e proclama que, para consolidar-se em seu gênero (masculino, no caso), ele precisou de uma "castração", que lhe colocasse um pênis no lugar da vagina. Como, em geral, pensamos que a castração é uma operação que corta e retira, a expressão resulta engraçada. No entanto, ela é surpreendentemente adequada. Eis como.
A psicanálise chama de castração (esqueça por um instante qualquer associação açougueira) o ato pelo qual um gênero é atribuído ao sujeito, geralmente pelo pai: você é mulher ou você é homem. Quando o ato não funciona direito, o sujeito pode querer que essa "castração" seja perpetrada de novo e de vez, para que a designação seja enfim clara e, se possível, concorde com o que diz a anatomia de seu corpo.
Quem conversou com transexuais operados/as sabe que, com freqüência, eles/elas consideram o cirurgião como seu "novo pai".
"Transex" fica em cartaz até 19 de dezembro. Não perca.
Nota
Recentemente, ao aconselhar um casal cujo filho decidiu pedir operação de mudança de sexo, um livro atrapalhou minhas teorias pré-formadas e, portanto, me ajudou: "True Selves: Understanding Transsexualism for Families, Friends, Co-workers and Helping Professionals" (Verdadeiros "Self": Entendendo o Transexualismo, para o Uso de Famílias, Amigos, Colegas e Profissionais da Ajuda), de Brown e Rounsley.
Um ano atrás, num café da praça Roosevelt, Phedra e Bibi (que, na época, moravam juntas) discutiam sobre o namorado de Bibi. Phedra, pé no chão, declarava que não podia ser um extraterrestre, mas se tratava, obviamente, de um exu. Rodolfo e Ivam ouviram essa conversa, que inspirou a peça.
Não sei dizer se o namorado de Bibi é um exu ou um extraterrestre. Mas sei que, em nossa cultura, quem não consegue se posicionar na alternativa entre dois gêneros (masculino ou feminino) se torna, aos olhos dos demais, um ser de outro mundo. Não me estranha, portanto, que, para ser amada, Bibi anseie encontrar alguém que a compreenda, um ser de outro mundo, extraterrestre ou exu que seja.
De qualquer forma, "Transex" é uma peça para quem não acha que as e os transexuais sejam seres de outro mundo ou para os que querem parar de pensar assim.
O sucesso nessa empreitada é possível porque as protagonistas de "Transex" (como todas as transexuais, aliás) não sofrem de estranhos desvios sexuais. Elas sofrem de uma dificuldade em estabelecer e afirmar uma identidade (feminina, por exemplo), que elas sentem ser a sua, mas que não corresponde ao corpo que lhes coube ao nascer. Se se prostituem, é por duas razões: porque a sociedade não lhes oferece muitas outras chances de ganhar a vida e porque a prostituição talvez seja um jeito de confirmar o gênero que elas vivem como seu. Se tantos homens me desejam, deve ser verdade que sou mulher.
Estatísticas de países europeus em que a cirurgia de mudança de sexo é legal dizem que um homem em cada 30 mil e uma mulher em cada 100 mil procuram essa intervenção cirúrgica. Poucos, não é? Mas resta saber quantos, sem chegar a tanto, convivem com alguma contradição entre seu corpo e sua identidade de gênero.
A sensação de pertencer a um gênero que contradiz a anatomia do sujeito é menos rara do que a gente imagina. Consideremos uma distinção (freqüentemente adotada) entre travestismo e transexualismo.
Travesti seria quem não vive propriamente um divórcio entre seu gênero e seu corpo, mas veste os apetrechos do outro gênero apenas como fetiches para alimentar desejo e fantasia sexuais.
Transexual seria quem conhece uma contradição aguda entre seu sexo anatômico e sua identidade de gênero, a ponto de agir para mudar seu corpo e ajustá-lo (à força de hormônios e cirurgias) ao gênero que ele sente ser o seu.
