Os consumidores assíduos de cocaína, heroína ou maconha que querem se livrar de sua dependência encontram hoje recursos químicos de duas classes. Existem produtos que atenuam a sensação de falta. E outros que podem substituir cada uma das drogas, oferecendo uma alternativa consolatória e -espera-se- menos nociva.
Em todo caso, é fundamental que o sujeito mantenha firme a determinação de parar. Para ajudá-lo nisso, há programas de desintoxicação, grupos de interajuda etc.
Ora, um artigo publicado na "New Scientist" de 10/6/2000 traz uma novidade: é possível que verdadeiras vacinas contra as drogas estejam prontas nos próximos três anos. O princípio é o seguinte: moléculas similares à molécula de uma droga são associadas a uma proteína que as torna detectáveis pelo sistema imunológico. Elas podem, assim, servir de isca para estimular a produção de anticorpos específicos.
Um preparado dessas moléculas é injetado no sujeito. A partir daí, as moléculas de droga que entrarem no corpo serão "reconhecidas" pelos anticorpos e aniquiladas, antes que a droga se torne ativa no organismo. Macacos, ratos e humanos, uma vez vacinados, por mais que cheirem ou injetem, não conseguem nenhum barato. O sujeito pára de se drogar, porque a droga não faz efeito. A idéia surgiu nos anos 70, com uma vacina contra a heroína, que funcionava (em macacos), mas oferecia proteção por um tempo muito curto. Nos anos 90, chegou uma vacina contra a cocaína, que foi mais bem-sucedida e está sendo testada em humanos. Há pesquisas em curso para quase todas as drogas.
À primeira vista, o projeto inspira simpatia. As vacinas podem ajudar os sujeitos que se desintoxicam e prevenir as recaídas. Quem sabe, elas ajudem a sarar as cracolândias das metrópoles mundiais.
Mas a idéia das vacinas é também um exemplo da extraordinária desistência moral de nossa cultura. Logo nós, modernos, inventores da liberdade individual, parecemos confiar mais numa modificação material de nossos corpos do que em nossas livres escolhas e decisões. Pois se trata disso: alguém se injeta uma vacina que torna a droga inoperante para que a tarefa de resistir aos charmes da droga seja delegada ao corpo. O sujeito pode afrouxar sua determinação, pois os anticorpos se manterão intransigentes.
Por esse caminho, imaginemos que alguém, por razões morais, decida praticar o celibato e se manter puro: em vez de disciplinar seus desejos incômodos, ele deveria se capar. Se um dia chegássemos a identificar genes ou zonas cerebrais responsáveis por comportamentos que preferiríamos evitar (violência, agressividade, mentira etc.), por que não pouparíamos nossos esforços éticos, recorrendo diretamente a alterações corporais?
Alguém achará que estou exagerando: afinal, quem decide tomar a vacina é o sujeito que quer ser desintoxicado. Livremente, ele resolveria nunca mais ser exposto à tentação da droga.
Certo. Mas aposto que, se dispuséssemos de vacinas contra as drogas, esqueceríamos de pedir o consentimento dos vacinados. Como evitar que um governo decida imunizar toda a população "de risco" (a começar pela carcerária)? Como evitar que os pais vacinem todos os seus rebentos? Qualquer profissional ou pai que conheça a inércia agressiva de um maconheiro adolescente concordaria com essa decisão preventiva. Em pouco tempo, a vacina contra as drogas seria obrigatória e universal.
Se a imunização valesse para a vida inteira (assim como é esperado), lamentaríamos um sério empobrecimento da experiência humana. Adeus, Thomas De Quincy, Charles Baudelaire, Allen Ginsberg e outros drogados. Mas isso é o menos grave.
Eis o pior: quando um caminho importante é impedido, os humanos sempre encontram outros jeitos e inventam desvios. Sobretudo comportamentos que insistem e se impõem (aparentemente) contra nossa vontade -como é o caso da toxicomania- não são escolhas de vida acidentais.
Eles são peças relevantes da engrenagem da personalidade. Por isso não podem ser retirados como se fossem espinhos no pé. Torná-los fisicamente impossíveis significa obrigar o sujeito a encontrar outros comportamentos que tenham uma função análoga na engrenagem. Ou seja, quem renunciar a se drogar apenas porque seus anticorpos impedem a ação da droga achará outros jeitos de gritar sua rebeldia ou sua tristeza.
Em suma, os anticorpos policiarão, talvez, um dia, o uso das drogas. Evitaremos, assim, esforços morais excessivos, e nossas vidas serão, desse ponto de vista, normalizadas. Mas não é o caso de se preocupar em demasia com a chegada de um mundo uniforme e aborrecido.
De fato, as vacinas antidrogas (e remédios análogos) prometem um mundo explosivo e incerto. Eis por que: algum mal-estar psíquico e social mantém as drogas bem perto do centro da experiência contemporânea. Se formos imunizados contra as drogas, o mal-estar será silenciado sem ser ouvido. É inevitável que ele insista e volte a se dizer sob outras formas, imprevisíveis. E provavelmente com violência renovada.
30 novembro 2000
23 novembro 2000
Nas eleições americanas, ninguém votou feliz
Na sexta-feira , fui para o armário de ferramentas, achei uma fita adesiva de sete centímetros de largura, cortei um pedaço e censurei o canto direito inferior da tela da televisão. Alívio.
