18 agosto 2005

"Mensalão", caixa dois e outras falcatruas: essência ou acidentes?

A filosofia clássica tenta estabelecer a diferença entre essência e acidentes.
Por exemplo, a laranja tem uma forma arredondada e, quando madura, apresenta uma cor entre o vermelho e o amarelo: isso, junto com o tempo necessário e o clima próprio para a maduração, é parte da essência da laranja.

Mas uma laranja pode estar amassada e pode ser cortada no meio para extrair suco, ou dividida em gomos para ser saboreada: esses são acidentes, ou seja, são traços apresentados pela laranja que tenho na mão, mas não são implicações da essência da laranja.

Note-se que há acidentes que só se tornam possíveis por causa dos traços essenciais da laranja. Ninguém, em princípio, quer o suco de uma fruta amarga e fedorenta: o gosto agradável da laranja (que faz parte de sua essência) é responsável por sua transformação (acidental) em suco.
A distinção entre essência e acidentes é também evocada no consultório dos terapeutas. Em geral, quando as coisas não dão certo, os humanos preferem pensar que é por acidente, não por essência. Se a relação com meu filho é uma série ininterrupta de brigas infelizes, prefiro pensar que isso não tem nada a ver com o meu ou o seu jeito de SER: é porque eu ESTOU nervoso por causa do trabalho ou porque ele ESTÁ tenso por causa da chata da namorada. Conseqüência: pede-se ao terapeuta que ele arrume a situação, de maneira que ambos ESTEJAM diferentes. Mas, pelo amor de Deus, que ele não comece a colocar perguntas sobre a infância ou outras "baboseiras" que não têm ligação nenhuma (não é?) com o que está acontecendo, que é apenas um acidente passageiro, circunstancial.

A mesma distinção entre essência e acidentes foi central nos debates ao redor do fracasso do socialismo real. Quando ruiu o sistema soviético, alguns diziam que o desastre era acidental: fruto da mediocridade dos burocratas, das contingências (a Primeira Guerra Mundial) que produziram o socialismo logo num país atrasado como a Rússia de 1917 ou do fato de que a Rússia ficou isolada, defendendo sozinha a bandeira do socialismo num mundo hostil. No extremo oposto, outros afirmavam que o desastre era a conseqüência de vícios essenciais no projeto leninista ou no pensamento do próprio Marx.

Acho difícil não pensar nessa discussão hoje, enquanto muitos amigos petistas ou simpatizantes do PT parecem entender a crise atual como um mero acidente. Ao ouvi-los, para que o sol volte a raiar basta excluir os quadros, os deputados e os senadores "ruins". A idéia é a seguinte: uma turma de elementos suspeitos se insinuou (acidentalmente) nas fileiras do PT e do governo, a solução é a purga que os eliminará. Só sobra esperar a lista completa dos maus sujeitos. O único suspense é: o presidente está ou não entre eles?

Poucos levantam a hipótese de que a crise não seja apenas um acidente, mas o efeito de um problema de essência. Ora, para a segurança de qualquer cesta de maçãs, é bom separar as maçãs bichadas, mas é crucial se assegurar que o bicho não seja endêmico no tipo de maçã ou na colheita que a gente escolheu.

Estamos dispostos a apontar a relação entre as falcatruas da direita e os vícios essenciais do liberalismo. Por exemplo, a corrupção "collorida" foi a obra de uma quadrilha "acidental" que trabalhava em prol de seu próprio bolso, mas uma quadrilha desse tipo é também o efeito previsível da "essência" de um sistema que exalta o enriquecimento individual acima das necessidades da comunidade.

Por razões sobretudo sentimentais, parecemos menos dispostos a interrogar a relação entre as falcatruas de hoje e o ideário político e social da esquerda.

Ora, se alguns mal-aventurados usaram de recursos infaustos para garantir e estender o alcance do poder do PT e do governo, talvez isso não seja apenas um "acidente" de percurso (a obra de maçãs bichadas). Talvez isso seja também uma expressão ("essencial", então) do projeto político e social com o qual muitos de nós sonharam ou ainda sonham.

Ao que parece, os supostos "feiosos" (Zé Dirceu, Delúbio, Silvio Pereira etc.) são acusados de uma confusão que se realizou a cada vez que um modelo socialista chegou ao poder.

Só para lembrar: regularmente, os socialismos realizados ampliaram o Estado para colocá-lo ao serviço do governo e ampliaram o governo para colocá-lo ao serviço do partido. Nesses casos, quase sempre, sem hesitar, os funcionários de Estado, governo e partido (assim confundidos) agiram contra a legalidade democrática, por se considerarem depositários de um ideário absoluto, nobre e bem-intencionado. A convicção de ter o monopólio do bem autorizou qualquer embuste ou crime sem nem sequer produzir os tormentos da culpa moral.

Não é uma razão para renunciar, de repente, a nossas melhores esperanças sociais. Mas é uma ocasião, isso sim, para reconsiderar com cuidado os projetos que pretendem realizá-las.
Um exemplo básico: alguém, hoje, pensaria ainda que estatizar seja um jeito de tornar nossa sociedade mais democrática?

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