20 novembro 2008

"Vicky Cristina Barcelona'



O amor-paixão é uma tentação irresistível, é o protótipo da vida intensamente vivida

"VICKY Cristina Barcelona", de Woody Allen, estreou no Brasil na semana passada. Com muita leveza e muito bom humor, o filme me levou a pensar nos percalços da vida amorosa.
A história do verão em Barcelona de Vicky e Cristina é um pequeno tratado do amor-paixão: os espectadores terão o prazer (ou desprazer) de se reconhecer em algum lugar do leque de experiências amorosas que o filme apresenta -é um leque pequeno, mas do qual escapamos pouco. Sem resumir, eis umas notas:

1) Os casais que se amam de paixão, cujos parceiros parecem ser feitos um para o outro, em regra, acabam tentando se matar -com faca, revólver ou qualquer outro instrumento (cf. Juan Antonio e Maria Emilia). É porque, se o outro me completa e vice-versa, o risco é que nenhum de nós sobreviva à nossa união -ao menos, não como ente separado e distinto. Mas, por mais que seja ameaçadora, a paixão amorosa é uma tentação irresistível (cf. Cristina, Vicky, Judy) por uma razão simples: nas narrativas de nossa cultura, ela é o protótipo ideal da experiência plena, da vida intensamente vivida.

2) Por sorte ou não, o amor-paixão é raro. A maioria de nós vive relações menos "interessantes" e menos fatais -relações em que a gente se preocupa em criar os filhos, decorar a casa, ganhar um dinheiro ou jogar golfe (cf. Vicky e Doug, Judy e Mark). Não seria tão mal, salvo pelo detalhe seguinte: em geral, nesses casais "normais", ao menos um dos parceiros vive com a sensação de que sua escolha amorosa é resignada, fruto de um comodismo medroso: "O outro não é bem o que eu queria; culpa minha, que não tive a coragem de me arriscar a amar..."

Detalhe: como o amor-paixão é um ideal cultural, não é preciso ter atravessado a experiência da paixão para idealizá-la (as más línguas diriam, aliás, que é mais fácil idealizá-la sem tê-la vivido em momento algum).

3) Os que parecem não idealizar o amor-paixão passam o tempo se protegendo contra ele. Deve ser por isto que a "normalidade" amorosa pode ser insuportavelmente chata: porque ela exige a construção esforçada de defesas contra a paixão -argumentos morais e sociais, sempre mais "razoáveis" do que racionais (cf. Mark, Doug). Num casal, quem critica a doidice da paixão não parece sábio aos olhos de sua parceira ou de seu parceiro; ao contrário, ele parece, quase sempre, pequeno e um pouco covarde (cf. Vicky e Doug, Judy e Mark).

4) A paixão não é uma coisa que a gente possa encontrar saindo pelo mundo como um turista da vida (cf. Cristina). Pois não basta esbarrar na paixão; ainda é preciso encará-la quando ela se apresenta.

Pode ser que, um dia, se ela conseguir matar Juan Antonio com um tiro certeiro, Maria Emilia seja internada ou presa. Pode ser que Juan Antonio seja um sujeito amoral e, por isso, perigoso. Pode ser que Vicky seja desesperadamente normal, trocando a chance de amar por uma casa num subúrbio norte-americano (estou sendo injusto com Vicky: na verdade ela tenta...).
Mas, para mim, a mais "patológica" de todas as personagens do filme é Cristina. Sua aparente abertura para a vida ("Ela não sabia o que queria, mas sabia o que não queria", narra a voz em off) é apenas uma versão "bonita" e literária de sua "insatisfação crônica" (diagnosticada por Maria Emília, com razão). Nisso, Cristina é muito próxima da gente: ela quer e consegue brincar com a paixão, mas sem perder a ilusão da liberdade ou o sonho do que ela poderia encontrar na próxima esquina.

Por isso, sua voracidade é a do turista: tira muitas fotos pelo mundo afora, mas será que ela se deixa tocar pela vida?