Quem, nestes dias, assiste à CNN via cabo sabe do que estou falando. O epílogo das eleições americanas é acompanhado pela presença constante dos índices da Bolsa de Valores. Aparecem alternadamente Dow Jones e Nasdaq, com sua variação do dia e uma pequena flecha- verde, para cima, ou vermelha, para baixo. Durante o tempo em que a Bolsa permanece aberta (das 9h30 às 16h, horário da Costa Leste norte-americana), os índices são atualizados constantemente.
É uma prática normal da CNN: as oscilações da Bolsa são notícias relevantes para o grande número de americanos que administram diretamente seu fundo de pensão.
Mas, no caso, foram dez dias de comentários, declarações e debates sobre o futuro político dos EUA com as siglas "Dow" e "Nasdaq" que piscavam, como mensagens subliminares, ludibriando a significação da eleição. Acima (mais exatamente, embaixo, à direita) de tudo o que Bush e Gore pudessem representar, Wall Street pisca. Bush quer impedir que os votos sejam recontados? Muito bem, e a Bolsa? Gore faz um gesto de conciliação? E a Bolsa? A pulsação dos índices parece ameaçar: cuidado, humanos, os deuses poderiam irritar-se.
Descobri que não sou o único incomodado com essa presença tutelar. Bastou sair de casa. Na televisão, aparecem os estados-maiores ameaçando brigas institucionais, assim como militantes democratas e republicanos quase se batendo. Talvez na Flórida as coisas estejam assim: com os dois partidos assoprando a brasa, os próprios jornalistas têm dificuldade em sair do tom polêmico da campanha.
Mas aqui, no nordeste dos EUA, duas semanas depois da eleição, a comédia dos resultados incertos está tendo um efeito diferente. A conversa sobre as eleições é frequente, mas sem entusiasmo: é um dever chato. Ela segue um cenário fixo -que descobri conversando com conhecidos ao redor de uma mesa de jantar. Logo verifiquei sua validade com vários desconhecidos, num café new age como Starbuck's, num bar para yuppies a fim de aperitivo e num pub enfumaçado frequentado por trabalhadores manuais.
No começo, sempre há indignação com o sistema eleitoral que está sendo objeto da zombaria mundial. Alguém lembra uma piada: a rainha Elizabeth teria decidido revogar a independência das colônias, já que essas não conseguem votar direito. Ou então Hugo Chávez e Fujimori estão a caminho da Flórida para monitorar o processo de recontagem dos votos.
A fase indignada dura pouco: logo todos concordam que a metodologia concreta da votação deve ser modernizada. Conclusão provisória: que contem os votos do melhor jeito e que a Justiça decida. E basta. Ninguém parece estar a fim de uma discussão partidária. Não é raro que, de ambos os lados, se comente que essa votação tão parelha é uma bênção -pois o eleito, seja ele quem for, não terá poder político nenhum para realizar suas promessas de campanha.
Isso confirma o que sugerem alguns comentadores: o voto dividido manifestaria que a nação aspira a um governo de centro ou de união. No mínimo, com o atraso do resultado das eleições, parece que os americanos tiveram o tempo de concluir que, na verdade, os dois candidatos não eram nem propunham nada do que eles queriam.
Os eleitores se reconciliam no malogro comum: ninguém, nesta eleição, votou feliz. Por isso é fácil conversar na hora de um desempate tão delicado. Mediocridade dos candidatos? É possível. Mas existe outra hipótese.
Três vezes, nestes últimos dias, ouvi comentarem que "não estaríamos neste pepino se, no lugar de Bush, John McCain tivesse sido escolhido como candidato republicano, pois ele ganharia disparado". A cada vez, os democratas presentes concordaram e declararam que eles também teriam votado nele.
Não sei se McCain teria ganhado, caso fosse escolhido como candidato. O fato é que ele aparece agora como um candidato que teria arrasado. Ora, além de suas qualidades morais, McCain era o único defensor de uma reforma radical do financiamento das campanhas. Ele é lembrado por isso: no imaginário de todos, em sua corrida presidencial, foi derrubado pelas corporações.
Ninguém lembra direito os detalhes da reforma proposta, mas, nas conversas de bar, sobra um princípio extremo: não há por que conferir a pessoas jurídicas o privilégio de apoiar candidatos. Afinal, essa deve ser a prerrogativa apenas de quem vota, do cidadão, da pessoa física, "da gente".
Até ontem, essa idéia era uma utopia democrática de ditos "marginais", lutando contra "o sistema". A surpresa é encontrá-la hoje circulando numa variedade de espíritos de classe média.
A eleição empatada encoraja todos a pensar que cada voto conta. Esse sentimento, temperado com uma dose básica de individualismo americano, parece avigorar a fé nas virtudes de uma democracia mais direta. Sobretudo menos vendida. Não seria mau.
Quem, nestes dias, assiste à CNN via cabo sabe do que estou falando. O epílogo das eleições americanas é acompanhado pela presença constante dos índices da Bolsa de Valores. Aparecem alternadamente Dow Jones e Nasdaq, com sua variação do dia e uma pequena flecha- verde, para cima, ou vermelha, para baixo. Durante o tempo em que a Bolsa permanece aberta (das 9h30 às 16h, horário da Costa Leste norte-americana), os índices são atualizados constantemente.
É uma prática normal da CNN: as oscilações da Bolsa são notícias relevantes para o grande número de americanos que administram diretamente seu fundo de pensão.
Mas, no caso, foram dez dias de comentários, declarações e debates sobre o futuro político dos EUA com as siglas "Dow" e "Nasdaq" que piscavam, como mensagens subliminares, ludibriando a significação da eleição. Acima (mais exatamente, embaixo, à direita) de tudo o que Bush e Gore pudessem representar, Wall Street pisca. Bush quer impedir que os votos sejam recontados? Muito bem, e a Bolsa? Gore faz um gesto de conciliação? E a Bolsa? A pulsação dos índices parece ameaçar: cuidado, humanos, os deuses poderiam irritar-se.
