11 agosto 2005

Bartleby


"Bartleby, o Escrivão", de Herman Melville (o autor de "Moby Dick"), está se tornando um pequeno best-seller. O fato é que a editora, CosacNaify, criou um maravilhoso livro-objeto, que reproduz materialmente o espírito do próprio Bartleby: fechado e costurado, resistente.

Bartleby é um escrivão, aparentemente zeloso, que um belo dia começa a recusar, com monótona e tranqüila determinação, as tarefas que lhe são propostas. "Acho melhor não": essa frase é tudo o que ele diz. Seu empregador (o narrador da novela) não consegue acesso algum à história de vida de Bartleby e às razões pelas quais ele não aceita ordens e serviços. Bartleby não vai embora, não se irrita nem esbraveja, apenas se recusa. Exasperador, não é?

Bartleby já foi explicado de mil maneiras: um Cristo moderno, um proletário revoltado, um precursor das personagens das peças de Samuel Beckett. Como ele não fala nada (segue silencioso, achando melhor não), permito-me sugerir minhas duas maneiras de ler a novela.
1) Não sou um perito em Melville. Li uma boa biografia ("Melville, a Biography", de Laurie Robertson-Lorent) e sempre leio prefácios e posfácios. Basta-me para saber o que segue.

Melville escreveu uma boa parte de suas ficções curtas entre 1853 e 1856. "Moby Dick", o romance do qual ele esperava fama e fundos, tinha sido um fracasso de vendas, em 1851. Em 1849 nascera Malcolm, seu primeiro filho, que Melville recebeu atormentado pelo medo de não conseguir sustentar sua família. Malcolm devia ter quatro ou cinco anos quando Melville escreveu "Bartleby".

Ora, não consigo me desgrudar desta idéia: o escrivão, que não sai do escritório, não quer falar dele mesmo e se recusa a cumprir tarefas e pedidos, é curiosamente parecido com uma criança que resiste obstinadamente aos pais, não diz nada (porque não pode ou não quer) sobre as razões de sua oposição e, claro, não tem como sair de casa.

Muitos pais reconhecerão, no "acho melhor não" de Bartleby, o antagonismo surdo de filhos que, apesar de mil perguntas dos adultos, mantêm-se obstinadamente hostis, silenciosos e enigmáticos. Esse negativismo fechado, sem conversa, cresce à medida que ele enfurece os adultos. Se não for encontrado um jeito de trocar palavras e afetos, o prognóstico é delicado.

Malcolm, o primeiro filho de Melville, suicidou-se com um tiro na cabeça, aos 18 anos.
2) Psiquiatras, psicanalistas e críticos se debruçaram sobre a personalidade de Bartleby, que já foi diagnosticado como esquizofrênico, anoréxico etc. Mas há um transtorno da personalidade pelo qual a leitura da novela de Melville vale mais que uma monografia patológica. O "DSM IV - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais", da American Psychiatric Association, descreve o "transtorno de personalidade agressiva-passiva" como um padrão de atitudes negativas e de resistência passiva diante dos pedidos de produzir um desempenho adequado. O sujeito se recusa, passivamente, a cumprir tanto sua rotina social quanto suas tarefas ocupacionais. A monografia mais recente sobre esse quadro é "Passive-Aggression: a Guide for the Therapist, the Patient and the Victim" (agressão-passiva: um guia para o terapeuta, o paciente e a vítima), de Martin Kantor.

A personalidade agressiva-passiva é tipicamente masculina. Nas brigas de casais, o homem agressivo-passivo é a parede contra a qual jogam a louça de casa mulheres enlouquecidas pela fria compostura de seus companheiros.

Os psiquiatras podem discordar quanto às causas do transtorno, que se encontram na vida pregressa do sujeito, mas todos parecem concordar quanto ao seguinte: o agressivo-passivo é cheio de ódio e ressentimento. Talvez ele se limite a resistir passivamente para não soltar uma agressão que, sem isso, seria explosiva e mortífera além da conta.

Pois bem, o que me impressiona, ao ler e reler "Bartleby", é que essa novela de menos de 40 páginas, em que não aprendemos nada sobre a vida do escrivão ou sobre seus pensamentos, é muito, mas muito mais rica em sabedoria (inclusive clínica) do que o livro de Kantor (que, aliás, é um bom livro).

Em outras palavras, o que me impressiona é sobretudo o milagre da literatura, sua inexplicável capacidade de nos dar acesso à experiência humana. Misteriosamente, os silêncios de Melville me aproximam de Bartleby mais que as 232 páginas de Kantor.



No fim da coluna da semana passada, mencionei uma idéia segundo a qual a mediocridade das "elites" seria o efeito inevitável de uma mobilidade social acelerada. Nesse caso, as "elites" econômicas ou políticas se constituiriam sem ter a chance de crescer culturalmente. Alguns leitores me responderam que nossas elites já são carregadas de MBAs e coisas que os valham. Há um mal-entendido: a cultura não são as coisas que sabemos, a cultura é nossa capacidade de compreender (não só entender) a estranha diversidade de nossa espécie. É uma coisa que se encontra nas salas de cinema, nos teatros e ao abrir, sempre que der, as páginas de uma obra de ficção. Bartleby, por exemplo.

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