18 novembro 2004

"Transex"

Assisti (com atraso) a "Transex", de Rodolfo García Vázquez, no Espaço dos Satyros da praça Roosevelt. Na peça, além dos atores, atuam Phedra D. Córdoba e Savana Meirelles, no papel de si mesmas. Phedra é uma das transexuais mais ilustres de São Paulo. Savana (Bibi), também transexual, apareceu na mídia em 2003, ao defender a idéia de que ela é a namorada de um extraterrestre que a visita regularmente.

Um ano atrás, num café da praça Roosevelt, Phedra e Bibi (que, na época, moravam juntas) discutiam sobre o namorado de Bibi. Phedra, pé no chão, declarava que não podia ser um extraterrestre, mas se tratava, obviamente, de um exu. Rodolfo e Ivam ouviram essa conversa, que inspirou a peça.

Não sei dizer se o namorado de Bibi é um exu ou um extraterrestre. Mas sei que, em nossa cultura, quem não consegue se posicionar na alternativa entre dois gêneros (masculino ou feminino) se torna, aos olhos dos demais, um ser de outro mundo. Não me estranha, portanto, que, para ser amada, Bibi anseie encontrar alguém que a compreenda, um ser de outro mundo, extraterrestre ou exu que seja.

De qualquer forma, "Transex" é uma peça para quem não acha que as e os transexuais sejam seres de outro mundo ou para os que querem parar de pensar assim.

O sucesso nessa empreitada é possível porque as protagonistas de "Transex" (como todas as transexuais, aliás) não sofrem de estranhos desvios sexuais. Elas sofrem de uma dificuldade em estabelecer e afirmar uma identidade (feminina, por exemplo), que elas sentem ser a sua, mas que não corresponde ao corpo que lhes coube ao nascer. Se se prostituem, é por duas razões: porque a sociedade não lhes oferece muitas outras chances de ganhar a vida e porque a prostituição talvez seja um jeito de confirmar o gênero que elas vivem como seu. Se tantos homens me desejam, deve ser verdade que sou mulher.

Estatísticas de países europeus em que a cirurgia de mudança de sexo é legal dizem que um homem em cada 30 mil e uma mulher em cada 100 mil procuram essa intervenção cirúrgica. Poucos, não é? Mas resta saber quantos, sem chegar a tanto, convivem com alguma contradição entre seu corpo e sua identidade de gênero.

A sensação de pertencer a um gênero que contradiz a anatomia do sujeito é menos rara do que a gente imagina. Consideremos uma distinção (freqüentemente adotada) entre travestismo e transexualismo.

Travesti seria quem não vive propriamente um divórcio entre seu gênero e seu corpo, mas veste os apetrechos do outro gênero apenas como fetiches para alimentar desejo e fantasia sexuais.
Transexual seria quem conhece uma contradição aguda entre seu sexo anatômico e sua identidade de gênero, a ponto de agir para mudar seu corpo e ajustá-lo (à força de hormônios e cirurgias) ao gênero que ele sente ser o seu.

Essa distinção simplifica uma realidade que, de fato, é menos descontínua. Num livro recente, Helen Boyd descreve sua relação com o marido, que gosta de usar roupa feminina, "My Husband Betty: Love, Sex and Life with a Cross-Dresser" (Meu Marido Betty: O Amor, o Sexo e a Vida com um Travesti). No começo, ela parece contar um jogo sexual que não compromete nem um pouco a identidade de gênero do marido. Afinal, por que um homem não brincaria de cinta-liga sem deixar de ser e de se sentir homem? Ora, um desfile variado de casos e entrevistas mostra logo a Helen e a seu leitor que o ato de se travestir, mesmo quando serve uma "brincadeira" sexual, mal esconde uma dúvida ou uma crise de identidade.

Travestismo e transexualismo falam da mesma inquietude quanto a uma identidade de gênero que discute com a anatomia do sujeito.

Em "Transex", não há apenas homens que se tornam mulheres. Há também uma mulher que se tornou homem e proclama que, para consolidar-se em seu gênero (masculino, no caso), ele precisou de uma "castração", que lhe colocasse um pênis no lugar da vagina. Como, em geral, pensamos que a castração é uma operação que corta e retira, a expressão resulta engraçada. No entanto, ela é surpreendentemente adequada. Eis como.

A psicanálise chama de castração (esqueça por um instante qualquer associação açougueira) o ato pelo qual um gênero é atribuído ao sujeito, geralmente pelo pai: você é mulher ou você é homem. Quando o ato não funciona direito, o sujeito pode querer que essa "castração" seja perpetrada de novo e de vez, para que a designação seja enfim clara e, se possível, concorde com o que diz a anatomia de seu corpo.

Quem conversou com transexuais operados/as sabe que, com freqüência, eles/elas consideram o cirurgião como seu "novo pai".

"Transex" fica em cartaz até 19 de dezembro. Não perca.

Nota
Recentemente, ao aconselhar um casal cujo filho decidiu pedir operação de mudança de sexo, um livro atrapalhou minhas teorias pré-formadas e, portanto, me ajudou: "True Selves: Understanding Transsexualism for Families, Friends, Co-workers and Helping Professionals" (Verdadeiros "Self": Entendendo o Transexualismo, para o Uso de Famílias, Amigos, Colegas e Profissionais da Ajuda), de Brown e Rounsley.

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