Descobri que não sou o único incomodado com essa presença tutelar. Bastou sair de casa. Na televisão, aparecem os estados-maiores ameaçando brigas institucionais, assim como militantes democratas e republicanos quase se batendo. Talvez na Flórida as coisas estejam assim: com os dois partidos assoprando a brasa, os próprios jornalistas têm dificuldade em sair do tom polêmico da campanha.
Mas aqui, no nordeste dos EUA, duas semanas depois da eleição, a comédia dos resultados incertos está tendo um efeito diferente. A conversa sobre as eleições é frequente, mas sem entusiasmo: é um dever chato. Ela segue um cenário fixo -que descobri conversando com conhecidos ao redor de uma mesa de jantar. Logo verifiquei sua validade com vários desconhecidos, num café new age como Starbuck's, num bar para yuppies a fim de aperitivo e num pub enfumaçado frequentado por trabalhadores manuais.
No começo, sempre há indignação com o sistema eleitoral que está sendo objeto da zombaria mundial. Alguém lembra uma piada: a rainha Elizabeth teria decidido revogar a independência das colônias, já que essas não conseguem votar direito. Ou então Hugo Chávez e Fujimori estão a caminho da Flórida para monitorar o processo de recontagem dos votos.
A fase indignada dura pouco: logo todos concordam que a metodologia concreta da votação deve ser modernizada. Conclusão provisória: que contem os votos do melhor jeito e que a Justiça decida. E basta. Ninguém parece estar a fim de uma discussão partidária. Não é raro que, de ambos os lados, se comente que essa votação tão parelha é uma bênção -pois o eleito, seja ele quem for, não terá poder político nenhum para realizar suas promessas de campanha.
Isso confirma o que sugerem alguns comentadores: o voto dividido manifestaria que a nação aspira a um governo de centro ou de união. No mínimo, com o atraso do resultado das eleições, parece que os americanos tiveram o tempo de concluir que, na verdade, os dois candidatos não eram nem propunham nada do que eles queriam.
Os eleitores se reconciliam no malogro comum: ninguém, nesta eleição, votou feliz. Por isso é fácil conversar na hora de um desempate tão delicado. Mediocridade dos candidatos? É possível. Mas existe outra hipótese.
Três vezes, nestes últimos dias, ouvi comentarem que "não estaríamos neste pepino se, no lugar de Bush, John McCain tivesse sido escolhido como candidato republicano, pois ele ganharia disparado". A cada vez, os democratas presentes concordaram e declararam que eles também teriam votado nele.
Não sei se McCain teria ganhado, caso fosse escolhido como candidato. O fato é que ele aparece agora como um candidato que teria arrasado. Ora, além de suas qualidades morais, McCain era o único defensor de uma reforma radical do financiamento das campanhas. Ele é lembrado por isso: no imaginário de todos, em sua corrida presidencial, foi derrubado pelas corporações.
Ninguém lembra direito os detalhes da reforma proposta, mas, nas conversas de bar, sobra um princípio extremo: não há por que conferir a pessoas jurídicas o privilégio de apoiar candidatos. Afinal, essa deve ser a prerrogativa apenas de quem vota, do cidadão, da pessoa física, "da gente".
Até ontem, essa idéia era uma utopia democrática de ditos "marginais", lutando contra "o sistema". A surpresa é encontrá-la hoje circulando numa variedade de espíritos de classe média.
A eleição empatada encoraja todos a pensar que cada voto conta. Esse sentimento, temperado com uma dose básica de individualismo americano, parece avigorar a fé nas virtudes de uma democracia mais direta. Sobretudo menos vendida. Não seria mau.
16 novembro 2000
Conselhos para não gastar demais nas festas
É fácil , hoje, encontrar sujeitos que gastam muito mais do que podem -e não só no fim do ano. Eles preocupam os economistas e também os psicólogos e os psiquiatras. Pois há quem considere essa inclinação uma doença, talvez um vício.
Naturalmente, sempre se encontram explicações singulares. Um sujeito quer, inconscientemente, se desfazer de uma fortuna acumulada de maneira duvidosa. Outro deseja sua própria bancarrota, numa verdadeira fantasia erótica. E por aí vai.
Mas, atrás dessa variedade, há um pano de fundo. Nós, modernos, somos obrigados a gastar além de nossas necessidades. Melhor dizendo, nossas necessidades vão além da subsistência física: devemos adquirir e consumir, sobretudo para sermos reconhecidos por nossos concidadãos. Somos de classe A, B, C, D ou E não por nascença ou por outras qualidades intrínsecas, mas segundo quanto possuímos e consumimos, ou seja, segundo quanto gastamos.
Não é de estranhar, portanto, que as estatísticas repitam que os americanos de classe média não poupam nada e se endividam demais. Isso vale para aqueles que se beneficiaram da recente prosperidade dos EUA. Imagine o drama dos outros: empobrecem e devem aumentar os gastos -uma vez que, em nossa cultura, é essa a forma básica da competição social.
No entanto há algo além disso na conduta do gastador. A maioria dos sujeitos que se queixam de sua compulsão (e contemplam estupefatos as contas no fim do mês) compartilha uma fórmula mágica. Na hora de proceder a uma nova compra, eles dizem: "Com tudo o que eu trabalho, tenho direito!". Eles ultrapassam assim suas hesitações. As considerações sobre o dinheiro disponível são silenciadas. O que importa -afirma o sujeito- é que "trabalho dez horas por dia" ou então "saio à luta a cada manhã", "estou na batalha o tempo inteiro", portanto "mereço, é meu direito". Em suma, nós nos sentimos autorizados a gastar não por nossa solvência, mas por nossos méritos.
