Sigo indagando o espírito da revolta de Seattle e Washington.
Encontro assim uma fotografia: é a sala da máquina para fotocopiar de um escritório. Um jovem, de camisa e gravata, está esperando que a copiadora faça seu trabalho. À direita, uma citação: "Antevejo o dia em que árabes e americanos, latinos e escandinavos mastigarão seus crackers tão entusiasticamente quanto eles já bebem Coca-Cola ou escovam os dentes com Colgate". Assinado: o presidente da Nabisco Corporation.
A imagem produz tristeza e irritação. A tristeza é pela conformidade repetitiva imposta a nossas vidas: alguém está esperando que saiamos todos conformes, como fotocópias. A irritação é com o autor da citação, que confessa sua ambição de planejar nossos gostos. Mistura de triunfalismo ingênuo com cinismo: ele parece apostar que todos, corporações e consumidores, antevejamos um mesmo futuro feliz de salgadinhos, refrigerantes e pasta de dentes.
Outra fotografia: um cubículo anônimo sem janelas. Atrás de uma escrivaninha ordenadamente coberta por papéis, um jovem executivo está na frente de um computador, teclando. Mais uma citação: "Olhando para o futuro, vibro com a excitação dos negócios. Isto porque a companhia da sopa Campbell está engajada numa cruzada para o consumidor global", citado do Relatório Anual de 1994 da Campbell's Soup Company. Desta vez o efeito é cômico pelo contraste absurdo entre a banalidade deprimente do escritório e as (incríveis) vibrações dos cavalheiros cruzados da sopa enlatada.
Ambas imagens fazem parte de um ensaio fotográfico publicado pela "Adbusters" -uma revista canadense que milita contra o funcionamento ordinário de nossa cultura. Os "adbusters" são os caça-propaganda, traduzindo por analogia com "ghostbusters", os caça-fantasma.
O mentor da revista, Kalle Lasn, publicou, no ano passado, um livro programático: "The Uncooling of America". Ele propõe tornar inaceitáveis, deselegantes e sem graça todas as coisas (mercadorias, marcas, estilos) que são promovidas como "cool", ou seja, na moda, "legais". Isso é o "un-cooling".
O esforço para associar publicamente a Nike com a exploração de mão-de-obra infantil na Ásia é um exemplo clássico de "uncooling". Se coloco dois caubóis no pôr-do-sol e escrevo: "Bem-vindos ao país do enfisema", também é uma forma de "uncooling".
Uma outra revista, "Stay Free!" (Mantenha-se livre!), propõe uma série de fotografias de crônica (talvez modificadas, não sei dizer) nas quais personagens desagradáveis aparecem vestindo roupa de marca. Uma simpatizante da Ku Klux Klan, ao ser presa, está de moletom Gap; um molestador de crianças vai para a cadeia com um casaco de Perry Ellis etc.
Exemplo brasileiro: "Época" publica uma fotografia do juiz Nicolau com uma bolsinha Louis Vuitton na mão. Com todo o dinheiro desviado, o homem ainda recorre a este símbolo de status emergente. Ele é patético, e Vuitton perde todo seu "cool".
Mas cuidado: os caça-propaganda não estão criticando os produtos. Nada contra uma caixa de Nabisco, uma sopa Campbell e um moletom quente da Gap numa noite de inverno.
O projeto dos caça-propaganda é mais ambicioso. Lasn considera que a propaganda das grandes corporações é o instrumento pedagógico constitutivo da subjetividade contemporânea e, por isso, o maior projeto psicológico de todos os tempos. É provável que, nas últimas décadas, no mundo inteiro, os gastos com publicidade sejam maiores do que os gastos com a educação básica. Faz sentido: adquirir e consumir é hoje o caminho pelo qual somos convidados a inventar nossas identidades. Sem isso, o neoliberalismo pára.
Ora, os caça-propaganda gostariam de forçar uma nova subjetividade, que não fosse só identificação com bens, estilos e marcas. Mas há um problema: até agora o neoliberalismo se mostrou capaz de recuperar qualquer anseio de mudança. Ser revoltado tornou-se mais um estilo, uma maneira de consumir.
A contracultura, por exemplo, se transformou num ótimo negócio. Você odeia ecologicamente a vida urbana? Vendo a você um Timberland ou um casaco North Face. Com isso, você se define como um sujeito aventuroso, natural, e lá vai besteira. Por que o projeto dos caça-propaganda não seria recuperado do mesmo jeito?
