Meu primeiro encontro com o mal de Alzheimer aconteceu 30 anos atrás, durante uma manhã de caça, nas planícies da Lombardia. Eu e L., um amigo do meu pai, avançávamos, separados por um campo de milho. Um faisão disparou do lado de meu companheiro de caça. Ninguém atirou. Até meu cachorro ficou perplexo. Logo, L. emergiu do milho, carregando sua espingarda de braços esticados, como se fosse um objeto esquisito. Murmurou: "Não sei onde está o gatilho". A arma era uma Browning "Gatilho de Ouro", fosca e escura como fuligem, com um espalhafatoso gatilho dourado.
Algo me apavorou: não o risco de levar algum tiro involuntário, mas o rosto de L., alterado numa expressão de desamparo e horror como nunca eu tinha visto até então.
Pouco tempo atrás, aconselhei uma família que queria lidar melhor com um avô vítima de Alzheimer. Tentei torná-los sensíveis a esta dimensão dos transtornos da memória: no esquecimento, não há nenhuma beatitude. Imagine que cada encontro com as coisas e as pessoas de seu dia-a-dia seja uma primeira vez, uma situação inédita. Acrescente uma dúvida: as pessoas, os objetos, as situações são novos para você, mas paira no ar a suspeita de que não seja bem assim -os outros, por exemplo, parecem esperar que você os reconheça.
É o avesso da infância, em que as novidades são domesticadas para construir um mundo que será familiar. Na demência, esse mundo é progressivamente desfeito. O horror final é a perda da sensação de nossa continuidade: normalmente, apesar da variedade de nossos atos e de nossas emoções, acreditamos que somos sempre a mesma pessoa. Ora, um sujeito, no meio da noite, parado diante da geladeira, pergunta-se por que veio até ali; ele não se reconhece mais, aquele que acordou não é o mesmo que chegou à cozinha. A depressão acompanha quase sempre a perda de memória: o sujeito faz o luto de si mesmo.
Em New Canaan, Connecticut, abriu as portas The Village, um novo centro de vida assistida para pessoas com transtornos de memória (Alzheimer e outras demências). O centro foi objeto de reportagens, fiquei curioso e quis visitá-lo. Lee Waskow, diretora do centro, e Pam Richardson, relações-públicas, possibilitaram gentilmente minha visita. The Village será um lugar de referência para quem deva planejar a vida assistida de pessoas que sofrem de demência e de perda de memória.
A instituição pratica e testa todo tipo de terapia ocupacional, mas sua prerrogativa principal é outra. A visita a The Village é uma aula de psicologia ambiental. O espaço foi concebido para ter virtudes terapêuticas ou, no mínimo, apaziguadoras. A iluminação é vertical e difusa, sem sombras -pois as sombras induzem alucinações em quem não conta com a memória para melhor perceber a realidade. Pela mesma razão, as cortinas são evitadas, sobretudo as de plástico, que produzem reflexos misteriosos. As camas são orientadas de maneira a oferecer uma visão direta do banheiro, pois quem acorda de noite pode ter esquecido a topografia do quarto. Os corredores são curvos e, quando possível, circulares, para permitir a deambulação (compulsiva para muitos dos que estão nessa condição) sem impor a repetição do vai-e-vem numa jaula
Enfim, o lugar principal de The Village é Main Street, uma rua (coberta) que reproduz o centro de uma cidadezinha americana dos anos 50. Quem viajou a Orlando conhece esse lugar: é um trecho da Main Street da Disneylândia.
Talvez esse espaço facilite lembranças do passado remoto e assim protele o processo degenerativo. Na verdade, nem todos os hóspedes de The Village viveram nesse tipo de cidadezinha de 40 ou 50 anos atrás. Pouco importa, pois, para quem perde a memória e, portanto, se perde, pode haver um benefício no fato de habitar um lugar que, no imaginário coletivo, é o protótipo do aconchego de casa.
Aqui, em The Village, ou na Disneylândia, a rua da pequena cidade americana dos anos 50 vale como símbolo de um lar possível e sonhado.
The Village responde ao horror da perda de memória e da demência com uma espécie de ato de fé que diz: deve existir uma morada à qual pertenceríamos de verdade.
No fim de tarde, quando os hóspedes estão em seus aposentos, a rua, vazia, é tocante: um monumento discreto à ilusão e à esperança de termos uma casa ou uma comunidade que sejam nossas.
Voltarei a tratar desse sonho de nossa cultura. Entretanto mais duas notas sobre o mal de Alzheimer:
1) Acaba de sair "Losing My Mind" (perdendo a cabeça), de Thomas De Baggio. Aos 57 anos, o autor recebeu o (raro) diagnóstico de Alzheimer precoce. Decidiu registrar por escrito sua "morte em câmera lenta" até a última entrada, quando "as palavras somem antes de chegar à página". O livro é um extraordinário elogio (fúnebre) da memória -ou seja, das lembranças sem as quais não somos nada.
2) Segundo a Alzheimer's Association americana, 10% da população acima de 65 anos sofre de mal de Alzheimer. Aos 85 anos, a percentagem é de 50%.
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