O cartão de crédito parece ter sido inventado para facilitar essa estranha aritmética. Ele tem uma função dupla. Estabelece meu status, que depende não do que eu tenho, mas de quanto posso gastar (os cartões dão acesso às salas VIPs dos aeroportos). E, sobretudo, o cartão me compreende: sabe que tenho menos dinheiro do que mereço e corrige essa injustiça, autorizando-me a comprar e consumir.
Gastando, afirmamos o triunfo de nossos méritos e de nossos direitos contra a inércia da conta bancária e o peso de nossas dívidas.
Não é uma surpresa que essa conduta seja tão popular. A modernidade começa quando o sujeito não é mais definido por seus deveres, mas por seus direitos.
Enquanto modernos, nosso destino não é ditado pelo serviço que devemos ao dono da terra, pelo dízimo que devemos à paróquia ou pela obediência e pelo respeito que devemos aos anciões da tribo. Em vez disso, nós vivemos livres, com o direito de dispor de nossa pessoa, de circular pelo mundo, de falar sem censura etc. Os direitos se multiplicam. O sujeito tradicional era mais bem descrito como rede de obrigações. Nós somos feixes de direitos.
Com isso, os limites concretos que contrariam o exercício de nossos direitos tornam-se insuportáveis e irrelevantes. Pouco importa que o sujeito ganhe R$ 12, R$ 30, R$ 50 ou R$ 200 por dia. Trabalha muito e, portanto, merece uma televisão de 36 polegadas e alta definição. Ele tem direito (subjetivo) -seja qual for sua mesada (desprezível consideração objetiva).
Ouço sujeitos com dificuldades financeiras: "Se não tenho direito a comer num bom restaurante depois de um dia de trabalho, para que trabalhar?". "Mereço umas férias, afinal, tenho direito de ter uma vida." E o senhor Cartão é o único que compreende nosso problema.
Essas considerações seriam apenas divertidas, se não fosse por um detalhe: no meio da afirmação (um pouco maníaca) de seus direitos, o sujeito moderno é triste.
É uma constatação clínica: a depressão acompanha a caravana aparentemente alegre de nossos direitos e reivindicações. Por quê?
Ultimamente, coube-me ajudar um homem arrasado por uma depressão grave, desde que lhe fora recusado o cartão de crédito em uma loja de departamentos. Havia uma clara desproporção entre esse incidente menor, sem consequências concretas, e a prostração do sujeito. Descobriu-se que a recusa inesperada da loja trazia a lembrança de que sempre resta uma obrigação fundamental, uma dívida que pesa. Ou seja, nosso "direito de ter uma vida" (merecida) não consegue abolir nosso dever de morrer um dia.
Morrer deve ser mais simples, sem dúvida, para quem nasce e vive como um devedor. No momento final, devolve um par de botas que sempre considerou emprestadas. Quem se define pelos direitos, e não pelos deveres, vive uma vida mais engraçada, mais aventurosa e, provavelmente, mais justa. Mas desaprende a morrer. Não lida bem com o fato de que um dia nosso crédito acaba.
É verdade que as companhias de cartões de crédito não nos prepararam bem para essa eventualidade.
Naturalmente, sempre se encontram explicações singulares. Um sujeito quer, inconscientemente, se desfazer de uma fortuna acumulada de maneira duvidosa. Outro deseja sua própria bancarrota, numa verdadeira fantasia erótica. E por aí vai.
Mas, atrás dessa variedade, há um pano de fundo. Nós, modernos, somos obrigados a gastar além de nossas necessidades. Melhor dizendo, nossas necessidades vão além da subsistência física: devemos adquirir e consumir, sobretudo para sermos reconhecidos por nossos concidadãos. Somos de classe A, B, C, D ou E não por nascença ou por outras qualidades intrínsecas, mas segundo quanto possuímos e consumimos, ou seja, segundo quanto gastamos.
Não é de estranhar, portanto, que as estatísticas repitam que os americanos de classe média não poupam nada e se endividam demais. Isso vale para aqueles que se beneficiaram da recente prosperidade dos EUA. Imagine o drama dos outros: empobrecem e devem aumentar os gastos -uma vez que, em nossa cultura, é essa a forma básica da competição social.
No entanto há algo além disso na conduta do gastador. A maioria dos sujeitos que se queixam de sua compulsão (e contemplam estupefatos as contas no fim do mês) compartilha uma fórmula mágica. Na hora de proceder a uma nova compra, eles dizem: "Com tudo o que eu trabalho, tenho direito!". Eles ultrapassam assim suas hesitações. As considerações sobre o dinheiro disponível são silenciadas. O que importa -afirma o sujeito- é que "trabalho dez horas por dia" ou então "saio à luta a cada manhã", "estou na batalha o tempo inteiro", portanto "mereço, é meu direito". Em suma, nós nos sentimos autorizados a gastar não por nossa solvência, mas por nossos méritos.
O cartão de crédito parece ter sido inventado para facilitar essa estranha aritmética. Ele tem uma função dupla. Estabelece meu status, que depende não do que eu tenho, mas de quanto posso gastar (os cartões dão acesso às salas VIPs dos aeroportos). E, sobretudo, o cartão me compreende: sabe que tenho menos dinheiro do que mereço e corrige essa injustiça, autorizando-me a comprar e consumir.