Um acontecimento inesperado me sugeriu uma perspectiva mais otimista. Nos EUA, há uma marca de roupa adotada por muitos adolescentes de classe média: Abercrombie & Fitch. São roupas envelhecidas, esfarrapadas para produzir um efeito de "não estou nem aí". A marca vende o desleixo do adolescente como estilo (para os próprios adolescentes). Um dia, meu filho Ramiro, 17, incomodado com a presença invasiva desta marca entre seus colegas de escola, criou e adotou firme uma peça de vestuário original: pegou uma camiseta branca furada (modelo "esta eu guardo só para dormir") e, com uma caneta indelével, escreveu em letras capitais, no peito: Abercrombie & Fitch.
Talvez a zombaria seja a arma eficaz da revolta futura.
P.S.: Para ler mais veja os sites: www.adbusters.org e www.stayfreemagazine.org
27 julho 2000
20 julho 2000
A nova revolta: responsabilidade ilimitada
Angela Davis é um ícone da militância comunista, feminista e negra dos anos 60 e 70.
Numa recente entrevista, ela declarou: "Estou impressionada com o trabalho que os jovens estão fazendo e me irrito com muitas pessoas de minha geração que se consideram veteranos de lutas passadas e que tendem a depreciar o trabalho dos jovens e contribuem para manter a imagem dos anos 60 como a única era revolucionária".
Concordo com ela. A nostalgia do ex-combatente serve para justificar cinismo e desistência.
É mais interessante olhar com respeito para a babel de revoltas e de esperanças que animaram as ruas de Seattle e de Washington, que promete muitas outras badernas pelo mundo afora.
Dos agricultores franceses ao Greenpeace, os novos revoltados têm ao menos um inimigo comum: as grandes corporações. O projeto de um novo estatuto jurídico para as corporações está no centro da pauta de vários grupos. Parece um combate reformista que não vai mudar nada, não é?
Mas, como sugere Angela Davis, não vamos desconsiderar tão rapidamente o trabalho dos jovens.
Nesses últimos dias, as produtoras americanas de tabaco foram condenadas por um júri popular a pagar indenizações punitivas de US$ 144,8 bilhões.
O júri nem se perguntou se os fumantes que adoeceram são ou não também responsáveis por suas doenças. O que importou é que as corporações sabiam que seu produto era nocivo e produzia dependência. Com isso, seguiam caladas vendendo, promovendo e lucrando.
Quando foi formulado o pedido bilionário, as companhias afirmaram que, se fossem condenadas a pagar tal montante, iriam à bancarrota. O júri não se inibiu. Ao contrário, quis condenar as companhias à morte, assim como na Flórida (onde o processo aconteceu) seria condenado à morte alguém que matasse 400 mil pessoas por ano durante 50 anos.
Claro, é provável que o apelo acabe reduzindo substancialmente o montante. Mesmo assim, a reação da Bolsa foi curiosa. As ações da Philip Morris, da R.J.Reynolds e de outras companhias caíram apenas um pouco. Os acionistas não se indignaram e não se assustaram. Como é possível?
É graças a uma lei feita justamente para que as pessoas possam ser pacifistas e comprar Raytheon ou Lockheed, ser verdes e comprar Exxon. A lei diz e garante que, enquanto investidores, nossa responsabilidade é limitada. Muito limitada.
Naturalmente, essa isenção de responsabilidade civil e penal enferruja também nossos sentimentos morais. Se não somos responsáveis legalmente, por que nos sentiríamos culpados?
De repente, como investidores, somos outros sujeitos, além do bem e do mal -alienados num mundo abstrato onde só conta o lucro.
Veja só: se você for dono de um prédio, junto com outros proprietários, e se este prédio ruir matando um transeunte, você, junto com seus sócios, será pessoalmente responsável por essa morte. Provavelmente você também se sentirá culpado, no mínimo triste.
Isso não acontece com os investimentos acionários. A Philip Morris é condenada a pagar US$ 73 bilhões aos fumantes da Flórida. Se ela for à falência, você perderá seus investimentos: seus R$ 2.000 de ações da Philip Morris (imaginemos) não valerão mais nada.
Mas -mesmo no caso em que os bens da corporação não alcancem- os fumantes e seus herdeiros não poderão exigir que seus bens (apartamento, carro, lençóis e bicicleta) sejam vendidos para pagar os danos. Com isso, torna-se fácil investir em Philip Morris sem sequer levantar a questão da responsabilidade moral.