Essa distinção simplifica uma realidade que, de fato, é menos descontínua. Num livro recente, Helen Boyd descreve sua relação com o marido, que gosta de usar roupa feminina, "My Husband Betty: Love, Sex and Life with a Cross-Dresser" (Meu Marido Betty: O Amor, o Sexo e a Vida com um Travesti). No começo, ela parece contar um jogo sexual que não compromete nem um pouco a identidade de gênero do marido. Afinal, por que um homem não brincaria de cinta-liga sem deixar de ser e de se sentir homem? Ora, um desfile variado de casos e entrevistas mostra logo a Helen e a seu leitor que o ato de se travestir, mesmo quando serve uma "brincadeira" sexual, mal esconde uma dúvida ou uma crise de identidade.
Travestismo e transexualismo falam da mesma inquietude quanto a uma identidade de gênero que discute com a anatomia do sujeito.
Em "Transex", não há apenas homens que se tornam mulheres. Há também uma mulher que se tornou homem e proclama que, para consolidar-se em seu gênero (masculino, no caso), ele precisou de uma "castração", que lhe colocasse um pênis no lugar da vagina. Como, em geral, pensamos que a castração é uma operação que corta e retira, a expressão resulta engraçada. No entanto, ela é surpreendentemente adequada. Eis como.
A psicanálise chama de castração (esqueça por um instante qualquer associação açougueira) o ato pelo qual um gênero é atribuído ao sujeito, geralmente pelo pai: você é mulher ou você é homem. Quando o ato não funciona direito, o sujeito pode querer que essa "castração" seja perpetrada de novo e de vez, para que a designação seja enfim clara e, se possível, concorde com o que diz a anatomia de seu corpo.
Quem conversou com transexuais operados/as sabe que, com freqüência, eles/elas consideram o cirurgião como seu "novo pai".
"Transex" fica em cartaz até 19 de dezembro. Não perca.
Nota
Recentemente, ao aconselhar um casal cujo filho decidiu pedir operação de mudança de sexo, um livro atrapalhou minhas teorias pré-formadas e, portanto, me ajudou: "True Selves: Understanding Transsexualism for Families, Friends, Co-workers and Helping Professionals" (Verdadeiros "Self": Entendendo o Transexualismo, para o Uso de Famílias, Amigos, Colegas e Profissionais da Ajuda), de Brown e Rounsley.
11 novembro 2004
Sozinho ou acompanhado?
Durante minha carreira escolar, nunca fiz um trabalho em grupo. Às vezes, a gente se reunia e juntava as forças para estudar, preparar um teste ou entender uma aula. Mas os deveres de casa e os exames (salvo cola eventual) eram absolutamente individuais. Cada um fazia o seu e ganhava sua nota.
Houve uma exceção: 1968. Na Universidade de Milão, por iniciativa de professores "progressistas" ou por pressão de estudantes mais "progressistas" ainda, surgiu a moda do exame de grupo. Lembro-me de um exame de "história das doutrinas políticas", que passamos em grupo de cinco. Ganhamos um 27. O máximo era 30, mas, naquele ano, 27 era a nota mínima que qualquer professor daria se não quisesse ser vítima de boicote político. De fato, não sabíamos bulhufas, mas achávamos que o tempo passado juntos nas assembléias do movimento estudantil valia tanto quanto a leitura de Montesquieu, Rousseau, Hobbes e Locke.
Depois disso, só reencontrei o "trabalho em grupo" no fim dos anos 80, quando meus filhos entraram no primário. Descobri então que a provocação política de minha adolescência tinha engendrado uma doutrina pedagógica. De vez em quando, eu manifestava alguma perplexidade com as orientadoras educacionais: "Mas eles não têm nem o tempo de elaborar, de pensar sozinhos".
Resposta: "Aprender a trabalhar em grupo é tão importante quanto a matéria. Não estamos só transmitindo conteúdos, estamos educando as crianças para que adquiram espírito de equipe, capacidade de liderança, confiança no outro, enfim, as qualidades intersubjetivas que preparam para a vida adulta e o mundo do trabalho".
As orientadoras tinham razão. Basta considerar a quantidade de "workshops" de dinâmica de grupo promovidos hoje pelos departamentos de recursos humanos das empresas. A arte de relacionar-se parece profissionalmente mais importante do que a competência específica exigida pelo trabalho de cada um.
Pensei nessa mudança pedagógica ao ler um livro recente: "Party of One, the Loner's Manifesto" (Grupo de Um, o Manifesto do Solitário), de Anneli Rufus. É um ensaio engraçado e pertinente em defesa da solidão.