Gastando, afirmamos o triunfo de nossos méritos e de nossos direitos contra a inércia da conta bancária e o peso de nossas dívidas.
Não é uma surpresa que essa conduta seja tão popular. A modernidade começa quando o sujeito não é mais definido por seus deveres, mas por seus direitos.
Enquanto modernos, nosso destino não é ditado pelo serviço que devemos ao dono da terra, pelo dízimo que devemos à paróquia ou pela obediência e pelo respeito que devemos aos anciões da tribo. Em vez disso, nós vivemos livres, com o direito de dispor de nossa pessoa, de circular pelo mundo, de falar sem censura etc. Os direitos se multiplicam. O sujeito tradicional era mais bem descrito como rede de obrigações. Nós somos feixes de direitos.
Com isso, os limites concretos que contrariam o exercício de nossos direitos tornam-se insuportáveis e irrelevantes. Pouco importa que o sujeito ganhe R$ 12, R$ 30, R$ 50 ou R$ 200 por dia. Trabalha muito e, portanto, merece uma televisão de 36 polegadas e alta definição. Ele tem direito (subjetivo) -seja qual for sua mesada (desprezível consideração objetiva).
Ouço sujeitos com dificuldades financeiras: "Se não tenho direito a comer num bom restaurante depois de um dia de trabalho, para que trabalhar?". "Mereço umas férias, afinal, tenho direito de ter uma vida." E o senhor Cartão é o único que compreende nosso problema.
Essas considerações seriam apenas divertidas, se não fosse por um detalhe: no meio da afirmação (um pouco maníaca) de seus direitos, o sujeito moderno é triste.
É uma constatação clínica: a depressão acompanha a caravana aparentemente alegre de nossos direitos e reivindicações. Por quê?
Ultimamente, coube-me ajudar um homem arrasado por uma depressão grave, desde que lhe fora recusado o cartão de crédito em uma loja de departamentos. Havia uma clara desproporção entre esse incidente menor, sem consequências concretas, e a prostração do sujeito. Descobriu-se que a recusa inesperada da loja trazia a lembrança de que sempre resta uma obrigação fundamental, uma dívida que pesa. Ou seja, nosso "direito de ter uma vida" (merecida) não consegue abolir nosso dever de morrer um dia.
Morrer deve ser mais simples, sem dúvida, para quem nasce e vive como um devedor. No momento final, devolve um par de botas que sempre considerou emprestadas. Quem se define pelos direitos, e não pelos deveres, vive uma vida mais engraçada, mais aventurosa e, provavelmente, mais justa. Mas desaprende a morrer. Não lida bem com o fato de que um dia nosso crédito acaba.
É verdade que as companhias de cartões de crédito não nos prepararam bem para essa eventualidade.
09 novembro 2000
De novo, divórcios e crianças
Quinze dias atrás, nesta coluna, comentei uma pesquisa que desmente algumas banalidades afirmadas apressadamente desde os anos 60.
Segundo essa pesquisa, não é verdade que o divórcio afete as crianças só de maneira passageira. E a felicidade ou o alívio dos pais que se separam não parece ser um grande consolo para os rebentos do divórcio.
A perspectiva de ver os pais mais felizes não faz necessariamente a felicidade das crianças. Claro, elas sofrem também quando o casamento dos pais se eterniza numa tragicomédia de brigas ou no silêncio do ódio e da indiferença. No entanto a coluna queria salientar a leviandade de quem pinta o divórcio em cor-de-rosa.
Recebi uma enxurrada de e-mails: comentários e depoimentos, todos corajosos e complexos. Concordando ou não comigo, os leitores entenderam que eu propunha que os pais freassem seus impulsos divorcistas e pensassem mais nas crianças. Reconheço-me nessa sugestão, mas a questão é, obviamente, complicada. Por isso volto ao assunto.
A família sobreviveu às maiores mudanças de nossa sociedade e cultura. Parece ser a única instituição imortal -constante peça central da reprodução social. De fato, ela sobreviveu porque mudou, adaptou-se aos tempos.
Deixou de ser uma pequena tribo e se tornou nuclear, composta quase exclusivamente pelos pais e suas crianças. Também ela não se organiza mais para administrar bens em conjunto e assegurar a continuidade da dinastia.
Hoje ela se funda nos sentimentos de seus membros: é nuclear e apaixonada. Aliás, é nuclear justamente por ser fundada em um princípio -a paixão dos cônjuges.
Às vezes, o núcleo deve incluir os avós ou um parente que sobrou, mas é com pesar e abrindo uma exceção. Isso, não por ingratidão ou porque a convivência com os patriarcas ou os primos seja necessariamente chata, mas porque a casa é um ninho de amor e, como tal, requer uma intimidade protegida.
Aceitar conviver com outros é ameaçador: sugere que a festa amorosa acabou, e a obrigação da consanguinidade passou a prevalecer sobre as necessidades do sentimento. Na família moderna, o amor também rege o laço entre os pais e as crianças.
Certo, achamos que os miúdos nos devem respeito, porque tal é sua obrigação. Mas, no fundo, queremos que eles obedeçam por amor. Assim como nós, de fato, os provemos de cuidados não por obrigação de pais (que nos pareceria um dever bem abstrato), mas porque os amamos.
A família assim construída corresponde exatamente ao que somos: indivíduos apaixonados por nossa liberdade e convencidos de que a autenticidade dos sentimentos é nosso melhor guia. O resultado é uma instituição bonita, intensa e condicional: se o amor acaba, acaba a festa.
