29 janeiro 2004

Filme do cão

No inverno de 1994, na Universidade de Nova York, um painel de intelectuais franceses debatia os "malefícios" da internet. Alain Finkielkraut (que, apesar do que segue, é autor de livros respeitáveis) descreveu a net como um pesadelo totalitário. Um estudante lhe fez observar o óbvio: a net é tudo salvo uma estrutura totalitária centralizada. Finkielkraut respondeu que, de fato, ele desconhecia o funcionamento da net e nunca tinha estado on-line na vida. Levantando com brio sua caneta tinteiro, acrescentou que nem sabia se servir de um computador.

Uma minoria achou graça. A maioria foi embora. Meu vizinho de cadeira, ao levantar-se, disse a um amigo: "Não vou passar a noite escutando este babaca".

Concordo: quem fala do que não conhece com a intenção de ser levado a sério é um babaca. E quem fica para escutá-lo é duplamente babaca.

Ora, o diretor e autor do script de "Dogville", Lars von Trier, dinamarquês, declarou que seu filme é uma crítica dos Estados Unidos, onde, acrescentou orgulhosamente, ele nunca esteve. Numa entrevista ao "Guardian" de 15/ 5/2003, ele explicou que não precisa conhecer o país para criticá-lo e repreendê-lo, pois, afirmou expressa e literalmente, os EUA já são uma parte muito relevante de sua consciência, e isso pode bastar.

Lendo a entrevista, embora essa última afirmação me deixasse perplexo, pensei apenas que Von Trier era mais um babaca. Quando o filme estreasse, eu pouparia meus R$ 14.

Mas, recentemente, lembrei-me do seguinte: no inverno de 2002, um amigo, que vivia em Williamsburg (Brooklyn, Nova York), hospedou Lars von Trier em seu apartamento. Além disso, o mesmo amigo jura de pés juntos que o diretor dinamarquês passou meses em Los Angeles entre 1996 e 1997.

De repente, o filme me interessou: queria entender por que Von Trier sentiria a necessidade de nos contar abobrinhas.

Claro, há um oportunismo de marqueteiro: vocês, que, pelo mundo afora, não conhecem os EUA e estão indignados com a atual política norte-americana, bebam à fonte de meus preconceitos. Numa época de vivo antiamericanismo, a atitude garante ingressos.

Mas deve haver outras razões, além da bilheteria, para que Von Trier proponha "Dogville" como uma crítica aos EUA, e, ao mesmo tempo, ao custo de uma mentira (por pequena que seja), insista em declarar que sua crítica é o preconceito de quem não conhece.

A história do filme é a seguinte: nos anos 20, chega a um minúsculo vilarejo norte-americano uma moça perseguida por gângsteres. O vilarejo aceita protegê-la, mas, aos poucos, passa a escravizá-la perversamente.

O filme é pretensioso, o cenário e os diálogos gritando: "Sou o novo Godard, olhem como sou brilhante". Apesar dos esforços admiráveis dos atores, a complexidade das personagens é escassa.

Se o filme fosse uma meditação geral sobre a perversidade humana, ele seria só cínico. E o cinismo é o disfarce mais barato para simular inteligência: "revelar" que os homens são todos ruins é (quase sempre) apenas uma maneira de proclamar que a gente não é burro.
Se o filme quisesse apresentar os efeitos do ódio pelo diferente numa pequena comunidade isolada (e americana), seria inevitável pensar em "Deliverance" ("Amargo Pesadelo"), de John Boorman, 1972, que é incomparavelmente melhor.

De qualquer forma, a história evoca não os EUA dos anos 20, mas a época sombria em que, pela Europa invadida e ocupada, muitos judeus perseguidos pagaram caro a "generosidade" de quem os escondia.

O fim do filme (que não revelarei) é, aliás, estranhamente filoamericano e nos deixa com uma mensagem contraditória: os habitantes de Dogville (que seriam americanos) são horríveis, mas ainda bem que, de vez quando, os americanos chegam para acabar com Dogville. Esse paradoxo se explica se tentamos entender a origem do preconceito de Von Trier.

A Dinamarca foi ocupada pelos nazistas em 1940, em poucas horas; rei e governo se resignaram. A nação resgatou sua honra a partir de 1942, quando começou uma resistência heróica que, por exemplo, em 1943, garantiu a fuga de 7.000 judeus para a Suécia livre. Mas, antes disso, há uma página de história menos gloriosa. Cito uma fonte pouco suspeita, a história da Dinamarca contada pelo equivalente dinamarquês do Itamaraty: "Na ocasião da ofensiva alemã contra a União Soviética em 22 de junho de 1941, os alemães exigiram que os dirigentes comunistas dinamarqueses fossem internados, o que foi feito com um zelo que ultrapassava largamente as exigências alemãs".

Acontece que os pais de Von Trier eram comunistas militantes. Não sei como eles e seus camaradas viveram essa época. Mas duvido que tenha sido um momento feliz. Será que houve comunidades dinamarquesas que abusaram de seus comunistas escondidos como o vilarejo de Dogville abusa de Nicole Kidman, se não pior?

O mecanismo é banal: pelo preconceito, atribuo ao outro alguns traços meus ou de minha história que prefiro ignorar. Apontar a podridão alhures é mais simples que lidar com minhas tripas malcheirosas. E, no reino da Dinamarca, aconteceu algo podre que talvez Von Trier prefira silenciar.

Por isto, o filme, apesar de medíocre e desonesto, é interessante: porque é um exemplo esclarecedor de como nasce e funciona um preconceito.

O título, "Dogville", significa cidade do cão, e, de fato, há um cachorro na história. Mas, considerando que o filme fala das dificuldades de Von Trier com sua própria história e que Dogma é o nome do grupo que o diretor fundou, "Dogmaville" teria sido um título mais apropriado.

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