26 dezembro 2002

Natal com John Rawls



Um exercício filosófico para manter o espírito natalino.
Depois de um século de enfrentamentos, nas ruas, nos matagais e dentro de cada cabeça, ficamos numa espécie de empate entre o sonho socialista e o sonho liberal.

Se nos dermos o tempo de pensar, chegaremos provavelmente a estas constatações: não sabemos renunciar aos anseios da liberdade individual, mas recusamos as desigualdades excessivas de poderes e haveres. Essas desigualdades, de fato, constrangem a liberdade de todos, o que constitui uma boa razão para combatê-las. Mas como aboli-las sem comprometer a liberdade quase absoluta que queremos preservar para todos?

Ainda existem liberais segundo os quais qualquer um tem direito a tudo que puder arrancar de seu semelhante. Acham que a aspiração igualitária nos torna reféns das exigências dos outros, ameaçando nossa liberdade. Também ainda existem socialistas que vêem na liberdade individual uma traição dos ideais comunitários, que, para eles, deveriam ser os únicos. Mas trata-se de minorias.

Grosso modo, concordamos. Todos, ou quase, queremos o melhor dos dois sonhos, liberal e socialista, sem concessões: justiça e liberdade.

A discórdia começa na hora de decidir quais regras realizariam uma sociedade ao mesmo tempo livre e justa. John Rawls é o filósofo dessa hora. Morreu quase um mês atrás, deixando um vazio discreto, como acontece quando vão embora os melhores, ou seja, os que falam em voz baixa e nos pedem o esforço de pensar.

Sua obra mais importante, "Teoria da Justiça", foi publicada em 1971. Talvez um dia, alguém, procurando datar períodos no século 20, escolha essa data para marcar o fim da modernidade e o começo da pós-modernidade. Pois o livro é um último esforço da razão moderna para resolver o conflito entre seus dois maiores sonhos.

Rawls acredita que seja possível estabelecer regras universais para uma sociedade justa e livre. Como? Recorrendo a uma experiência racional que nos levaria a conclusões unânimes em matéria de justiça.

Imagine-se num limbo, antes de nascer, ou seja, antes de saber quais prêmios ou quais desgraças lhe serão atribuídos pela loteria da vida. Você não sabe se nascerá miserável ou rico, na Somália ou em Beverley Hills, rebento de uma família uspiana ou analfabeta. Cuidado: não basta imaginar-se (fantasia de Woody Allen) como espermatozóide na espera preocupada da ejaculação paterna, nem como óvulo materno antes da invasão. Na loteria da vida, é preciso incluir o patrimônio genético. Você também não sabe se será homem ou mulher, branco ou negro, alto ou baixo e, sobretudo, não sabe se terá fragilidades genéticas para malformações e deficiências. Ou se terá ou não predisposições para algum talento.

Claro que essa "posição original" não existe. Mas somos todos capazes de viajar, por um instante, até esse lugar fictício. De lá, poderíamos escrever, de um comum acordo, as regras de uma sociedade justa.

À primeira vista, o apelo à "posição original" se parece com a empatia, ou seja, com a capacidade de se colocar no lugar dos outros e de sentir suas dores. A diferença é que Rawls não propõe um sentimento acidental e caritativo, mas uma experiência universal da razão, que orientaria nossas decisões políticas e morais. Nisso, a "Teoria da Justiça" poderia ser o último grande texto moderno.

A pós-modernidade não acredita na universalidade da razão. E, por exemplo, critica Rawls da maneira seguinte: a experiência da "posição original" é possível só para nossa cultura. Nós acreditamos que nossa família seja a espécie humana. Podemos, portanto, nos imaginar em qualquer lugar na loteria da vida. Mas essa é apenas a crença da tribo ocidental moderna.

Outras culturas acreditam que os vizinhos, os pobres ou as outras raças sejam bichos diferentes. Elas escutariam a proposta de Rawls com a indiferença que seria a nossa se ele nos convidasse a imaginar que poderíamos nascer bactéria, inseto ou truta. Conclusão: a pretensa universalidade da razão justa seria uma crença histórica e culturalmente limitada.

Essa crítica procede, mas é sem consequência. Pois nossa cultura nos constitui: seus pressupostos (por exemplo, a convicção de sermos todos membros da mesma família humana) têm para nós valor universal, são partes integrantes de nossa razão.

Mas há uma outra crítica, que a prática da psicanálise leva a formular. Não estou certo de que, na "posição original", por não conhecer os resultados da loteria da vida, todos escolheríamos regras justas. Suspeito que muitos prefeririam planejar uma sociedade iníqua e correr o risco de tirar um número ruim, à condição de preservar ao menos uma pequena chance de ganhar e, portanto, de gozar de privilégios inauditos.

Não sei o que Rawls responderia. Lamento que encontrá-lo não seja mais possível. Não tanto para solucionar a questão, mas porque sua voz é uma das mais decentes desse último meio século.

