23 janeiro 2004

São Paulo 450 anos



Durante as Olimpíadas de 2000, eu estava em Sydney, Austrália.

Na noite do encerramento dos jogos, junto com alguns outros milhares de humanos, eu contribuía para abarrotar a península onde surge o esplêndido edifício da Ópera de Sydney. Todos contemplávamos uma festa de fogos de artifício.

Bem ao meu lado, um jovem casal se abraçava. No auge dos fogos, o rapaz apertou forte a moça e lhe disse, feliz: "And we live here", "E nós moramos aqui".

Gostaria que nestes dias, em São Paulo, houvesse ao menos um casal para viver um momento parecido, para sentir-se feliz de viver aqui. Talvez aconteça amanhã, na inauguração das fontes do parque Ibirapuera. Ou no sábado, quando Caetano cantará "Sampa" na esquina da Ipiranga com a São João. Ou, então, na avenida 23 de maio, domingo, durante a Parada São Paulo 450 anos.

Claro, Sydney compete na divisão do Rio de Janeiro, de Veneza, Roma, Paris, Londres, Nova York e por aí vai: é uma cidade excepcionalmente bonita. E, sobretudo, a frase do moço australiano devia expressar também a satisfação de viver numa cidade amiga, de andar por ruas animadas noite adentro, mas nunca ameaçadoras, de sentir-se amparado por uma comunidade que protege e assiste seus membros nas horas difíceis.

Não vamos perder ânimo. Afinal, não se sabe se primeiro vem o ovo ou a galinha. É certo que o orgulho e a alegria de viver numa cidade são o efeito dos direitos concretos que ela garante a seus cidadãos. Mas vale também o inverso: esse orgulho e essa alegria talvez sejam requisitos para que a cidade se transforme a ponto de merecer esses sentimentos.

Pensando, então, num casal paulistano que pudesse viver o mesmo momento encantado do casal de Sydney, sonhei com algumas festividades que não estão no programa.

1) Poderíamos ter proposto um concurso de poesia para poemas de, no máximo, três linhas (espécie de haicais japoneses), inspirados por São Paulo. Aliás, dois concursos: um para poetas publicados e outro aberto a quem quisesse concorrer. Uma comissão escolheria, sei lá, cem poemas. As agências de publicidade e seus clientes teriam sido contatados e, quem sabe, aceitassem que os outdoors da cidade, grandes e pequenos, fossem substituídos progressivamente por um fundo branco com, em destaque, o texto de um poema, sem o nome do autor. Para que ninguém ficasse triste, apareceria, em letras menores, o anunciante: cortesia do Banco Fulano. No meu devaneio, durante um mês no mínimo, TODOS os outdoors da cidade seriam poemas.

Haveria versos incompreensíveis, outros que provocariam o riso. Os analfabetos pediriam que alguém lhes dissesse o que está escrito. Mas, mesmo zombando, durante um mês, os paulistanos seriam todos leitores de poesia.

2) Não faltarão, nesses dias e durante o ano, exposições e concertos comemorativos. Mas teria gostado que os artistas e músicos paulistas tivessem sido comissionados para que pintassem, concebessem ou compusessem pensando na cidade. À força de respeitar o subjetivismo de nossa época e o mito da inspiração, esquecemos que, no passado, alguns dos melhores momentos da produção artística (a começar pela Renascença) foram efeito de encomendas. Nas praças da cidade, aconteceriam concertos públicos das obras (de jazz, música clássica, samba e MPB) compostas nesta ocasião. Quanto às obras de artes plásticas comissionadas, seriam exibidas numa mostra permanente, o ano todo, na Oca e nas salas da Bienal do Ibirapuera. Como já aconteceu, as escolas visitariam de manhã, e o acesso seria gratuito nos domingos.

3) Dois anos atrás, pois leva tempo, poderíamos ter pedido a Zé Celso e ao Teatro Oficina que, com a ajuda dos melhores historiadores paulistas, escrevessem e montassem uma peça sobre a história de São Paulo. Não uma peça para os espectadores que frequentam os teatros, mas um espetáculo em praça pública, no vale do Anhangabaú, na praça da Sé, embaixo do Minhocão com os espectadores em cima etc. A peça seria produzida num lugar diferente a cada semana, animando a cidade inteira com sua própria história, por truculenta que tenha sido.

As outras companhias paulistas de teatro, também comissionadas, encenariam peças sobre a vida em São Paulo, pelas ruas da cidade. O mesmo poderia acontecer com o balé e a dança moderna.

4) Falando em dança, tenho mais um sonho. Houve o baile do Réveillon na Paulista, que foi ótimo, e haverá outros. O problema dessas reuniões é que elas não juntam as diferentes camadas de nossa sociedade. Com o pretexto (justificado) da insegurança, a classe média não se aventura.

Ora, em Paris, eu gostava de frequentar os bailes do 14 de Julho, a festa nacional francesa. Havia bailes noite adentro nas casernas dos bombeiros e da gendarmaria. Essas veneráveis instituições ganhavam um dinheiro vendendo refrigerantes e cerveja, e todas as classes dançavam juntas numa segurança absoluta. Os bombeiros e policiais (homens e mulheres) que não estivessem de plantão dançavam com os cidadãos. Não seria mal se começássemos a perceber as forças da ordem não como inimigos ou como jagunços que nos protegem, mas como pessoas que nem a gente, a quem é delegada a função essencial de tornar nossas ruas acolhedoras e nossa vida mais pacífica. Adoraria valsar com uma PM em uniforme de gala na caserna da Rota da avenida Tiradentes. Depois disso, vindo do aeroporto, o edifício pararia de me parecer sinistro. E nós moraríamos aqui.

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