Os fundos de ações aperfeiçoam o sistema: o pessoal investe e não precisa saber no quê. Tudo graças ao princípio da responsabilidade limitada.
Pois bem, um dos projetos da nova revolta anticorporativa americana é este: abolir a responsabilidade limitada. Quem possui ações deveria ser pessoalmente responsável pelos atos das corporações nas quais investe.
Se essa mudança do estatuto de responsabilidade do investidor viesse a acontecer, seria certamente uma catástrofe para as bolsas -uma crise econômica incontrolável.
Mas os efeitos sociais seriam interessantes. A responsabilidade limitada é uma licença para matar: hoje as corporações supõem, com razão, que os investidores só querem lucrar.
Mas, se estes fossem responsáveis civil e penalmente, as corporações se imporiam freios morais. Pois, mesmo para lucrar, não se arriscariam a fazer algo cujas consequências afugentariam os investidores.
Você pensa em comprar ações da Petrobras. Ora, um júri popular poderia decidir que a conta da poluição é mais alta do que a Petrobras pode pagar. Neste caso, os bens dos acionistas seriam leiloados para limpar as praias da baía de Guanabara ou do rio Iguaçu. Você ainda quer comprar ações da Petrobras?
Os pruridos dos investidores assustados imporiam, enfim, algum tipo de controle democrático na atividade de monstros que hoje contam com nossas vidas mais do que os governos eleitos.
Talvez Angela Davis tenha razão: esses novos revoltados são mais radicais do que parecem.
P.S.: Quer ver um projeto de novo estatuto jurídico das corporações? Veja o da Alliance for Democracy (www.afd-online.org).
Numa recente entrevista, ela declarou: "Estou impressionada com o trabalho que os jovens estão fazendo e me irrito com muitas pessoas de minha geração que se consideram veteranos de lutas passadas e que tendem a depreciar o trabalho dos jovens e contribuem para manter a imagem dos anos 60 como a única era revolucionária".
Concordo com ela. A nostalgia do ex-combatente serve para justificar cinismo e desistência.
É mais interessante olhar com respeito para a babel de revoltas e de esperanças que animaram as ruas de Seattle e de Washington, que promete muitas outras badernas pelo mundo afora.
Dos agricultores franceses ao Greenpeace, os novos revoltados têm ao menos um inimigo comum: as grandes corporações. O projeto de um novo estatuto jurídico para as corporações está no centro da pauta de vários grupos. Parece um combate reformista que não vai mudar nada, não é?
Mas, como sugere Angela Davis, não vamos desconsiderar tão rapidamente o trabalho dos jovens.
Nesses últimos dias, as produtoras americanas de tabaco foram condenadas por um júri popular a pagar indenizações punitivas de US$ 144,8 bilhões.
O júri nem se perguntou se os fumantes que adoeceram são ou não também responsáveis por suas doenças. O que importou é que as corporações sabiam que seu produto era nocivo e produzia dependência. Com isso, seguiam caladas vendendo, promovendo e lucrando.
Quando foi formulado o pedido bilionário, as companhias afirmaram que, se fossem condenadas a pagar tal montante, iriam à bancarrota. O júri não se inibiu. Ao contrário, quis condenar as companhias à morte, assim como na Flórida (onde o processo aconteceu) seria condenado à morte alguém que matasse 400 mil pessoas por ano durante 50 anos.
Claro, é provável que o apelo acabe reduzindo substancialmente o montante. Mesmo assim, a reação da Bolsa foi curiosa. As ações da Philip Morris, da R.J.Reynolds e de outras companhias caíram apenas um pouco. Os acionistas não se indignaram e não se assustaram. Como é possível?
É graças a uma lei feita justamente para que as pessoas possam ser pacifistas e comprar Raytheon ou Lockheed, ser verdes e comprar Exxon. A lei diz e garante que, enquanto investidores, nossa responsabilidade é limitada. Muito limitada.
Naturalmente, essa isenção de responsabilidade civil e penal enferruja também nossos sentimentos morais. Se não somos responsáveis legalmente, por que nos sentiríamos culpados?
De repente, como investidores, somos outros sujeitos, além do bem e do mal -alienados num mundo abstrato onde só conta o lucro.
Veja só: se você for dono de um prédio, junto com outros proprietários, e se este prédio ruir matando um transeunte, você, junto com seus sócios, será pessoalmente responsável por essa morte. Provavelmente você também se sentirá culpado, no mínimo triste.
