Na coluna da semana passada, comentei a nova norma do Ministério da Saúde, segundo a qual o BO (boletim de ocorrência) policial não será mais uma condição necessária para que seja permitido interromper a gravidez produzida por estupro. Muitos leitores me escreveram. Não conseguirei responder a cada e-mail, mas agradeço a todos e discuto hoje uma das questões levantadas.
Meus correspondentes (sobretudo os advogados e os juristas) notaram que o BO policial não é nada mais do que uma declaração. Ele não prova que um estupro aconteceu, apenas atesta que uma mulher se declarou vítima de estupro. Que houve estupro só seria confirmado juridicamente depois da instrução criminal, do processo etc. Desse ponto de vista, o BO não é substancialmente diferente da declaração que seria recolhida pelo médico.
Concordo com meus interlocutores. Mas eis que alguns acrescentam: como não é possível aguardar a decisão judicial, o médico poderia assumir a responsabilidade de verificar mesmo se houve ou não estupro. Como? Pelo exame do corpo da vítima. O pressuposto é o seguinte: se houve estupro, deve haver marcas que indicam uma penetração forçada.
Ora, acontece que a sexualidade humana é bastante mais complexa do que isso. Por um lado, o encontro sexual pode ser consensual e, ao mesmo tempo, violento a ponto de deixar marcas e rasgos no sexo de uma mulher.
Por outro lado, e é isso que nos interessa agora, é possível que um encontro não deixe nenhuma marca física de violência e que, mesmo assim, não seja consensual.
Para entender como isso seria possível, é útil recorrer à distinção, proposta há tempo pela escola francesa de psicanálise, entre gozo e prazer. Explico do que se trata por um exemplo.
Uma tradição antiga diz que os supliciados na forca, na hora do estrangulamento fatal, conheciam uma ereção repentina e uma ejaculação final. Desde a Idade Média, se não antes, acreditava-se que, ao pé das forcas, crescia a mandrágora, uma planta que devia seu poder afrodisíaco ao privilégio sinistro de ser freqüentemente regada pelo sêmen dos enforcados.
Pouco importa que essa história seja verídica ou não. De qualquer forma, recomendo que ninguém tente validar ou invalidar a lenda. Mas admitamos por um instante que ela corresponda à verdade: o enforcado gozava de seu suplício, mas, obviamente, seria absurdo dizer que ele achava prazer na experiência ou mesmo que não havia suplício algum, visto que o condenado "gostava".
No caso do estupro, pode funcionar algo parecido com o que acontece com o enforcado da lenda. Imagine que a ameaça dos estupradores desperte, num canto esquecido da mente da vítima, uma fantasia de estupro (que, aliás, é freqüente, sobretudo na adolescência). Seria suficiente para que se produzisse uma excitação fisiológica da vítima e que o ato sexual acontecesse propriamente sem fricções. Os estupradores, nesse caso, poderão se gabar: "Viu, essa p... está gostando". Não por isso, se forem assassinos, pouparão a vida da vítima. Desapontados por terem a impressão de que não estão forçando a mulher quanto gostariam, eles serão, provavelmente, mais cruéis.
De qualquer forma, a eventual excitação da vítima e a conseqüente falta de marcas de violência sexual não provam de nenhuma maneira que não tenha havido estupro -assim como a ejaculação do enforcado não demonstra que não tenha havido enforcamento.
Outro exemplo: acontece, às vezes, de um sujeito seqüestrado passar a se identificar com a causa de seus seqüestradores e dar provas de extrema complacência na sua relação com eles. O fenômeno é conhecido em psicologia sob o nome de "Síndrome de Estocolmo". Como se explica? Estar inteiramente no poder de alguém é uma experiência que evoca uma vivência antiga e fundamental para cada sujeito: a de ser um nenê desamparado nas mãos dos adultos que cuidam dele. Essa vivência persiste na nossa memória como uma fantasia que promete gozo (sem nenhum prazer) nas entregas e nas servidões mais radicais. Ora, a complacência dos seqüestrados, eventualmente produzida por essa fantasia, não altera em nada o fato de que houve seqüestro.
Em suma, um abuso pode produzir gozo. Isso não significa que ele encontrou o consenso da vítima, mas implica que é sem utilidade o exame do sexo de uma mulher estuprada à procura de escoriações que comprovem o estupro. Há mais. O exame repete o escárnio dos estupradores: "Vamos ver se é verdade que ela não gostou".
Proponho essas reflexões porque gostaria que, nos próprios debates jurídicos, não ficasse esquecida a complexidade humana. Também, nas palavras de quem se opõe ao aborto mesmo em caso de estupro, parece-me, às vezes, que fica esquecida a gravidade e a violência do ato. Pede-se a uma mulher que aceite e celebre a vida de um rebento que será a lembrança encarnada do desprezo de quem a estuprou, de seu ódio pelo estuprador e, às vezes (pior ainda), do ódio e do desprezo que ela não consegue deixar de sentir por si mesma por ter sido estuprada.
Não deve ser impossível um amor materno capaz desse prodígio. Mas como ter a ousadia de exigi-lo?
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