25 agosto 2005

"Hotel Ruanda" e o espírito de porco da razão

O que você estava fazendo entre abril e junho de 1994? Para mim, foi uma época sem grandes eventos: atendia a meus pacientes, cuidava de filhos, família e tal. Pois bem, enquanto tocávamos nossa vida, em Ruanda (um pequeno país que até então mal sabíamos situar no mapa da África) 1 milhão de homens, mulheres e crianças foram assassinados.

Uma média de 10 mil por dia, a golpes de facão. Graças à estréia do filme (imperdível) "Hotel Ruanda", de Terry George, muito está sendo escrito, nestas semanas, sobre a história do massacre e suas "causas" absurdas. Mas quero apenas pensar no grito das vítimas pedindo ajuda e na nossa capacidade (ou incapacidade) de ouvir e intervir.

No caso de Ruanda, a intervenção foi nula: depois do assassinato de dez soldados da força que devia manter a paz no país, as Nações Unidas evacuaram os ocidentais e diminuíram sua presença armada até à insignificância. O maior esforço da ONU, durante a crise, consistiu em evitar qualificar os acontecimentos como genocídio, pois esse termo teria forçado o conselho de segurança a recorrer à força para pôr fim ao massacre e punir os responsáveis. As hesitações do mundo inteiro eram compreensíveis: uma expedição militar apropriada custaria caro em fundos e vidas.

Agir sem a coragem de encarar baixas seria uma estupidez; a prova já fora feita em 1993: depois da morte de 18 soldados americanos em Mogadício (narrada em "Falcão Negro em Perigo", de Ridley Scott), a ONU, simplesmente, voltou para casa, deixando a Somália nas mãos de hordas de bandidos. Obviamente, qualquer governo, na hora de oferecer meios e tropas, prefere sentir-se legitimado pela opinião de seu povo: se não pela voz das massas, ao menos pela das elites pensantes.

Quando o presidente Clinton, em 1995, despachou 20 mil soldados para a Bósnia, sua decisão era aprovada por apenas 36% da população americana. No entanto muitos intelectuais e jornalistas americanos pressionavam o governo: viajavam para a Bósnia, relatavam o horror e elevavam sua voz pedindo uma intervenção imediata. Chegaram a ser chamados "bombardeiros de laptop". Ora, freqüentemente, durante as tragédias dos últimos anos, as elites intelectuais ocidentais se esqueceram daquela idéia da razão moderna que diz assim: qualquer homem é nosso semelhante, nosso vizinho.

Com isso, recusaram-se a ser porta-vozes do grito das vítimas. Preferiram (e seguem preferindo) adotar outros traços da razão moderna, confirmando o pessimismo de Max Horkheimer em "Eclipse da Razão" (ed. Centauro). Para a razão moderna em sua versão cínica, 1) não há avaliação objetiva dos atos, ou seja, o que importa não é considerar os efeitos de um ato, mas avaliar as motivações do agente, 2) toda motivação é, em última instância, interesseira. Conclusão: a ação é sempre culpada, pois suas "verdadeiras" razões devem ser sórdidas.

Uma das conquistas iniciais da razão moderna foi a descoberta seguinte: os acontecimentos não se confundem com necessidades naturais -atrás deles, sempre há interesses subjetivos. Essa conquista se transforma em miséria por causa de um estranho espírito de porco, que conclui: quem se mete é sempre sujo, melhor não se meter e reservar-se assim o direito de berrar, ao mesmo tempo, contra a inação dos poderosos ou, caso eles se atrevam a agir, contra os motivos supostamente abjetos de sua ação. Assim, as tropas brasileiras estão no Haiti para servir à política escusa (e fracassada) do Itamaraty.

Imaginar que elas estejam salvando vidas, por mais que seja um fato, seria um conto para boi dormir. Se houver baixas brasileiras, só ouviremos críticas à política do governo; nenhuma palavra sobre o grito dos haitianos: será que ninguém ouve? Os que dizem hoje que "Hotel Ruanda" é um ato de acusação contra a covardia do Ocidente são os mesmos que protestaram contra a intervenção da Otan na Bósnia.

Os que se indignam porque o Ocidente deveria intervir hoje no Sudão gritariam, se a intervenção acontecesse, que o Ocidente está apenas perseguindo seus sinistros desenhos. Para eles, quem age é vergonhosamente interesseiro e quem não age é um covarde: só eles, que protestam contra os dois, saem bem na foto. Essa é a moral do espírito de porco da razão moderna.


Pequeno dilema moral.

Um de meus filhos me contou que, na semana passada, voltando para casa de bicicleta, viu uma moça que acelerava o passo enquanto estava sendo importunada por um homem. Ele perguntou à moça se ela precisava de ajuda. A moça respondeu que sim, por favor. Meu filho (capoeirista) encarou o homem; uma rasteira resolveu a situação.

Ora, talvez ele não tenha se metido pelas melhores razões: ele é briguento e, provavelmente, estava interessado na moça. Além disso, comprar uma briga noturna com um desconhecido é um risco insensato, que eu preferiria que ele não corresse, sem contar que uma rasteira pode matar quem cai sem preservar a nuca.

Agora, ele teve ou não razão de intervir?

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