5) Disse que "Vicky Cristina Barcelona" trata dos percalços da vida amorosa com leveza e bom humor; de fato, saí do cinema sorrindo, e não era o único. Mas a amiga que me acompanhava comentou: "Adorei, mas é um filme triste". "Como assim?", estranhei. Ela respondeu, com razão: "É um filme triste porque os personagens se apaixonam, vivem sentimentos fortes, mas, no fim, tudo isso não transforma ninguém. Vicky e Cristina vão embora iguais ao que elas eram no começo, sobretudo Cristina...".

Minha amiga tinha razão. O amor e a paixão não nos fazem necessariamente felizes, mas são uma festa e uma alegria porque deles podemos esperar ao menos isto: que eles nos tornem um pouco outros, que eles nos mudem. Agora, nem sempre funciona...

7 comentários:

  1. sensato, mas reticente. faltou dizer: vale a pena, sempre.

    eu quero. eu terei. me sentirei vivo

    um abraço

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  2. Vick Cristina Barcelona (Vick Cristina Barcelona,EUA,Espanha- 2007) - Duas jovens amigas americanas chegam de férias em Barcelona e conhecem um pintor anarquista e sedutor, por quem ambas se apaixonam.
    Acima está um dos muitos resumos que os sites trazem sobre o filme de Woody Allen...
    Na verdade, ao assistir Vick Cristina Barcelona, o que nos absorve, além da belíssima fotografia, destacando as imagens da linda Barcelona e da misteriosa Oviedo, passando pela arte de Gaudí e Miró, pela busca das americanas em viver a emoção nas terras do sangue e areia, é um bem estruturado roteiro do diretor americano cuja sensibilidade questiona os preconceitos e desejos humanos diante do amor e da vida a dois ou a três, como proposta de resolução dos seus conflitos intensos e passionais.
    Interpretações magníficas dos protagonistas apontam para questionamentos da vida moderna tanto na Europa quanto no estereótipo do casamento médio americano, como forma pre-estabelecida de futuro e acordo morno entre um homem e uma mulher que certamente se empenharão em construir um patrimônio e investir em obras de arte.
    O casal conflituado, vivido por Penélope Cruz e Javier, representa o lado louco dos artistas que buscam complementar-se em criação , através da sua pintura, e na vida íntima, onde parece sempre estar faltando algo, até que Cristina, jovem aventureira em férias de verão, entra no jogo amoroso e vive uma experiência que acaba abandonando, em momento de crise existencial.
    Por outro lado, a paixão lasciva da comedida Vick pelo mesmo homem que atrai as três mulheres, resulta em renúncia da sua parte, ao ver que há desequilíbrio demais no relacionamento do casal de pintores espanhóis.
    Allen joga com os sentimentos de maneira perfeita e intrigante. Faz com que seu público também se auto analise diante de um mundo extremamente empacotado, e revolve, a cada diálogo perfeito, o que se poderia chamar de pensamentos vagando que tentam compreender o que falta a cada criatura que tenta e quer ser feliz, e que segue buscando, em si e nos outros, alguma forma de sentir-se completo.
    Vick Cristina Barcelona faz pensar mas demonstra o quanto uma história pode ser apenas fadada a ser vivida em férias de verão. Depois, volta-se ao dia-a-dia e carrega-se a lembrança múltipla de sonhos que permanecerão na incompletude, mas que certamente se manifestarão em obras de arte, nas fotografias, nas poesias, na literatura, na moda, na cultura consumista que se encarregará de torná-la vendável, com requintes de realização pessoal ou de vida vivida sem muitos atropelos ou sob controle das próprias aventuras.
    Woody Allen, como um gênio da direção, conduz roteiro empolgante ao passo que, mais uma vez, mostra o quanto homens e mulheres contemporâneos se adaptam ao aceitar seus destinos médios e pré fabricados.
    Aparecida Torneros.

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  3. Wood Allen com seus quatro olhos vem sempre incomodar a tranquilidade nossa de cada dia com o dilema que tentamos ,e as por muitas vezes ,conseguimos esquecer...a escolha seguida da renuncia,a possibilidade de viver grandes paixoes e nenhum amor,ou nada mais nada menos que gozo e desejo,Mr Allen?