Feliz Natal (um pouco atrasado) a todos, sobretudo aos que gostam de pensar e de falar em voz baixa.

19 dezembro 2002

A estrela na lapela

Quarta-feira da semana passada, em São Paulo. Tomo meu café contemplando a imagem de capa da Folha: o aperto de mão entre o presidente eleito do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e George W. Bush, presidente dos Estados Unidos.

Uma assimetria: Bush traz, na lapela, uma bandeira dos EUA, e Lula arvora a estrela vermelha do PT. Toca o telefone, e começa uma ciranda de comentários que duram o dia inteiro. "Elegemos o presidente do Brasil ou o do PT?" "O que é, voltou o Komintern?"

Na quinta-feira, aparecem as fotografias do encontro com Vicente Fox, presidente do México: na lapela de Lula, nenhum distintivo. Parece que Lula vestiu a estrela especificamente para o encontro com Bush.

Imagino que ele tenha usado o distintivo para declarar sua fidelidade às aspirações e ao percurso que o levaram até o encontro no Salão Oval da Casa Branca. Lembrete: serei cordial, engolirei os sapos necessários, mas não renegarei a estrela que representa meu sonho de um mundo solidário e generoso. Ora, do lado americano, como foi recebido o gesto?

As vicissitudes da estrela vermelha tornam seu valor simbólico problemático. A estrela no chapéu de um chinês durante a longa marcha era o símbolo de uma grande esperança. Décadas depois, em Pequim, a mesma estrela no chapéu de um policial ou de um burocrata era o símbolo do terror. Soviéticos, chineses, castristas, coreanos do norte e vietnamitas do norte fizeram do bem comum sonhado por todos um pretexto para moer os indivíduos, e, repetidamente, a estrela vermelha virou emblema da repressão. Mas pouco importa: na Casa Branca, certamente, ninguém confundiu o presidente do Brasil, democraticamente eleito, com um burocrata chinês.

No entanto o uso do distintivo deve ter sido entendido como uma provocação e, portanto, como uma fraqueza: em suma, como uma molecagem. Pense no que acontece quando um adolescente insiste em usar seu piercing no nariz logo no dia em que veste terno e gravata para enfrentar uma entrevista de seleção. O jovem acha que ele está, assim, reivindicando sua autonomia: preciso de emprego e você me intimida, mas, cuidado, não pense que deixarei de usar meu piercing, viu? O detalhe incôngruo é, de fato, a prova de sua fragilidade. Pela necessidade de conclamar sua independência na hora de apresentar-se e de pedir, ele revela que está se sentindo ameaçado por sua própria inferioridade. Em boa psicologia de recursos humanos, é por isso que o dito jovem não conseguiria o estágio ou o emprego. Ele sairia esbravejando: fui discriminado por causa de meus anseios de liberdade! Na verdade, seu piercing revelou não um excesso de independência (essa seria uma qualidade prezada), mas uma falta de segurança.

E o americano médio? Quem se interessa por política internacional (uma minoria, sem dúvida) sabe que o presidente eleito do Brasil pertence a um partido de esquerda. Mas a foto do encontro com Bush mal apareceu na imprensa. Segunda-feira de manhã, em Nova York, pergunto a Marshall Blonsky (professor de semiologia na Tisch School of the Arts e autor de "American Mythologies") como reagiria, a seu ver, o americano médio se os jornais tivessem mostrado em primeira página a foto colorida que nós vimos no Brasil, com a estrela vermelha na lapela de Lula.

Responde: "Ficariam exasperados. Pensariam: esse cara está procurando nas ruínas sinistras do passado uma maneira para mostrar a língua a Bush e à gente. Nós estamos em guerra, ele vem pedir crédito e abana com as mãos ao lado das orelhas cantarolando: olhem para a minha estreeela... nana nanana. É tudo o que tem para nos dizer?".

Mas há uma boa chance, acrescenta Blonsky, de que, para os mais jovens, a estrela vermelha evoque sobretudo uma propaganda da Heineken, a cerveja da estrela. De fato, se o retrato do Che pode estar em cada quarto de estudante e embelezar um famoso biquíni apresentado por Gisele Bündchen, por que a lapela de um presidente não seria alugada como espaço para a promoção de logomarcas?

Difícil não ouvir, no cinismo divertido de Blonsky, um fundo de ressentimento. Decididamente, não é o melhor momento para fazer molecagens com os americanos.

Segunda-feira à tarde, por volta das 15h, passam na minha rua, em Manhattan, as coortes dos estudantes que saem da Park West High School, uma escola pública. Enquanto me dirijo a um bar para terminar de escrever esta coluna, cruzo com um adolescente negro que veste o tradicional casaco preto de náilon da North Face, um moletom com capuz cinza e um gorro de lã com, bem no meio da testa, uma estrela vermelha. Para verificar a previsão de Blonsky, aponto para a estrela e comento: "Cool" (legal). Martin F., 17, pára, e conversamos no frio. Mostro-lhe a capa da Folha de quarta-feira. Quando enxerga a estrela, exclama: "Cooool" (leeegal). Imagina que Lula seja um cara da Rússia. Faço-lhe notar que os russos não têm mais nada a ver com as estrelas vermelhas. "Como não? São as lojas dos russos que vendem essas estrelas em qualquer canto do Brooklyn."