Isso não acontece com os investimentos acionários. A Philip Morris é condenada a pagar US$ 73 bilhões aos fumantes da Flórida. Se ela for à falência, você perderá seus investimentos: seus R$ 2.000 de ações da Philip Morris (imaginemos) não valerão mais nada.
Mas -mesmo no caso em que os bens da corporação não alcancem- os fumantes e seus herdeiros não poderão exigir que seus bens (apartamento, carro, lençóis e bicicleta) sejam vendidos para pagar os danos. Com isso, torna-se fácil investir em Philip Morris sem sequer levantar a questão da responsabilidade moral.
Os fundos de ações aperfeiçoam o sistema: o pessoal investe e não precisa saber no quê. Tudo graças ao princípio da responsabilidade limitada.
Pois bem, um dos projetos da nova revolta anticorporativa americana é este: abolir a responsabilidade limitada. Quem possui ações deveria ser pessoalmente responsável pelos atos das corporações nas quais investe.
Se essa mudança do estatuto de responsabilidade do investidor viesse a acontecer, seria certamente uma catástrofe para as bolsas -uma crise econômica incontrolável.
Mas os efeitos sociais seriam interessantes. A responsabilidade limitada é uma licença para matar: hoje as corporações supõem, com razão, que os investidores só querem lucrar.
Mas, se estes fossem responsáveis civil e penalmente, as corporações se imporiam freios morais. Pois, mesmo para lucrar, não se arriscariam a fazer algo cujas consequências afugentariam os investidores.
Você pensa em comprar ações da Petrobras. Ora, um júri popular poderia decidir que a conta da poluição é mais alta do que a Petrobras pode pagar. Neste caso, os bens dos acionistas seriam leiloados para limpar as praias da baía de Guanabara ou do rio Iguaçu. Você ainda quer comprar ações da Petrobras?
Os pruridos dos investidores assustados imporiam, enfim, algum tipo de controle democrático na atividade de monstros que hoje contam com nossas vidas mais do que os governos eleitos.
Talvez Angela Davis tenha razão: esses novos revoltados são mais radicais do que parecem.
P.S.: Quer ver um projeto de novo estatuto jurídico das corporações? Veja o da Alliance for Democracy (www.afd-online.org).
13 julho 2000
O segredo de Harry Potter
Na sexta passada, à meia-noite, o quarto volume das aventuras de Harry Potter estava enfim solto pelo mundo. Tinha minha reserva numa livraria de Brookline -tranquila cidade residencial. Como muitas outras livrarias nos EUA, nesta ocasião a loja abriria brevemente de madrugada. Assim, meia-noite se aproximando, fui procurar meu exemplar de "Harry Potter and the Goblet of Fire" (Harry Potter e o Cálice de Fogo). Imaginava que haveria pouca gente: de regra, em Brookline o pessoal janta cedo, as crianças vão para a cama às 21h e não é raro que os adultos antecedam seus rebentos. Ficariam acordados por causa de um livro?
Surpresa: a livraria estava cheia. Por pequenos grupos que pareciam conspiradores apressando o passo na noite, o lugar ia se abarrotando. Eram centenas de pais sonolentos e felizes, trazendo crianças que, como revelavam os olhos avermelhados, haviam lutado até então contra o sono. Outras pareciam já ter dormido e chegado direto da cama: era um desfile de pijamas, camisolas e pantufas. Também havia adultos sem crianças. Atrás de mim na fila, um senhor arvorava uma cicatriz ziguezagueando na testa, como Harry Potter.
Um rapaz fantasiado de mago abria a porta e desejava boa-noite. Mas o clima não era de festa mascarada. As pessoas estavam lá para comprar o livro.
Na minha frente, duas irmãs (12 e 13 anos) acompanhadas pelo pai, ambas de camisola. Cada uma ganha um exemplar. Seria difícil convencê-las a dividir. Ambas abraçam o livro, um tijolo de 730 páginas, como se fosse um ursinho de pelúcia. Passam com delicadeza uma mão na capa, acariciando Harry ou as palavras que produzem o mundo mágico de Hogwarts. Logo começam a ler, enquanto o pai espera o cartão ser processado: a cada frase levantam o rosto, sorriem uma para a outra, apertam forte o volume, suspirando. E voltam a ler.