Rufus começa contando a história de Eve, bolsista da Fundação Fulbright, em Gana. Eve era de temperamento solitário e, obviamente, numa sociedade ainda tradicional, em que a comunidade é uma valor mais importante do que o indivíduo, seus gostos anti-sociais eram considerados uma enfermidade: em Gana, as pessoas "pareciam considerar uma forma de perversão se uma pessoa não tivesse amigos, vivesse sozinha ou circulasse sozinha pelas ruas. Era como se você fosse uma pessoa má, um marginal, um possuído pelo demônio".
Pergunta: será que para nós a coisa é muito diferente? Embora, em nossa cultura, o indivíduo conte mais que a comunidade, parece que, entre nós também, o solitário se tornou uma figura patológica.
Primeiro, Rufus descreve as aventuras tragicômicas da vida solitária (em destaque: jantar sozinho num restaurante sob os olhares de comiseração das mesas vizinhas).
Logo, ela reconstrói a história da figura do solitário na cultura popular das últimas décadas. No bangue-bangue dos anos 50, os solitários eram nossos heróis (veja ou reveja "Matar ou Morrer" ou "Os Brutos Também Amam"). O caubói, aliás, era o protótipo do solitário errante, enigmático e sedutor: entre 50 e 70, um deles promoveu "sua" marca de cigarros até torná-la a mais vendida do mundo.
A partir dos anos 70, a solidão começou a mexer com a cabeça do herói solitário, que se tornou estranho e perigoso ("Taxi Driver") ou inquietante e um pouco asqueroso ("Retratos de uma Obsessão").
"Solitário" é hoje a suposição automática (e indevida) da imprensa americana na hora de definir os autores de crimes em série ou de assassinatos múltiplos nas escolas. O solitário é maluco; portanto os malucos devem ser solitários.
Enfim, um capítulo do livro examina a recente transformação do temperamento solitário em patologia: "Como os não solitários são muito mais numerosos do que a gente, sua receita para a saúde mental é proposta e vale como boa medicina". Conclusão: os solitários sofreriam de fobia social, personalidade esquizóide, depressão ou autismo. Rufus nota que o diagnóstico de síndrome de Asperger (forma leve de autismo, que implica uma dificuldade em compreender as emoções dos outros e em se relacionar) popularizou-se logo a partir dos anos 90, quando o solitário, na cultura de massa, passou definitivamente de herói para louco e deseixado.
Curioso: nossa cultura, que valoriza os indivíduos acima da comunidade, considera cada vez mais que a capacidade de se relacionar com os outros é um talento supremo e uma prova de boa saúde mental.
O paradoxo é apenas aparente: a sociabilidade se torna uma arte e uma obrigação na medida em que, para nós, ela não é nada natural, mas deve ser aprendida.
Alguém lembrará que, de qualquer forma, sem os outros não somos quase nada. Pois é, os solitários são aqueles que encaram esse incômodo vazio.
Houve uma exceção: 1968. Na Universidade de Milão, por iniciativa de professores "progressistas" ou por pressão de estudantes mais "progressistas" ainda, surgiu a moda do exame de grupo. Lembro-me de um exame de "história das doutrinas políticas", que passamos em grupo de cinco. Ganhamos um 27. O máximo era 30, mas, naquele ano, 27 era a nota mínima que qualquer professor daria se não quisesse ser vítima de boicote político. De fato, não sabíamos bulhufas, mas achávamos que o tempo passado juntos nas assembléias do movimento estudantil valia tanto quanto a leitura de Montesquieu, Rousseau, Hobbes e Locke.
Depois disso, só reencontrei o "trabalho em grupo" no fim dos anos 80, quando meus filhos entraram no primário. Descobri então que a provocação política de minha adolescência tinha engendrado uma doutrina pedagógica. De vez em quando, eu manifestava alguma perplexidade com as orientadoras educacionais: "Mas eles não têm nem o tempo de elaborar, de pensar sozinhos".
Resposta: "Aprender a trabalhar em grupo é tão importante quanto a matéria. Não estamos só transmitindo conteúdos, estamos educando as crianças para que adquiram espírito de equipe, capacidade de liderança, confiança no outro, enfim, as qualidades intersubjetivas que preparam para a vida adulta e o mundo do trabalho".