Podemos lamentar essa volatilidade, mas, de fato, ninguém aguentaria mais casamentos que não fossem justificados pelos sentimentos e pela esperança de uma união feliz. Assim como dificilmente os pais aguentariam crianças que obedecessem só por obrigação tradicional.
Aceitemos, então, os casamentos eternos enquanto duram. Resposta à pergunta "como reconhecer o fracasso?": no mínimo, seria bom evitar que ele fosse um efeito da intransigência, que surge quando a aspiração a ser feliz se transforma numa exigência imperiosa e impossível. Tipo: "Shangri-Lá!, não aceito nada menos que isso e quero que seja agora ou então nada".
Como observou com toda razão uma leitora, Maria Renata Pinto Coelho, "é o casamento -e não o divórcio- que nos é vendido como um conto de fadas".
A expectativa excessiva produz intolerância. Com isso, negociar e procurar os compromissos sempre necessários numa vida de casal (e, em geral, numa família) parecem constituir uma traição de nossos sonhos de união perfeita. Nós nos divorciamos por esperar demais do casamento.
Ora, as modalidades da convivência ou da separação dos pais transmitem às crianças uma espécie de lição de vida implícita. Por exemplo, um casamento mantido no sofrimento e na humilhação pode transmitir às crianças uma lição (péssima) de resignação e covardia. Outro, também mantido ao custo de mil compromissos, pode transmitir uma humildade saudável, ensinando que é possível amar, mesmo quando o parceiro não corresponde plenamente às nossas fantasias.
Do mesmo jeito, um divórcio pode ser uma lição de honestidade, significando que os pais não quiseram arcar com uma mentira. Outro divórcio pode simplesmente sugerir às crianças que a felicidade deve ser perseguida a qualquer custo.
Esse é o caso pior. Pois como convencer um adolescente de que ele deve ir para a escola e desistir do enésimo "baseado", se, no seu entender, seus pais se separaram logo para não desistir de nenhum hipotético prazer?
A moral de buscar prazer e felicidade a qualquer custo é, notou em seu e-mail outra leitora, Rosangela Padovan, um "sinal dos tempos", ou seja, mais uma causa que um efeito dos divórcios. Concordo. Mas essa não é uma razão para que os pais validem essa máxima duvidosa nem na hora de se separarem.
Segundo essa pesquisa, não é verdade que o divórcio afete as crianças só de maneira passageira. E a felicidade ou o alívio dos pais que se separam não parece ser um grande consolo para os rebentos do divórcio.
A perspectiva de ver os pais mais felizes não faz necessariamente a felicidade das crianças. Claro, elas sofrem também quando o casamento dos pais se eterniza numa tragicomédia de brigas ou no silêncio do ódio e da indiferença. No entanto a coluna queria salientar a leviandade de quem pinta o divórcio em cor-de-rosa.
Recebi uma enxurrada de e-mails: comentários e depoimentos, todos corajosos e complexos. Concordando ou não comigo, os leitores entenderam que eu propunha que os pais freassem seus impulsos divorcistas e pensassem mais nas crianças. Reconheço-me nessa sugestão, mas a questão é, obviamente, complicada. Por isso volto ao assunto.
A família sobreviveu às maiores mudanças de nossa sociedade e cultura. Parece ser a única instituição imortal -constante peça central da reprodução social. De fato, ela sobreviveu porque mudou, adaptou-se aos tempos.
Deixou de ser uma pequena tribo e se tornou nuclear, composta quase exclusivamente pelos pais e suas crianças. Também ela não se organiza mais para administrar bens em conjunto e assegurar a continuidade da dinastia.
Hoje ela se funda nos sentimentos de seus membros: é nuclear e apaixonada. Aliás, é nuclear justamente por ser fundada em um princípio -a paixão dos cônjuges.
Às vezes, o núcleo deve incluir os avós ou um parente que sobrou, mas é com pesar e abrindo uma exceção. Isso, não por ingratidão ou porque a convivência com os patriarcas ou os primos seja necessariamente chata, mas porque a casa é um ninho de amor e, como tal, requer uma intimidade protegida.
Aceitar conviver com outros é ameaçador: sugere que a festa amorosa acabou, e a obrigação da consanguinidade passou a prevalecer sobre as necessidades do sentimento. Na família moderna, o amor também rege o laço entre os pais e as crianças.
Certo, achamos que os miúdos nos devem respeito, porque tal é sua obrigação. Mas, no fundo, queremos que eles obedeçam por amor. Assim como nós, de fato, os provemos de cuidados não por obrigação de pais (que nos pareceria um dever bem abstrato), mas porque os amamos.
A família assim construída corresponde exatamente ao que somos: indivíduos apaixonados por nossa liberdade e convencidos de que a autenticidade dos sentimentos é nosso melhor guia. O resultado é uma instituição bonita, intensa e condicional: se o amor acaba, acaba a festa.
Podemos lamentar essa volatilidade, mas, de fato, ninguém aguentaria mais casamentos que não fossem justificados pelos sentimentos e pela esperança de uma união feliz. Assim como dificilmente os pais aguentariam crianças que obedecessem só por obrigação tradicional.
Aceitemos, então, os casamentos eternos enquanto duram. Resposta à pergunta "como reconhecer o fracasso?": no mínimo, seria bom evitar que ele fosse um efeito da intransigência, que surge quando a aspiração a ser feliz se transforma numa exigência imperiosa e impossível. Tipo: "Shangri-Lá!, não aceito nada menos que isso e quero que seja agora ou então nada".
Como observou com toda razão uma leitora, Maria Renata Pinto Coelho, "é o casamento -e não o divórcio- que nos é vendido como um conto de fadas".