Os livros de J.K. Rowling são um fenômeno. No Brasil, o primeiro volume, "Harry Potter e a Pedra Filosofal", ocupa os primeiros lugares nas listas dos mais vendidos. Este quarto volume é a maior primeira tiragem da história da edição: 3,8 milhões nos EUA e 1,5 milhão na Grã-Bretanha. Entre meia-noite e 1h, a livraria de Brookline vendeu quase mil exemplares.
Uma sondagem feita pela Internet sugere que, até terça-feira, 38% dos jovens que compraram o livro no sábado já terminaram de ler as 730 páginas. Na mesma sondagem, quase 40% dos entrevistados afirmam que seus pais também lêem Harry Potter.
Não sei se Potter subirá ao firmamento da literatura juvenil como Tom Sawyer, Huckleberry Finn, Lord Fauntleroy, o Pequeno Príncipe, Dorothy do mundo de Oz e os outros. O entusiasmo geral depõe a seu favor. Pois, ao redor de todas essas figuras, leitores adultos e jovens sempre se encontraram como hoje acontece com Potter.
Desde que há literatura no sentido moderno, muitos best sellers foram livros ditos infanto-juvenis, que obviamente não eram lidos só pelos jovens. Na verdade, eram sobretudo livros nos quais uma criança ou um adolescente é o herói.
A maioria das pessoas, quando lhes perguntam quais livros foram mais marcantes em suas vidas, lembram de alguma leitura de infância. A literatura juvenil é tão importante em nossa cultura porque as histórias que ela conta repetem uma espécie de mito fundador da modernidade: um conto de criança que trata do heroísmo de crescer, se tornar independente, se afastar do amparo dos adultos, descobrir e inventar um destino diferente, autônomo. Em suma, é na literatura juvenil que aprendemos a ser modernos.
Para significar e garantir a liberdade infantil e adolescente, as crianças protagonistas -de Tom Sawyer a Tarzan, passando por Narizinho- são sempre órfãs ou quase.
Harry também é órfão. Os pais mortos por Valdemort lhe deixaram um pecúlio suficiente para não se preocupar. Do amor materno, lhe sobra uma proteção permanente contra todo sortilégio assassino. Do pai, uma lição de coragem. Assim, Harry está certo de ter sido amado, mas pode e deve crescer sozinho e livre. Os pais lhe transmitiram apenas o que é preciso, ou seja, as condições de sua autonomia.
Mas há algo mais, que faz de Potter o herói do momento. As circunstâncias levam Harry a lutar contra o malvado Valdemort. O órfão se transforma assim em vingador de seus pais e salvador do mundo. Ou seja, ele encarna um paradoxo: é livre para realizar exatamente os sonhos mais ambiciosos de seus pais. Que liberdade é essa? A contradição faz de Harry um compêndio da glória, das dores e das ilusões de nossa subjetividade contemporânea.
P.S. Livre, mas condenado a vingar os pais e a lutar contra o mal, Harry é uma espécie de Batman jovem.
Mago reprimido, criado pelos tios que odeiam a magia, Harry evoca (numa versão cômica) a triste adolescência dos X-men mutantes da Marvel Comics.
As histórias em quadrinhos (nos quais também leitores adultos e jovens se encontram) fornecem a Rowling vários elementos para atualizar o mito do órfão da literatura juvenil. Essa é mais uma explicação da popularidade de nosso herói.
Surpresa: a livraria estava cheia. Por pequenos grupos que pareciam conspiradores apressando o passo na noite, o lugar ia se abarrotando. Eram centenas de pais sonolentos e felizes, trazendo crianças que, como revelavam os olhos avermelhados, haviam lutado até então contra o sono. Outras pareciam já ter dormido e chegado direto da cama: era um desfile de pijamas, camisolas e pantufas. Também havia adultos sem crianças. Atrás de mim na fila, um senhor arvorava uma cicatriz ziguezagueando na testa, como Harry Potter.
Um rapaz fantasiado de mago abria a porta e desejava boa-noite. Mas o clima não era de festa mascarada. As pessoas estavam lá para comprar o livro.
Na minha frente, duas irmãs (12 e 13 anos) acompanhadas pelo pai, ambas de camisola. Cada uma ganha um exemplar. Seria difícil convencê-las a dividir. Ambas abraçam o livro, um tijolo de 730 páginas, como se fosse um ursinho de pelúcia. Passam com delicadeza uma mão na capa, acariciando Harry ou as palavras que produzem o mundo mágico de Hogwarts. Logo começam a ler, enquanto o pai espera o cartão ser processado: a cada frase levantam o rosto, sorriem uma para a outra, apertam forte o volume, suspirando. E voltam a ler.
