Vai ser assim. Primeiro haverá o rapto dos verdadeiros fiéis, que o Senhor levará para perto dele. Eles sumirão de repente, deixando suas roupas, jóias e próteses.
Naquele momento, se estivermos num ônibus lançado a cem por hora na BR-116, devemos esperar que o motorista seja um pecador. A não ser que façamos parte dos eleitos, no qual caso o sumiço do motorista será para nós indiferente, pois seremos raptados para o céu com ele.
A situação, para os que serão deixados para trás, aqui na Terra, não será mole, sobretudo se eles forem pastores, padres, santos homens e santas mulheres. Como justificarão diante dos outros o fato de que Deus não os quis com ele desde já?
Depois disso virão sete anos complicados, com o surgimento do Anti-Cristo, que aparecerá como homem de paz e será secretário-geral da ONU; tudo mais ou menos como já foi anunciado pelos profetas.
Pois bem, é assim que começa "Deixados para Trás", do reverendo Tim LaHaye e Jerry B. Jenkins. É um romance do Segundo Advento, que não vale um livro de John Le Carré (por exemplo, bem no começo, há um bombardeio russo para aniquilar Israel, que teria feito mais sentido nos anos 60 do que agora). Mas, enfim, a história se lê como um policial que não acaba nunca. Até agora, a seqüência tem 11 volumes, e há mais para vir.
O reverendo LaHaye vendeu 42 milhões de exemplares, sem contar a versão em quadrinhos, o pequeno dicionário das personagens etc. Obviamente, "Deixados para Trás" existe também em português.
Decidi ler (e li os primeiros três volumes) porque os números situam esse livro como talvez o maior best-seller cristão depois da Bíblia. Será que os cristãos se tornaram todos adventistas? Não acredito.
Há uma outra explicação. Nos anos 60 e 70, os sermões católicos nos exortavam a uma vida honesta, promoviam um pouco de justiça na terra e, apesar de alguma chama do inferno evocada sobretudo por padres de áreas rurais, não faziam muito caso do Diabo, do Apocalipse e do Juízo Final. Vinte anos mais tarde, em muitos países católicos, assistiu-se a um crescimento das igrejas evangélicas, que ainda continua. Os fiéis parecem seduzidos por um cristianismo mais envolvente: entram em transe falando em línguas desconhecidas, vivem um combate contínuo com o maligno, preparam-se para o dia da ira divina, em que o Universo será reduzido a cinzas, segundo as predições de David e da Sibila. Enquanto isso, letras e músicas do "Dies Irae" (o dia da ira divina, justamente) foram retiradas da liturgia católica pelo Concílio Vaticano 2º, nos anos 60.
Em suma, o discurso evangélico é infinitamente mais dramático. Considere o seguinte: se fosse para ser antropólogo, você sonharia em administrar cursos de graduação a bandos de alunos sonolentos ou preferiria ser Indiana Jones? Na mesma linha: se é para ser cristão, você prefere servir a missa ou lutar contra o demônio de espada na mão?
A fé e a prática religiosa são sensíveis à paixão moderna pela aventura. Nas últimas décadas, talvez a literatura e Hollywood tenham feito mais para a Igreja Católica do que muitos esforços de catequese. Aliás, sobretudo Hollywood: não sei quantos ainda lêem as histórias do padre Brown de Chesterton, mas o jesuíta de nossos sonhos é o do filme "O Exorcista". Hoje, a religião que inspira mais é aquela que promete ao fiel que sua vida será um romance ou, melhor, um filme em que ele será um Schwarzenegger da fé.
Agora, um comentário para introduzir mais um detalhe (que talvez não seja um detalhe) sobre o reverendo LaHaye.
O psicanalista Jurandir Freire Costa acaba de publicar "O Vestígio e a Aura, Corpo e Consumismo na Moral do Espetáculo". Mesmo que você deteste psicanálise, não deixe de ler ao menos a segunda parte do livro. É um ensaio necessário, lúcido e esclarecedor sobre a moral dos nossos tempos. Costa não compra o lugar-comum pelo qual seríamos definidos pelo simples declínio dos valores, mas tenta enxergar os indícios de uma moral possível nos comportamentos contemporâneos. Um capítulo é consagrado à "Personalidade Somática de Nosso Tempo", que coloca o desempenho e a aparência corporais "no mesmo patamar do aperfeiçoamento sentimental ou das finalidades cívicas".
Ora, compartilho com Costa o esforço para reconhecer a possível dimensão ética dos traços mais salientes da cultura de hoje. Mas, às vezes, a coisa fica difícil. Por exemplo, a revista "Time" de 7 de fevereiro publicou uma foto-retrato do casal LaHaye: Tim (79 anos) e Beverly (75, fundadora de uma grande organização contra o aborto e o casamento gay) nos olham intensamente. Seus rostos são inundados e reluzentes de Botox, os cabelos de Tim são pateticamente ruivos de tintura, como suas sobrancelhas; os de Beverly são loiríssimos e levemente cotonados. Seus sorrisos suaves, posados e posudos, me dão calafrios. Confesso que me é difícil encontrar sinais de vida espiritual nessas caretas da "personalidade somática de nosso tempo".
Pois é, penso: aqui está o autor do best-seller que quer revigorar nossa fé com a promessa de que logo viveremos a maior aventura de todos os tempos, o fim do mundo.
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