04 agosto 2005

O momento atual e a mediocridade das "elites"

Na inauguração da nova Daslu, muitos comentaristas salientaram o contraste entre a loja de luxo e a favela que está nas suas costas: era uma imagem da contradição do país, entre a riqueza que esbanja e a miséria que dói.

Uma reportagem registrou o comentário de uma funcionária da Daslu, que mora na favela vizinha: ela disse que esperava um dia entrar na loja pela porta da frente, como cliente.

Pensei assim: se a desigualdade (por monstruosa que seja) não paralisa, se ela não mata a esperança, talvez o país esteja se tornando "moderno". Quem sabe, ao menos no universo urbano de São Paulo, a desigualdade não funcione mais como uma marca que decide para sempre quem pertence à casta dos donos e quem à dos escravos.

Duas semanas atrás, a Polícia Federal invadiu a Daslu, denunciando uma sonegação tosca pelo tamanho e pela grosseria. Segundo a PF, a coisa funcionava assim: um objeto de grife que valia R$ 1.000 era comprado no exterior por uma exportadora laranja, que vendia o objeto para a loja, faturando-o, digamos, por R$ 10. Conseqüência: a loja pagava o imposto de importação de uma bugiganga. Obrigatoriamente, uma parte consistente dos lucros do varejo deveria ser sonegada, para pagar (por baixo do pano, no exterior) o valor original do objeto.

Com isso, um detalhe crucial foi acrescentado à vinheta do palacete ao lado da favela urbana: o pretenso "templo da elegância" seria a máscara que disfarça uma careta dinheirista.

Tenho simpatia pela "futilidade" das aparências. Sei, por exemplo, que, desde o fim do século 18, os dândis (que fizeram da elegância um culto) tiveram uma função decisiva na revolução social moderna. A idéia era a seguinte: se o critério da elegância substituísse o da nobreza de berço, qualquer um poderia ser elite; bastaria que fosse elegante. Disraeli (que era um dândi) tornou-se primeiro-ministro da rainha Vitória porque sua elegância contou mais que sua origem judaica (que, em princípio, impedia que ele tivesse acesso a tamanho cargo).

Mas sei também que, para os dândis, a elegância era "fineness": uma fineza rica de implicações morais. Por exemplo, o cuidado frívolo com as aparências -do nó da gravata ao corte das calças- era também uma revolta do bom gosto contra as feiúras do capitalismo incipiente: a fábrica, o gueto operário, a monotonia do trabalho e, enfim, a obscenidade da sede de lucros. Sem essas implicações morais, as roupas elegantes seriam apenas babadouros para comedores vorazes.

Em "O Retrato de Dorian Gray", Oscar Wilde (outro dândi) conta a história de um jovem aristocrata que continua bonito e elegante, inalterável graças a algum botox mágico, enquanto sua vida devassa deforma grotescamente seu retrato, escondido no sótão. Pois bem, se as denúncias em curso se confirmarem, a Daslu será o Dorian Gray das "elites" econômicas, pretensamente "elegantes".

Agora, consideremos outra "elite", a política. Está mais que confirmado: a vida política nacional é, em grande parte, financiada por "caixas dois", cuja existência supõe uma série de assaltos à coisa pública. 1) Contribui-se às campanhas com dinheiro frio (sonegado); 2) As contribuições ficam ocultas, criando alianças e dívidas escusas, que, portanto, 3) Podem ser cobradas às escondidas, depois das eleições, sob forma de favores da administração pública. 4) Com isso, a hipertrofia da máquina do Estado e sua corrupção se tornam necessárias para recompensar as doações de campanha. Nesse círculo, a "elite" econômica ganha dinheiro, a "elite" política ganha poder, e o povo fica a ver navios.

Nos escândalos do passado, aconteceu que a "elite" política, invejosa da "elite" econômica, prelevasse um dízimo para uso pessoal. Parece que a "elite" política de hoje foi seduzida por outro tipo de cobiça: a do poder pelo poder. A necessidade de retribuir as "dívidas" do "caixa dois" é um bom pretexto para esquecer-se do único fim que confere legitimidade a qualquer poder: o de governar no interesse de todos.

Neste momento, meu estado de espírito (e o da maioria dos brasileiros, provavelmente) é uma espécie de decepção, mais triste que raivosa. É sempre doloroso e desanimador descobrir que as figuras que pairam acima da gente não têm legitimidade.

De fato, uma "elite" econômica que pratica uma "elegância" sem implicações morais não tem legitimidade. Assim como não há votos que possam conferir legitimidade a uma "elite" política que governa para pagar sua própria eleição. Ambas parecem ser "elites" com aspas, roupagens vazias, ternos ou tailleurs sem espessura.

Uma nota relativamente otimista. Um amigo me sugeriu a idéia seguinte: a mediocridade das "elites" seria o efeito inevitável de uma mobilidade social acelerada, pois, nesse caso, as "elites" econômicas ou políticas se constituem sem ter a chance de crescer culturalmente. Só lhes sobra o tempo para comprar um acessório de grife ou para encomendar o paletó num bom alfaiate; imaginam que seja o suficiente para convencer o povo de que elas são mesmo "elites". Com aspas.

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