Os livros de J.K. Rowling são um fenômeno. No Brasil, o primeiro volume, "Harry Potter e a Pedra Filosofal", ocupa os primeiros lugares nas listas dos mais vendidos. Este quarto volume é a maior primeira tiragem da história da edição: 3,8 milhões nos EUA e 1,5 milhão na Grã-Bretanha. Entre meia-noite e 1h, a livraria de Brookline vendeu quase mil exemplares.
Uma sondagem feita pela Internet sugere que, até terça-feira, 38% dos jovens que compraram o livro no sábado já terminaram de ler as 730 páginas. Na mesma sondagem, quase 40% dos entrevistados afirmam que seus pais também lêem Harry Potter.
Não sei se Potter subirá ao firmamento da literatura juvenil como Tom Sawyer, Huckleberry Finn, Lord Fauntleroy, o Pequeno Príncipe, Dorothy do mundo de Oz e os outros. O entusiasmo geral depõe a seu favor. Pois, ao redor de todas essas figuras, leitores adultos e jovens sempre se encontraram como hoje acontece com Potter.
Desde que há literatura no sentido moderno, muitos best sellers foram livros ditos infanto-juvenis, que obviamente não eram lidos só pelos jovens. Na verdade, eram sobretudo livros nos quais uma criança ou um adolescente é o herói.
A maioria das pessoas, quando lhes perguntam quais livros foram mais marcantes em suas vidas, lembram de alguma leitura de infância. A literatura juvenil é tão importante em nossa cultura porque as histórias que ela conta repetem uma espécie de mito fundador da modernidade: um conto de criança que trata do heroísmo de crescer, se tornar independente, se afastar do amparo dos adultos, descobrir e inventar um destino diferente, autônomo. Em suma, é na literatura juvenil que aprendemos a ser modernos.
Para significar e garantir a liberdade infantil e adolescente, as crianças protagonistas -de Tom Sawyer a Tarzan, passando por Narizinho- são sempre órfãs ou quase.
Harry também é órfão. Os pais mortos por Valdemort lhe deixaram um pecúlio suficiente para não se preocupar. Do amor materno, lhe sobra uma proteção permanente contra todo sortilégio assassino. Do pai, uma lição de coragem. Assim, Harry está certo de ter sido amado, mas pode e deve crescer sozinho e livre. Os pais lhe transmitiram apenas o que é preciso, ou seja, as condições de sua autonomia.
Mas há algo mais, que faz de Potter o herói do momento. As circunstâncias levam Harry a lutar contra o malvado Valdemort. O órfão se transforma assim em vingador de seus pais e salvador do mundo. Ou seja, ele encarna um paradoxo: é livre para realizar exatamente os sonhos mais ambiciosos de seus pais. Que liberdade é essa? A contradição faz de Harry um compêndio da glória, das dores e das ilusões de nossa subjetividade contemporânea.
P.S. Livre, mas condenado a vingar os pais e a lutar contra o mal, Harry é uma espécie de Batman jovem.
Mago reprimido, criado pelos tios que odeiam a magia, Harry evoca (numa versão cômica) a triste adolescência dos X-men mutantes da Marvel Comics.
As histórias em quadrinhos (nos quais também leitores adultos e jovens se encontram) fornecem a Rowling vários elementos para atualizar o mito do órfão da literatura juvenil. Essa é mais uma explicação da popularidade de nosso herói.
06 julho 2000
Terapias virtuais para nossa realidade virtual
Quem não gostaria de jogar videogame para se livrar de sintomas chatos e invalidantes? Pois bem, recentemente "Veja" e "Época" assinalaram a existência de Virtually Better (Virtualmente Melhor). É uma das empresas que desenvolvem programas de realidade virtual para curar medo de avião, de altura, de tempestade, de espaços abertos e de falar em público. A sede é em Atlanta, mas há clínicas afiliadas até em Buenos Aires. Aposto que logo aparecerá uma sucursal em São Paulo.
Eis como se chegou ao uso terapêutico da realidade virtual. Há tempo existem terapias ditas de dessensibilização: os pacientes (sobretudo fóbicos) são expostos progressivamente aos objetos de seus medos, aprendendo técnicas para acalmar a angústia.
