Estréiam amanhã dois documentários notáveis, "Entreatos" e "Peões".
Em "Entreatos", João Moreira Salles documenta os últimos 30 dias da campanha presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, desde pouco antes do primeiro turno até o dia da vitória.
Em "Peões", Eduardo Coutinho entrevista 21 metalúrgicos e metalúrgicas do ABC paulista que participaram das greves de 1979 e 1980, quando se afirmou a liderança de Lula.
Os filmes são formalmente diferentes: "Entreatos" é uma filmagem indiscreta, uma espécie de longo flagrante, enquanto "Peões" é um documentário ativo, em que os protagonistas são convidados a falar. Eles são unidos, obviamente, por um fio narrativo, que vai do bojo do percurso político de Lula até sua eleição à Presidência.
E há uma outra razão que reúne os dois filmes: juntos, eles constituem uma meditação comovedora sobre as relações entre o público e o privado, ou melhor, entre o cotidiano de nossas vidas e a história que lhe dá sentido, que o justifica e, eventualmente, que o atropela.
Primeiro, "Peões". As personagens escolhidas por Coutinho são trabalhadores do ABC que participaram das greves de 79 e 80, mas que não se enveredaram para a política.
Para realizar o documentário, foi necessário reconhecer e encontrar militantes "anônimos" que apareciam em filmagens e fotografias da época. O espectador assiste, aliás, a reuniões em que grupos de sindicalistas se dedicam a essa tarefa. Também é apresentado o momento em que as personagens se deparam com suas próprias imagens nas manifestações de 79 ou 80.
É possível que você tenha participado de uma daquelas manifestações de massa que, retroativamente, parecem mudar um pouco o rumo da história. Talvez você estivesse no comício das Diretas na praça da Sé, em janeiro de 1984, ou na Passeata dos Cem Mil, em 1968. Claro, nem por isso você aparece nas fotos (evitar de aparecer nas fotos podia ser uma medida razoável de prudência política), mas, ainda hoje, contemplando as imagens da multidão, você se lembra de que estava lá, em algum lugar, no meio daquele mar de povo.
Talvez você tente se enxergar na multidão. Talvez você brinque de "Onde Está Wally na História?". Afinal, seria um jeito de dar a sua vida uma significação maior do que as dores e os prazeres de sua vida amorosa, familiar e profissional.
A qualidade do filme de Coutinho e a razão da emoção que ele proporciona é essa: as entrevistas devolvem aos ex-metalúrgicos "anônimos" o orgulho de terem estado lá, de terem sido protagonistas de um grande momento coletivo de protesto e de liberdade.
O cotidiano do aposentado é resgatado por uma lembrança que confere lustre e sentido à vida.
Ora, "Entreatos" é o contraponto de "Peões". A significação coletiva do momento apresentado é evidente e invasiva: Lula se torna presidente do Brasil. Mas o filme privilegia quase exclusivamente as cenas do cotidiano, espreita as palavras e os gestos que, geralmente, seriam excluídos dos livros de história.
A questão é saber se esses gestos e essas palavras ainda são possíveis. Num momento do filme, Lula observa: "Estou começando a ficar preocupado com o que é que vai mudar na minha vida a partir de uma eleição (...) com a perda de liberdade". Ele está pensando no peso dos rituais da Presidência: "Aquela coisa toda oficial".
Essa consideração, pensativa e tocante, faz que o humor brincalhão de Lula no filme assuma, de repente, um tom nostálgico, como se fosse o resto de uma parte de seu ser condenada ao silêncio pelos rigores de sua futura função.
Os peões de Coutinho se afastaram do momento em que suas vidas fizeram história. O Lula de João Salles decidiu fazer história e sabe que, por isso, está sacrificando um pouco de sua vida.
Talvez essa nostalgia do cotidiano perdido seja o traço mais íntimo de Lula presidente. Ela se expressa, por exemplo, na obstinação em continuar sendo "ele mesmo".
A cada vez que Lula improvisa, afastando-se do texto escrito de um discurso, imagino que sua assessoria de imprensa segure a respiração. Mas, seja qual for a digressão, resta que a dificuldade em adotar a retórica abstrata do poder é uma qualidade moral.
O ditado diz que não há grandes homens para seus mordomos. Ou seja, o privado nunca seria glorioso, e o grande homem seria aquele que não luta com o nó de sua gravata, pois já está, sempre, engravatado: ele renunciou às "misérias" privadas para enaltecer sua significação pública.
Ora, sempre pensei o contrário do ditado. Parece-me que só pode haver grandes homens para seus mordomos. Não porque os mordomos conheceriam os segredos de alcova que comprovam ou não a grandeza do homem. Mas porque uma condição da grandeza está na própria incapacidade de renunciar à concretude da vida privada: se não há nada para mordomo ver, é que a função substituiu o sujeito. Ele não terá como ser grande, por falta de ser homem.
Essa condição mínima da grandeza vale sobretudo para um governante, pois sua incapacidade de renunciar à sua vida privada, nesse caso, deveria garantir que ele não esquecerá a vida concreta dos governados.
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