As orientadoras tinham razão. Basta considerar a quantidade de "workshops" de dinâmica de grupo promovidos hoje pelos departamentos de recursos humanos das empresas. A arte de relacionar-se parece profissionalmente mais importante do que a competência específica exigida pelo trabalho de cada um.
Pensei nessa mudança pedagógica ao ler um livro recente: "Party of One, the Loner's Manifesto" (Grupo de Um, o Manifesto do Solitário), de Anneli Rufus. É um ensaio engraçado e pertinente em defesa da solidão.
Rufus começa contando a história de Eve, bolsista da Fundação Fulbright, em Gana. Eve era de temperamento solitário e, obviamente, numa sociedade ainda tradicional, em que a comunidade é uma valor mais importante do que o indivíduo, seus gostos anti-sociais eram considerados uma enfermidade: em Gana, as pessoas "pareciam considerar uma forma de perversão se uma pessoa não tivesse amigos, vivesse sozinha ou circulasse sozinha pelas ruas. Era como se você fosse uma pessoa má, um marginal, um possuído pelo demônio".
Pergunta: será que para nós a coisa é muito diferente? Embora, em nossa cultura, o indivíduo conte mais que a comunidade, parece que, entre nós também, o solitário se tornou uma figura patológica.
Primeiro, Rufus descreve as aventuras tragicômicas da vida solitária (em destaque: jantar sozinho num restaurante sob os olhares de comiseração das mesas vizinhas).
Logo, ela reconstrói a história da figura do solitário na cultura popular das últimas décadas. No bangue-bangue dos anos 50, os solitários eram nossos heróis (veja ou reveja "Matar ou Morrer" ou "Os Brutos Também Amam"). O caubói, aliás, era o protótipo do solitário errante, enigmático e sedutor: entre 50 e 70, um deles promoveu "sua" marca de cigarros até torná-la a mais vendida do mundo.
A partir dos anos 70, a solidão começou a mexer com a cabeça do herói solitário, que se tornou estranho e perigoso ("Taxi Driver") ou inquietante e um pouco asqueroso ("Retratos de uma Obsessão").
"Solitário" é hoje a suposição automática (e indevida) da imprensa americana na hora de definir os autores de crimes em série ou de assassinatos múltiplos nas escolas. O solitário é maluco; portanto os malucos devem ser solitários.
Enfim, um capítulo do livro examina a recente transformação do temperamento solitário em patologia: "Como os não solitários são muito mais numerosos do que a gente, sua receita para a saúde mental é proposta e vale como boa medicina". Conclusão: os solitários sofreriam de fobia social, personalidade esquizóide, depressão ou autismo. Rufus nota que o diagnóstico de síndrome de Asperger (forma leve de autismo, que implica uma dificuldade em compreender as emoções dos outros e em se relacionar) popularizou-se logo a partir dos anos 90, quando o solitário, na cultura de massa, passou definitivamente de herói para louco e deseixado.
Curioso: nossa cultura, que valoriza os indivíduos acima da comunidade, considera cada vez mais que a capacidade de se relacionar com os outros é um talento supremo e uma prova de boa saúde mental.
O paradoxo é apenas aparente: a sociabilidade se torna uma arte e uma obrigação na medida em que, para nós, ela não é nada natural, mas deve ser aprendida.
Alguém lembrará que, de qualquer forma, sem os outros não somos quase nada. Pois é, os solitários são aqueles que encaram esse incômodo vazio.
04 novembro 2004
Eleições americanas
Na hora em que escrevo estas reflexões (segunda e terça-feira), não conheço o resultado das eleições presidenciais americanas. Mas, de qualquer forma, a batalha política do último ano impõe uma reflexão.
Décadas atrás, o poeta Robert Frost definiu assim o progressista de esquerda (que nos EUA se chama "liberal"): "Um progressista de esquerda é um sujeito de espírito tão aberto que, numa briga, ele não consegue tomar seu próprio partido". A definição é citada pelos progressistas como prova de sua generosidade esclarecida. E pelos conservadores como prova da fraqueza inepta dos progressistas.