Pode-se tentar a exposição pela imaginação: feche os olhos, imagine que está subindo no avião etc. Não funciona muito bem. A exposição real é mais eficaz: paciente e terapeuta viajam no mesmo avião -quem sabe de mãos dadas, seguindo a sugestão de Belchior.
Infelizmente é um acompanhamento caro (pelo tempo que o terapeuta dedica ao paciente). E incerto: por exemplo, seria bom que o primeiro vôo fosse tranquilo, mas como garantir que não haja turbulências naquele dia?
Esses problemas são resolvidos pela realidade virtual, que comprovadamente oferece a mesma eficácia da exposição real, reduz os custos e permite o controle da experiência.
O paciente veste um capacete e, ao virar a cabeça, tem uma visão de 360 graus e som estéreo. Outros aparelhos (um colete, uma cadeira que vibra e mexe) produzem mais impressões sensoriais, aperfeiçoando a imersão no mundo virtual. O terapeuta acompanha o paciente graças a uma tela.
Sua fala ressoa de dentro do mundo virtual. Alguns eletrodos informam o terapeuta sobre o nível de estresse que a situação virtual está impondo ao paciente. Ele pode assim calibrar suas intervenções.
Por exemplo, no programa para o medo de falar em público, o terapeuta controla as reações da platéia. Dependendo do estresse do paciente, ele administra aplausos, indiferença ou vaias. Detalhe interessante: o paciente pode ensaiar dessa forma uma palestra que ele deve realmente apresentar e cujo texto aparece num teleprompter para ele ler.
Estudos pequenos, mas significativos, mostram que a terapia virtual funciona. Seus benefícios não são sempre permanentes; em compensação, é fácil repetir a dose se for necessário.
Pode-se discutir sobre a origem desta eficácia. Alguns acreditam que a melhora seja o efeito da simples repetição. É a idéia do rei Mitrídates: tomando um pouco de veneno a cada dia, a gente se tornaria imune. A meu ver, a mudança não aconteceria sem o diálogo e a confiança depositada no terapeuta.
Seja como for, se a realidade virtual pode nos ajudar a vencer ou a controlar nossos medos, é porque -como comentou um colega, Manoel Berlinck- estes são tão virtuais quanto os programas.
Que o avião caia, que sejamos aspirados no precipício, que nossa voz falhe e a platéia nos devore ou que o espaço aberto nos aniquile, esses pavores são puras virtualidades.
A lição das terapias virtuais não pára aqui. Virtually Better propõe um programa de realidade virtual para o tratamento dos transtornos pós-traumáticos dos veteranos do Vietnã. A memória e seus traumas podem ser corrigidos virtualmente do mesmo jeito que a antecipação e seus medos.
Há mais. No começo dos anos 90, uma outra técnica de realidade virtual -a realidade aumentada- deu resultados positivos com pacientes de doença de Parkinson que apresentam o seguinte paradoxo neurológico: sua marcha é imobilizada, e eles conseguem avançar só se houver obstáculos ou limiares. O caminho deles foi, portanto, obstruído por obstáculos virtuais projetados, o que lhes permitiu avançar.
Também se difunde o uso anestésico da realidade virtual. A imersão num outro mundo produz mais do que uma simples distração. Ela transporta os pacientes alhures durante a dolorosa medicação de queimaduras ou a administração de quimioterapias pesadas.
Em suma, o futuro dos programas de realidade virtual é luminoso. Sua eficácia é garantida, pois eles nos propõem experiências cuja matéria-prima é a mesma tanto de nossos medos quanto de nossas aspirações, fantasias e lembranças.
Sofremos, sonhamos e gozamos com virtualidades -ectoplasmas projetados por nossa subjetividade. São elas que nos assustam e inibem ou motivam e excitam. Não é de estranhar que a imersão em mundos virtuais eletrônicos nos afete.
P.S.: Neste sábado, chega às livrarias americanas o quarto livro de Harry Potter. É a maior primeira tiragem da história: 3,8 milhões de exemplares.
Mesmo assim, as pessoas estão com medo de ficar sem um. Fiz minha reserva e receberei meu exemplar à meia-noite de sexta.
Seguindo o princípio de marketing do livro: na coluna da próxima quinta, vou enfim dizer por que eu e alguns outros gostamos de Harry Potter. Desde já, reserve o seu exemplar da Folha nas bancas.
Eis como se chegou ao uso terapêutico da realidade virtual. Há tempo existem terapias ditas de dessensibilização: os pacientes (sobretudo fóbicos) são expostos progressivamente aos objetos de seus medos, aprendendo técnicas para acalmar a angústia.
