27 novembro 2008

Simulações perigosas


A nova lei contra a pedofilia criminaliza fantasias? Seria um precedente inquietante

COMO NOTICIOU Larissa Guimarães na Folha de 12 de novembro, a Câmara dos Deputados aprovou regras mais rígidas para a punição da pedofilia. A nova formulação da lei torna mais fácil criminalizar a venda e a distribuição de pornografia infantil pela internet, assim como a posse digital (o arquivamento num computador) desse material.

Essa adaptação aos tempos era necessária e já aconteceu de maneira análoga em outros países.
Mas eis que, lendo o texto da lei, esbarrei num artigo pelo qual será punido de um a três anos de reclusão quem "simular" a participação de um menor numa cena de sexo explícito, "por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual".

Como será interpretado esse artigo? Se alguém, usando Photoshop, transformar uma fotografia pornográfica de maneira que seus atores se pareçam com crianças ou adolescentes, ele cometerá um crime? Alguém que criasse um vídeo de pornografia infantil de maneira exclusivamente digital, ou seja, sem ter que registrar cena real alguma, cometeria o mesmo crime?

O cinema já mostrou que a computação gráfica logo chegará a produzir imagens perfeitamente verossímeis: a pornografia infantil poderá dispensar o abuso efetivo de crianças e adolescentes, pois seus "atores" serão apenas seqüências digitadas num programa.

Poderíamos, apressadamente, aprovar essas interpretações da nova lei. Afinal, por mais que os vídeos pornográficos alvejados sejam invenções digitais sem referência real, resta que quem gostar deles será pedófilo e quem os produzir estará explorando e incentivando a pedofilia. Portanto, prisão neles, não é?

Pois é, cuidado: a lei moderna não pune desejos ou fantasias, mas atos. Sonhar em matar alguém que nos incomoda, à condição que a gente não tente passar ao ato, não constitui crime. Da mesma forma, por mais que o desejo do pedófilo nos repugne, o simples exercício íntimo de suas fantasias não deveria constituir crime: se alguém se masturbar, sozinho, graças a uma imagem digital cuja produção não envolveu menor, sua atividade pode ser um pecado ou uma vergonha, mas por que seria crime?

Tento ser mais claro. Pela lei moderna, o estupro é o protótipo do crime sexual: é crime agir sexualmente sem o consentimento da parceira ou do parceiro envolvidos (o caso da pedofilia é, aliás, um corolário desse princípio, pois, por definição, o menor não tem a capacidade de consentir, e o sexo, portanto, sempre lhe é "imposto").

Ora, imagens pornográficas que representam um estupro são banais, e sua produção, distribuição e posse não constituem crime. Entende-se por quê: presume-se que elas tenham sido realizadas numa simulação, com atores que concordaram em atuar naquele roteiro, e a lei não criminaliza as fantasias sexuais de quem "encena" um estupro ou de quem se excita e diverte com essa encenação.

Obviamente, o caso da pornografia infantil é diferente: um menor que atuasse numa encenação pornográfica seria vítima de abuso sexual tanto quanto se ele fosse envolvido numa cena de verdade. Mas imaginemos que a "encenação" seja produzida de maneira totalmente digital, sem ator nenhum: onde estaria o crime, senão nas fantasias de produtores e fruidores? Problema de igualdade diante da lei: por que essas fantasias constituiriam crime enquanto isso não seria o caso das fantasias de estupro?

Enfim, prefiro imaginar que o artigo de lei que citei não tenha a intenção de se aventurar no duvidoso terreno da punição de fantasias e pensamentos, mas queira apenas prever uma situação que explico a seguir. Acontece que, em tese, é impossível dizer se uma imagem ou um vídeo digitais foram gravados reproduzindo uma cena real ou sem recorrer a realidade alguma.
Ou seja, não está longe o dia em que qualquer indivíduo, preso na posse de pornografia infantil, poderá afirmar que as imagens em seu computador são apenas o registro de uma fantasia nunca atuada, mas digitalizada diretamente, como "Final Fantasy" ou "A Lenda de Beowulf". E a Justiça não terá como provar o contrário.

Uma solução possível consiste em punir produção e posse de imagens indiscriminadamente, que elas sejam devaneios digitais ou registro efetivo do abuso de um menor real. Entendo. Mas seria um precedente inquietante, em que, de fato, a lei acabaria criminalizando fantasias e pensamentos.

3 comentários:

  1. As leis sempre estão aquém da corrida tecnológica, e o que diz respeito à sua ética. Pense nos casos de câmeras de segurança hipersensíveis e todo o aparato que invade nossa privacidade. Assunto realmente delicado. Aliás, me parece, que a busca pela tecnologia cada vez mais apurada, tem como fator criativo a própria fantasia. Alinhavar as leis com as possíveis realizações (ou não) de crimes dessa ordem é tarefa árdua para nossos burocratas, já que para realização de tal tarefa seria preciso lidar com o desconforto das próprias fantasias que, lícitas ou ilícitas, estão sempre à flor da pele, e já sendo julgadas pelo nosso crivo cristão e conservador, serão também questionadas pelas leis, que eles próprios criaram.
    Abraços

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  2. poxa ...olha entrei no curso de psicologia e ja estou no segundo semestre... procurando assuntos e tentando me informar sobre tudo encontrei vc... pena que n antes....onde com certeza ja teria lido todos os seus trabalhos... gostria de informaçoes em relaçao a psicologia e psicanalise, coisas que pdesse ler e que me fizessem me apaixonar mais ainda pelo comportamento humano, desde ja, agradeço... abraço

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  3. Talvez a intenção do legislador, neste caso, seja resguardar a "honra" da criança envolvida.
    Sabemos que vídeos caseiros se alastram rapidamente na internet. Caso seja feita uma simulação envolvendo o rosto de uma criança, esta pode sofrer danos irreparáveis à sua imagem - o que lhe dá direito a pleitear indenização por dano moral, inclusive.

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