A frase evoca um tempo mais simples (Robert Frost morreu em 1963), em que talvez houvesse só três posições: os abastados, que defendiam seus interesses, os pobres, que também defendiam seus interesses (opostos aos dos ricos), e os progressistas de esquerda, que, embora abastados, defendiam os interesses dos pobres.
Quem foi militante nos anos 60 se lembra de que nem sempre era pacífica a relação dos intelectuais ou estudantes progressistas (geralmente, de classe média) com a causa dos trabalhadores. A aliança entre operários e estudantes, proclamada no 68 francês, não dispensava alguns atritos. As direções sindicais e partidárias achavam que os estudantes não eram bem intelectuais "orgânicos" como mandava a teoria de Gramsci, ou seja, não se integravam direito nas organizações proletárias. E os estudantes descobriam com inquietude que algumas idéias de seus aliados proletários não eram necessariamente progressistas.
No entanto essas discordâncias não ameaçavam as alianças. Sindicalistas e militantes operários podiam ser contrários ao divórcio e ao aborto, podiam detestar as feministas, zombar dos gays e manifestar pontas explícitas de racismo; nem por isso os estudantes deixavam de considerá-los seus aliados. Um "patrão" podia freqüentar a mesma igreja que seus operários e manifestar as mesmas idéias tradicionais nas quais eles acreditavam; mesmo assim, ele continuava sendo, para eles, (na linguagem da época) o "inimigo de classe". Os estudantes podiam promover maluquices orgiásticas; eventualmente, os sindicalistas não os apresentariam a suas famílias, mas nem por isso eles deixariam de considerá-los como seus aliados.
Em suma, o que definia os campos opostos era a função de cada agente social na produção e na repartição do bolo. Como assinala Frost, o intelectual progressista podia escolher seu campo por razões ideais, mas isso, justamente, fazia dele uma exceção.
Ora, sobretudo nos últimos dez anos, nos EUA, acontece algo diferente. No centro do país, longe das grandes áreas urbanas, concentra-se um exército de derrotados. São fazendeiros empobrecidos ou expropriados, vítimas do fim dos subsídios agrícolas ou da concentração da agroindústria. São trabalhadores desempregados, vítimas da "liberdade" globalizada dos mercados, pois as indústrias migraram para países complacentes ou importaram ilegalmente uma mão-de-obra barata e não sindicalizada. Esse exército, em grande parte, vota hoje no Partido Republicano. Ou seja, vota a favor do agravamento das mesmas políticas econômicas que produziram sua decadência. Por quê?
Surfando habilmente na onda de repúdio que a contracultura dos anos 60 e 70 produziu na América profunda, os conservadores americanos conseguiram uma proeza: hoje, muitos pobres e derrotados atribuem sua miséria a uma degenerescência moral pela qual culpam os progressistas. Eles não entendem seu destino como conseqüência das políticas que os atropelam, mas como efeito da crise dos valores tradicionais do passado. Claro, esse passado é, para eles, a época perdida em que, no mínimo, eles conheciam a esperança de dias melhores.
Com isso, o fazendeiro expropriado e o desempregado sem subsídios e sem assistência médica podem votar para um partido que se opõe à intervenção do governo em matéria de seguro-saúde, que planejou acabar com o imposto progressivo ou que condena qualquer controle dos preços mínimos pagos aos agricultores. Votam assim porque atribuem o fim de seu mundo não às medidas econômicas que os golpearam, mas, por exemplo, à prática do aborto, à crise da família, às uniões civis entre homossexuais ou ao desrespeito pela suposta vontade de Deus.
Na história recente do Ocidente, os fascismos clássicos fornecem os melhores exemplos de uma façanha comparável, pela qual os derrotados foram transformados em milícias do conservadorismo ideológico e, portanto, em cúmplices de sua própria ruína.
É urgente entender o que acontece hoje nos EUA e, em particular, qual foi (qual é), nesse acontecimento em curso, o papel da Igreja Católica e de inúmeras denominações protestantes. Urgente, digo, não só para os americanos.
Nota: Thomas Frank acaba de publicar "What's the Matter with Kansas?" (O que Acontece com o Kansas?), que é uma excelente análise de como, no Estado de Kansas, a ideologia conservadora transformou muitas vítimas da política econômica dos últimos 20 anos em militantes do próprio partido que orquestrou o brutal empobrecimento do Estado.
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