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  4. Discordo.

    A meu ver, Cristina envolveu-se realmente com Juan e Maria. Mas para ela, diferente do que foi para os dois espanhóis, aquilo era um rito de passagem, um primeiro passo para descobrir-se. Ela saiu totalmente transformada daquela relação: deixou de ser a jovem turista americana que julgava não ter talento para ser uma mulher que teve uma relação pra lá de pouco ortodoxa com um homem e com uma mulher, e descobriu em si uma artista, uma fotógrafa, cujos primeiros passos em rumo a quiçá uma carreira artística foram treinados por uma professora apaixonada e inspiradora. O modo como encantava à Cristina fotografar Maria evidencia justamente esse apaixonamento pela Musa/Professora. Essa jovem não voltou para a América, mas continuou sua busca em outras paragens da Europa. Se já começou a sim sua vida "adulta", o que não irá vivenciar mais tarde, se prosseguir na mesma abertura para o viver?

    Contardo preferiu caracterizar o ato de fotografar como um indicativo simbólico de distanciamento psicológico. Em outras palavras, "psicologizou" a obra de Allen, coisa que não podia deixar de fazer. Porém, prefiro ver no ato de fotografar apenas uma maneira de Allen inserir na vida da personagem, de modo casual, um insuspeito talento artístico.

    Já Vicky tampouco voltou exatamente a mesma para seu casamento normopático. Duvido que ela tolere por muito tempo o fantasma do "Destino de Judy" como perspectiva para seu futuro. Certo, não aguentou o tranco de se envolver com Juan, mas aí também talvez seja exigir demais de uma pessoa medrosa. Porém, logo mais adiante, surgirá na vida dela algum "colega de espanhol" com quem possa se envolver.

    E concordo com Felipe: vale a pena. Prefiria eu ter uma vida como a de Maria (que toma remédios numa rodoviária, apaixona-se pela mulher de seu ex-marido, atira em seu ex-marido, cria obras geniais e loucas... enfim, conhece o inferno e o céu que a vida tem a nos proporcionar) do que a vida de Judy (não preciso nem descrever).

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  5. Não consigo concordar com absolutamente nada desta crítica. O grande mal da psicanálise é a prisão trágica - as errâncias não são vistas como tentativas e delícias, mas como defesas patológicas.

    Algumas idéias:

    - Princípios da feminilidade: o medo (Vicky), a loucura (Maria Elena), o não-saber (Cristina). Ou princípios humanos, sob sua mascarada feminina.

    - O não-saber é, aqui, uma estratégia positiva: “eu não sei o que quero, mas sei o que não quero”, uma sabedoria que possibilita ao sujeito manter sua errância sem angústia, mas com conhecimento de causa.

    - As mesmas descrições que apresentam os personagens também acompanham sua despedida. Não se trata aqui de experiências revolucionárias, não se aposta no drama, mas de mudanças invisíveis ao olhar e que persistem - não sabemos como, gerando que ordem de frutos - mas alterando paisagens interiores.

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  6. Será que a vida é assim tão polarizada? Será que temos sempre que escolher entre viver uma vida de paixões, de realizações ou ficar com a mesmisse, no tédio que envolve o seguro terreno da rotina e do conhecido?

    Acho que os personagens do filme são caricaturas. ELes mostram diferentes aspectos que podem fazer parte de uma mesma pessoa.

    Sou um pouco Vicky, um pouco Cristina, um pouco Juan... E também um pouco MAria Helena. Já fui mais Maria Helena, confesso... Mas nunca uma coisa só. Acho complicado separar as coisas assim. Existem momentos da vida em que um ou outro aspecto se sobressaem, mas isso muda por que a vida (TKS God!)é dinâmica.

    Então deixo aqui minha opinião. A riqueza está no movimento. Qualquer uma das escolhas, se definitiva (ser Vicky, ser Cristina),torna-se pobre.

    O bacana é que durante o filme, em um dado momento, a Vicky torna-se um pouco Cristina e vice-versa...

    Um abraço,
    Renata Soifer Kraiser

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