A expectativa excessiva produz intolerância. Com isso, negociar e procurar os compromissos sempre necessários numa vida de casal (e, em geral, numa família) parecem constituir uma traição de nossos sonhos de união perfeita. Nós nos divorciamos por esperar demais do casamento.
Ora, as modalidades da convivência ou da separação dos pais transmitem às crianças uma espécie de lição de vida implícita. Por exemplo, um casamento mantido no sofrimento e na humilhação pode transmitir às crianças uma lição (péssima) de resignação e covardia. Outro, também mantido ao custo de mil compromissos, pode transmitir uma humildade saudável, ensinando que é possível amar, mesmo quando o parceiro não corresponde plenamente às nossas fantasias.
Do mesmo jeito, um divórcio pode ser uma lição de honestidade, significando que os pais não quiseram arcar com uma mentira. Outro divórcio pode simplesmente sugerir às crianças que a felicidade deve ser perseguida a qualquer custo.
Esse é o caso pior. Pois como convencer um adolescente de que ele deve ir para a escola e desistir do enésimo "baseado", se, no seu entender, seus pais se separaram logo para não desistir de nenhum hipotético prazer?
A moral de buscar prazer e felicidade a qualquer custo é, notou em seu e-mail outra leitora, Rosangela Padovan, um "sinal dos tempos", ou seja, mais uma causa que um efeito dos divórcios. Concordo. Mas essa não é uma razão para que os pais validem essa máxima duvidosa nem na hora de se separarem.
02 novembro 2000
Efeitos colaterais
Atendi vários sujeitos que procuravam (legitimamente) uma análise ou uma terapia para sofrer menos e viver melhor, mas que se preocupavam com as mudanças que a terapia poderia acarretar. Temiam que a experiência os transformasse ao ponto de empobrecer suas vidas. Tratava-se, quase sempre, de artistas, convencidos de que havia uma relação entre seus sofrimentos neuróticos e sua capacidade de criar e se expressar.
Imaginemos um exemplo análogo aos casos que conheci. Um sujeito viveu uma infância particularmente nefasta: sei lá, o Camboja na época de Pol Pot, deportações, campos, mortes, lutos e fome. Hoje, nosso sujeito -refugiado em terras hospitaleiras- faz desses horrores a fonte privilegiada de sua inspiração artística. Críticos e público reconhecem que sua produção expressa, por exemplo, uma angústia que alcança proporções universais. Nela, todo mundo reconhece um pouco de seu próprio desamparo.
Mas nosso artista acorda a cada noite urrando, perseguido por pesadelos de caveiras e meninos armados de metralhadora. Ele vive numa ansiedade que impede qualquer procura amorosa. A solidão multiplica sua dor.
Imagine agora que esse sujeito peça a ajuda de um psicanalista ou de um psicoterapeuta. Ele quer dormir melhor e aprender a sorrir. No entanto ele suspeita que seu sofrimento seja a alma de sua arte -ou seja, daquilo que ele tem de melhor para oferecer ao mundo. Sua preocupação não é apenas um cálculo oportunista como: se me curo, perco a habilidade que paga minhas contas. Há mais: separar-se desse sofrimento lhe parece uma traição, pela qual ele desistiria de ser ele mesmo.
Essa preocupação não deve ser minimizada. Em princípio, uma psicoterapia ou uma análise não produzem (não conseguem produzir) mudanças que não sejam desejadas pelo sujeito. Aliás, geralmente isso é considerado como um limite da eficácia das psicoterapias. Reclama-se de que elas não conseguem extirpar nossas neuroses como se extirpam sisos cariados. No caso que estou levantando, ocorre o contrário: os sujeitos receiam que suas neuroses sejam extirpadas como dentes.
Essas reflexões nascem lendo um artigo notável de Kay Redfield Jamison, professora de psiquiatria da Johns Hopkins University. O texto faz parte da coletânea "States of Mind" (editada por R. Conlan), que é, de longe, o conjunto de textos mais honestos e sérios que já li sobre a relação entre cérebro e mente (portanto entre psicoterapia, psiquiatria biológica, neurologia etc.).
Jamison constata que existe uma correlação estatística entre a criatividade artística e a psicose maníaco-depressiva. Contrariamente ao que sugeria a ideologia dos anos 60 e 70, a doença criativa não é a esquizofrenia, mas a mania, em sua alternância com a depressão. Ora, a psicose maníaco-depressiva tem origem genética. Mais cedo, mais tarde, o gene que torna alguns sujeitos vulneráveis a essa doença será isolado. Portanto disporemos de uma cura preventiva.
Redfield Jamison pergunta: "Se há uma relação entre desordens do humor e gênio artístico, que riscos corremos tratando a desordem ou mesmo, pelos testes e pela terapia genética, eliminando-a completamente?" O risco seria produzir uma humanidade futura sem os equivalentes de Schumann, Tennyson, Hemingway, Lowell, Edgar Poe etc.
Segundo Jamison, o problema é que, com o sofrimento maníaco-depressivo, seria suprimida uma parte relevante (embora dolorosa) da experiência humana. "Esperamos -ela escreve- que (os artistas) contemplem aqueles aspectos da vida que nós preferimos ignorar; que eles olhem para a brevidade da existência, que vejam a corrupção do universo e saibam como a morte nos espreita e que, com isso, ainda consigam afirmar a força da vida perante a morte. É bem possível que sofrer de psicose maníaco-depressiva permita a algumas pessoas criativas produzir essas reconciliações".