Pode-se tentar a exposição pela imaginação: feche os olhos, imagine que está subindo no avião etc. Não funciona muito bem. A exposição real é mais eficaz: paciente e terapeuta viajam no mesmo avião -quem sabe de mãos dadas, seguindo a sugestão de Belchior.
Infelizmente é um acompanhamento caro (pelo tempo que o terapeuta dedica ao paciente). E incerto: por exemplo, seria bom que o primeiro vôo fosse tranquilo, mas como garantir que não haja turbulências naquele dia?
Esses problemas são resolvidos pela realidade virtual, que comprovadamente oferece a mesma eficácia da exposição real, reduz os custos e permite o controle da experiência.
O paciente veste um capacete e, ao virar a cabeça, tem uma visão de 360 graus e som estéreo. Outros aparelhos (um colete, uma cadeira que vibra e mexe) produzem mais impressões sensoriais, aperfeiçoando a imersão no mundo virtual. O terapeuta acompanha o paciente graças a uma tela.
Sua fala ressoa de dentro do mundo virtual. Alguns eletrodos informam o terapeuta sobre o nível de estresse que a situação virtual está impondo ao paciente. Ele pode assim calibrar suas intervenções.
Por exemplo, no programa para o medo de falar em público, o terapeuta controla as reações da platéia. Dependendo do estresse do paciente, ele administra aplausos, indiferença ou vaias. Detalhe interessante: o paciente pode ensaiar dessa forma uma palestra que ele deve realmente apresentar e cujo texto aparece num teleprompter para ele ler.
Estudos pequenos, mas significativos, mostram que a terapia virtual funciona. Seus benefícios não são sempre permanentes; em compensação, é fácil repetir a dose se for necessário.
Pode-se discutir sobre a origem desta eficácia. Alguns acreditam que a melhora seja o efeito da simples repetição. É a idéia do rei Mitrídates: tomando um pouco de veneno a cada dia, a gente se tornaria imune. A meu ver, a mudança não aconteceria sem o diálogo e a confiança depositada no terapeuta.
Seja como for, se a realidade virtual pode nos ajudar a vencer ou a controlar nossos medos, é porque -como comentou um colega, Manoel Berlinck- estes são tão virtuais quanto os programas.
Que o avião caia, que sejamos aspirados no precipício, que nossa voz falhe e a platéia nos devore ou que o espaço aberto nos aniquile, esses pavores são puras virtualidades.
A lição das terapias virtuais não pára aqui. Virtually Better propõe um programa de realidade virtual para o tratamento dos transtornos pós-traumáticos dos veteranos do Vietnã. A memória e seus traumas podem ser corrigidos virtualmente do mesmo jeito que a antecipação e seus medos.
Há mais. No começo dos anos 90, uma outra técnica de realidade virtual -a realidade aumentada- deu resultados positivos com pacientes de doença de Parkinson que apresentam o seguinte paradoxo neurológico: sua marcha é imobilizada, e eles conseguem avançar só se houver obstáculos ou limiares. O caminho deles foi, portanto, obstruído por obstáculos virtuais projetados, o que lhes permitiu avançar.
Também se difunde o uso anestésico da realidade virtual. A imersão num outro mundo produz mais do que uma simples distração. Ela transporta os pacientes alhures durante a dolorosa medicação de queimaduras ou a administração de quimioterapias pesadas.
Em suma, o futuro dos programas de realidade virtual é luminoso. Sua eficácia é garantida, pois eles nos propõem experiências cuja matéria-prima é a mesma tanto de nossos medos quanto de nossas aspirações, fantasias e lembranças.
Sofremos, sonhamos e gozamos com virtualidades -ectoplasmas projetados por nossa subjetividade. São elas que nos assustam e inibem ou motivam e excitam. Não é de estranhar que a imersão em mundos virtuais eletrônicos nos afete.
P.S.: Neste sábado, chega às livrarias americanas o quarto livro de Harry Potter. É a maior primeira tiragem da história: 3,8 milhões de exemplares.
Mesmo assim, as pessoas estão com medo de ficar sem um. Fiz minha reserva e receberei meu exemplar à meia-noite de sexta.
Seguindo o princípio de marketing do livro: na coluna da próxima quinta, vou enfim dizer por que eu e alguns outros gostamos de Harry Potter. Desde já, reserve o seu exemplar da Folha nas bancas.
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