01 janeiro 2004

Adeus, ano velho

Quando era moleque, em Milão, nos anos 50 e ainda no começo dos anos 60, era perigoso passear pelas ruas perto da meia-noite do dia 31 de dezembro. É que, apesar de repetidas exortações e ameaças de polícia e bombeiros, permanecia em vigor um antigo costume: na hora da passagem do ano, jogava-se louça pela janela.

Não era de todo raro, portanto, que chovessem pratos e sopeiras. As pessoas guardavam, durante o ano, os restos de serviços incompletos, as terrinas rachadas e as vasilhas lascadas, para que se espatifassem festivamente na calçada na noite de são Silvestre.

Era um jeito de declarar que a gente fazia tábula rasa, recomeçava do zero. Nada de muito original nisso; em quase todas as culturas, existiram e existem festividades da passagem de ano que celebram a esperança de um início radical.

Originalmente, aliás, as festas romanas das Saturnalia e Bacanalia (antepassadas do Carnaval) aconteciam nesta época: eram festas de inversão (ou seja, o mestre se fazia de escravo e o escravo podia se fazer de mestre) e manifestavam uma espécie de volta à confusão inicial, a partir da qual tudo seria de novo possível. Em 336 de nossa era, a cristandade decidiu colocar a celebração do Natal na mesma época do ano, para que a chegada do Messias valesse como o símbolo definitivo da renovação da vida.

Mas a celebração moderna, a nossa, tem um sentido, ou melhor, um alcance um pouco diferente do da antiga.

O melhor guia, nessa matéria, é a pequena obra-prima de Mircea Eliade, "O Mito do Eterno Retorno", livro escrito logo depois da Segunda Guerra Mundial (versão recente em português pelas Edições 70), uma leitura perfeita para o começo do ano.

Eliade opõe a modernidade às sociedades tradicionais. Nestas, a experiência do tempo é feita de ciclos que se repetem, e os acontecimentos têm sentido porque aparecem como variantes de mitos conhecidos por todos. A guerra, a doença, a morte, as separações e as perdas são tão explicáveis quanto as estações do ano. O homem tradicional carece de futuro, não se define por seus projetos, mas, em compensação, pode, de vez em quando, jogar alegremente seu passado pela janela, pois não é o passado, mas a repetição que dá sentido à sua vida.

Nós, modernos, ao contrário, acreditamos na mudança, na novidade, na história. Vivemos o tempo como teatro de uma liberdade potencialmente infinita. Não acreditamos em ciclos inelutáveis, mas num progresso que deveríamos aos nossos próprios atos.

Essa suposta liberdade encontra (ao menos) dois limites.

Primeiro, obviamente, existem os outros. Escreve Eliade: "A liberdade de fazer a história, privilégio conclamado do homem moderno, é um engano para quase toda a espécie humana. Os homens, de fato, são livres para escolher entre duas posições: opor-se à história que é feita por uma pequena minoria (e, nesse caso, exercer a liberdade de optar entre o suicídio e a deportação) ou então refugiar-se numa existência subuma na ou na fuga". Embora os horrores da Segunda Guerra Mundial se projetem sobre as páginas de Eliade, há de se convir que seu texto não está muito longe de nossa realidade.

Mas o que mais nos interessa aqui é o outro problema da pretensa liberdade moderna. A história não é apenas o resultado de nossas ações; em grande parte, ela "se faz sozinha, como resultado das sementes lançadas pelos atos do passado".

O passado assombra nossa liberdade; é sempre ele que coloca limites aos sonhos futuros. O tempo, para nós, não é uma repetição que recomeça periodicamente como um ciclo, mas uma linha, um percurso. Sua continuidade acarreta uma consequência: avançamos carregando o peso do que já foi. Viver é construir um passado que decide nossos futuros possíveis.

Preferiríamos esquecer. E não é só no fim de ano que acreditamos poder jogar a louça velha pela janela. O adolescente imagina que, saindo de casa, começará uma vida nova, sem as imposições de sua antiga existência de filho ou de filha. O adulto imagina que, separando-se do parceiro ou da parceira, criará novas relações, diferentes, prazerosas e respeitosas do outro. Muitos imaginam que, ao se mudarem para uma cidade distante ou para outro país onde ninguém os conheça, se reinventarão completamente, aproveitando toda a sua sabedoria acumulada. O lema é : "Desta vez, será diferente".

Horácio, que talvez seja o mais moderno dos poetas romanos, já dizia que "os que atravessam o mar mudam de céu, não de alma". Seu verso vale para qualquer mudança.

A fé ilusória nos novos começos, atributo da modernidade, alimentou (e ainda alimenta) cada tipo de sonho, desde as utopias sociais do século 19 até o mito do "self-made man".

Na aurora do século 20, a psicanálise, estraga-prazeres, veio lembrar que viajamos sempre com mais malas do que é preciso e que não adianta jogá-las pela janela. Para diminuir o excesso de peso, melhor abri-las, repertoriar o conteúdo e decidir o que fazer com ele.

Na passagem de ano, em suma, a dificuldade está em lidar com os restos do ano que acaba (e dos que o antecederam). Por desgastados e puídos que sejam, não são tirados de nossas costas pela simples defenestração.

A todos os que querem mudança, desejo um "adeus, ano velho" feliz e eficaz.

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