Jamison (que sofre ela mesma da doença) não minimiza o sofrimento maníaco-depressivo. Tampouco recusa os tratamentos possíveis. Mas lembra que a doença psíquica é também uma vivência que estende os limites da experiência humana. Suprimir geneticamente uma dimensão dessa experiência é tanto mais problemático quando, como nesse caso, ela permite a existência de obras que valem para todos.
Fácil egoísmo de leitor ou espectador? Acho que não. Muitos criadores não gostariam de se ver livres de sua mania e de sua depressão se, em troca, perdessem o que dá sentido a suas vidas. O poeta Robert Lowell dizia de suas crises de mania que "a glória, a violência e a banalidade dessa experiência" é algo que vicia. Certamente ele não aceitaria uma cura cujos passos ele não pudesse controlar cuidadosamente.
P.S.: A coluna da semana passada, "Crianças do Divórcio", suscitou um número inusitado de e-mails. Agradeço aos leitores. É impossível responder a todos. Na próxima quinta, retomarei o tema, debatendo algumas das questões levantadas pelos comentários recebidos.
Imaginemos um exemplo análogo aos casos que conheci. Um sujeito viveu uma infância particularmente nefasta: sei lá, o Camboja na época de Pol Pot, deportações, campos, mortes, lutos e fome. Hoje, nosso sujeito -refugiado em terras hospitaleiras- faz desses horrores a fonte privilegiada de sua inspiração artística. Críticos e público reconhecem que sua produção expressa, por exemplo, uma angústia que alcança proporções universais. Nela, todo mundo reconhece um pouco de seu próprio desamparo.
Mas nosso artista acorda a cada noite urrando, perseguido por pesadelos de caveiras e meninos armados de metralhadora. Ele vive numa ansiedade que impede qualquer procura amorosa. A solidão multiplica sua dor.
Imagine agora que esse sujeito peça a ajuda de um psicanalista ou de um psicoterapeuta. Ele quer dormir melhor e aprender a sorrir. No entanto ele suspeita que seu sofrimento seja a alma de sua arte -ou seja, daquilo que ele tem de melhor para oferecer ao mundo. Sua preocupação não é apenas um cálculo oportunista como: se me curo, perco a habilidade que paga minhas contas. Há mais: separar-se desse sofrimento lhe parece uma traição, pela qual ele desistiria de ser ele mesmo.
Essa preocupação não deve ser minimizada. Em princípio, uma psicoterapia ou uma análise não produzem (não conseguem produzir) mudanças que não sejam desejadas pelo sujeito. Aliás, geralmente isso é considerado como um limite da eficácia das psicoterapias. Reclama-se de que elas não conseguem extirpar nossas neuroses como se extirpam sisos cariados. No caso que estou levantando, ocorre o contrário: os sujeitos receiam que suas neuroses sejam extirpadas como dentes.
Essas reflexões nascem lendo um artigo notável de Kay Redfield Jamison, professora de psiquiatria da Johns Hopkins University. O texto faz parte da coletânea "States of Mind" (editada por R. Conlan), que é, de longe, o conjunto de textos mais honestos e sérios que já li sobre a relação entre cérebro e mente (portanto entre psicoterapia, psiquiatria biológica, neurologia etc.).
Jamison constata que existe uma correlação estatística entre a criatividade artística e a psicose maníaco-depressiva. Contrariamente ao que sugeria a ideologia dos anos 60 e 70, a doença criativa não é a esquizofrenia, mas a mania, em sua alternância com a depressão. Ora, a psicose maníaco-depressiva tem origem genética. Mais cedo, mais tarde, o gene que torna alguns sujeitos vulneráveis a essa doença será isolado. Portanto disporemos de uma cura preventiva.
Redfield Jamison pergunta: "Se há uma relação entre desordens do humor e gênio artístico, que riscos corremos tratando a desordem ou mesmo, pelos testes e pela terapia genética, eliminando-a completamente?" O risco seria produzir uma humanidade futura sem os equivalentes de Schumann, Tennyson, Hemingway, Lowell, Edgar Poe etc.
Segundo Jamison, o problema é que, com o sofrimento maníaco-depressivo, seria suprimida uma parte relevante (embora dolorosa) da experiência humana. "Esperamos -ela escreve- que (os artistas) contemplem aqueles aspectos da vida que nós preferimos ignorar; que eles olhem para a brevidade da existência, que vejam a corrupção do universo e saibam como a morte nos espreita e que, com isso, ainda consigam afirmar a força da vida perante a morte. É bem possível que sofrer de psicose maníaco-depressiva permita a algumas pessoas criativas produzir essas reconciliações".
Jamison (que sofre ela mesma da doença) não minimiza o sofrimento maníaco-depressivo. Tampouco recusa os tratamentos possíveis. Mas lembra que a doença psíquica é também uma vivência que estende os limites da experiência humana. Suprimir geneticamente uma dimensão dessa experiência é tanto mais problemático quando, como nesse caso, ela permite a existência de obras que valem para todos.
Fácil egoísmo de leitor ou espectador? Acho que não. Muitos criadores não gostariam de se ver livres de sua mania e de sua depressão se, em troca, perdessem o que dá sentido a suas vidas. O poeta Robert Lowell dizia de suas crises de mania que "a glória, a violência e a banalidade dessa experiência" é algo que vicia. Certamente ele não aceitaria uma cura cujos passos ele não pudesse controlar cuidadosamente.
P.S.: A coluna da semana passada, "Crianças do Divórcio", suscitou um número inusitado de e-mails. Agradeço aos leitores. É impossível responder a todos. Na próxima quinta, retomarei o tema, debatendo algumas das questões levantadas pelos comentários recebidos.
Assinar:
Postagens (Atom)