15 janeiro 2004

Quedas livres



A experiência sempre foi um valor. "Civilizados" ou "primitivos", antigos ou modernos, parece-nos óbvio prestigiar a quilometragem rodada e escutar quem já percorreu os caminhos pelos quais enveredamos.

No entanto, nos últimos 300 anos, em nossa cultura, a experiência adquiriu uma importância inédita. É fácil entender por quê: a herança do passado não nos define mais. Para dizer quem eu sou, não contarei a ilustre história do burgo em que nasci nem as façanhas de meus pais. Ao contrário, espera-se que eu conte como fui embora do berço e o que aconteceu depois. Ou seja, é à força de experiências que devo me construir.

A forma inicial e fundamental do romance (que é uma das grandes invenções modernas) é, justamente, o "romance de formação", a história de como um protagonista cresce de experiência em experiência. Os primeiros exemplos (maravilhosos) talvez sejam "Tom Jones", de Fielding (1749), e "Tristram Shandy", de Sterne (1759-67). O protótipo ainda é o "Wilhelm Meister" de Goethe (1795). Mas a forma atravessa o século 19 e chega até o gosto atual pelas autobiografias, que são uma versão hodierna do romance de formação. Um dia desses, escreverei uma, sério.

A idéia de que somos definidos por nossas experiências é uma garantia de liberdade. Graças a ela, nos tornamos inventores de nós mesmos: nosso valor depende do que ousamos fazer. Mas a liberdade tem alguns custos.

Primeiro, se a experiência é o critério da excelência do sujeito, a relação entre gerações se torna complicada: não é mais suficiente ser idoso para aparecer como um ancião sábio. É legítimo perguntar, antes de obedecer: "Papai, o que você fez durante a guerra?".

Um segundo problema é que a experiência é um valor abstrato: qualquer aventura pode valorizar o sujeito. Por exemplo, na aurora da modernidade, uma vez estabelecido que todos éramos definidos por nossos feitos, os românticos saíram pelo mundo afora dando um jeito para morrer quer fosse de tuberculose, o sublime mal do século (como Keats em Roma), quer fosse afogados, recusando socorro e desafiando os elementos (como Shelley na baía de Lérici), quer fosse numa guerra com a qual o sujeito não tinha nada a ver (como Byron lutando contra os turcos em Missolonghi, embora, azar dele, tenha morrido de febre e não de espada).

Outro exemplo. Quando era adolescente, seduzia-me qualquer experiência que fosse diferente da dos adultos ao redor de mim. "Fulano passou um ano na prisão", Fulano deve ser do caramba. "Sicrano injeta heroína", Sicrano é o máximo. Uma gíria confirma essa atitude: "ser da pesada" significa, ao mesmo tempo, topar qualquer parada e, como assinala o "Aurélio", impor respeito.
A modernidade nos deixa, em suma, numa grande perplexidade ética. Se a experiência, por sua variedade e intensidade, forma o sujeito e lhe dá valor, quem dirá qual é a experiência moralmente boa? Os anciões que se dizem sábios só porque são idosos? Claro que não. As normas estabelecidas? Ainda menos. Sobra idealizar, com a ajuda de Hollywood, os Fulanos e Sicranos mencionados acima.

Acontece, aliás, com a experiência, a mesma coisa que aconteceu com o livre mercado de homens e mercadorias. Ambos soltaram as amarras das origens e do passado, mas criaram outras. A idéia de valorizar a experiência devia ser um salva-todos: cada um sairia de seu esconderijo e iria pelo mundo, senhor de si. Mas a experiência produziu novas hierarquias: o sábio antigo foi substituído pelo sabido. "Você não tem densidade interior porque não esteve meses no meio do mar como um Amyr Klink." Por que não "Você não sabe da vida porque nunca matou ninguém"?
Ora, acabo de ler, de um fôlego, "Queda Livre", de Otavio Frias Filho (Companhia das Letras). O livro é composto de sete ensaios ou reportagens "de risco", nos quais o autor relata e comenta uma série de experiências às quais ele se submeteu.

Passo sobre o grande prazer da leitura e o interesse da informação transmitida. O que me importa aqui é que as reportagens-ensaios de "Queda Livre" propõem uma solução exemplar para a nossa perplexidade moral diante da valorização abstrata da experiência. Eis como.

No relato de Otavio, cada vivência é narrada a partir de uma falha do protagonista: o medo do avião e das alturas para o pára-quedista; a inquietação com a malária e com os efeitos do tóxico para quem experimenta o Santo Daime na sede do culto, na Amazônia; a fobia dos espaços fechados para o submarinista; a ânsia e o receio do ridículo para o ator improvisado; o silêncio divino e as bolhas no pé para o peregrino de Santiago de Compostela; o pudor e a dor da rejeição para o amante ocasional no universo do suingue; enfim, a tentação do suicídio para o samaritano que, durante um ano, no Centro de Valorização da Vida, recebe os apelos telefônicos dos desesperados.

O leitor, mesmo que não compartilhe as vivências narradas, se reconhece sempre no medo, no pudor e na ironia do protagonista que sabe rir de si mesmo. As experiências adquirem, assim, um valor propriamente moral não por serem "de risco", mas porque seu relato, longe de dividir o mundo entre adeptos e ignaros, revela sobretudo a humanidade do protagonista. E, nessa humanidade, damos de cara com a nossa. Pois nem todos pulamos de pára-quedas, mas todos vamos pela vida, de experiência em experiência, com o coração na mão, em queda livre.

É a mesma atitude que faz a extraordinária qualidade (literária e moral) de "Tom Jones" e "Tristram Shandy": a "formação" do protagonista vale como auxílio para a nossa porque, lendo, reconhecemo-nos humanos nas mesmas tragicômicas falhas.

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