12 dezembro 2002

Vida divertida ou vida interessante?

Uma reportagem do "New York Times" (3 de dezembro) descrevia uma nova moda nos colégios americanos, graças à qual o ensino de ciência está se tornando curiosamente popular.

Nos EUA, os requisitos mínimos para o diploma secundário são bastante livres. Há tempos, para quem não gosta de estudar química, física ou biologia, existem matérias alternativas, como a "ciência da terra" ou a ecologia. Agora é a vez da "ciência forense", idealizadíssima pelos seriados televisivos, pelo cinema e pelos romances policiais. Assim, em vez de estudar leis e fórmulas, os alunos aprendem como determinar a hora da morte considerando o estado de um cadáver (aulas práticas no necrotério). Familiarizam-se com o microscópio examinando pêlos de possíveis estupradores encontrados no corpo da vítima. Entendem o que são o esperma ou o sangue investigando uma hipotética cena do crime.

Nas escolas em que os cursos são oferecidos, os jovens são entusiastas. Por que bancar o estraga-prazeres?

O fato é que a reportagem me deixou um mal-estar. Fiquei com a impressão de que a química, a física e a biologia estivessem desistindo de ter qualquer apelo próprio. As formas estabelecidas da diversão (sobretudo a televisão e o cinema) decidiriam como e o que podemos aprender. Filosofia, história e inglês (português, no nosso caso) seriam vítimas do mesmo processo.

Lembrei-me de conversas recentes com um jovem estudante universitário que (com grande angústia dele e dos pais) quer largar os estudos ao menos temporariamente. Ele queixava-se de que todos os cursos seriam chatos. "Como assim, chatos?", perguntei. "Não são divertidos", respondeu. Estranhei: quem disse que um curso deve divertir?

Existem ao menos duas antíteses de chato: interessante ou divertido. E elas não se equivalem. O divertido nos afasta e nos distrai. O interessante nos envolve e nos engaja. Enquanto os alunos olham para um passarinho que os diverte, posso lhes enfiar uma colherada de ciência na boca. Mas preferiria interessá-los na própria ciência.

Cuidado: não defendo o valor do trabalho duro. Aliás, suspeito que o ideal do "homo faber" seja uma versão laica do moto monacal "reza e labora". E, se não tiver para quem rezar, contente-se em laborar. Deve ter sido promovido, no começo do capitalismo, pelo dono de uma tecelagem inglesa que queria justificar a "nobreza" da semana de 80 horas e do trabalho infantil.

Mas fui adolescente nos anos 60, a década do triunfo da intimidade e da idéia de que a verdade que importa é sempre subjetiva. Consequência: para mim (como para muitos de minha geração), o mundo é sempre interessante com a condição de que a gente se engaje nele. É alienado quem, vítima de poderes escusos ou de fraquezas morais, foge desse engajamento.

A partir dos anos 90, encontro adolescentes para quem o mundo parece tolerável apenas se puderem distrair-se dele. E os vizinhos são frequentáveis à condição de não se comprometer com eles. O que era alienação nos anos 60 tornou-se escolha de vida nos 90.

O próprio uso das drogas mudou. Nos anos 60, a maconha e os alucinógenos eram concebidos como auxílios para descer "mais fundo" no autoconhecimento ou numa pretensa comunhão mística com o mundo. Imaginávamos que drogar-se fosse uma viagem iniciática, interior ou para a Índia. O ecstasy dos anos 90, ao contrário, promete um paroxismo de distração. Serve para clube e música tecno: não fale nada e sacuda-se forte.

Ora, criticar os jovens é quase sempre uma hipocrisia. Pois, em regra, o que eles "aprontam" é apenas a realização de um desejo dos pais. Melhor, eles realizam o que conseguem entender ou imaginar das aspirações inconscientes dos adultos.

Portanto, se a escolha da distração é deles, o desejo de distração deve ser um pouco nosso. Posso achar surpreendente que meu jovem interlocutor exija cursos divertidos. Mas devo reconhecer que ele vive num mundo em que há pedagogos que acham certo vestir-se de Sherlock Holmes para ensinar química. Em suma, foram os adultos que, do ideal da vida interessada e engajada, passaram para o ideal da vida divertida. Os jovens perceberam.

Na sala de espera de meu dentista, folheio a "Caras". Entendo que muitos gostem de contemplar os ricos e famosos em suas mansões e festas. Os cínicos dizem que é saudável: a inveja estimularia a mobilidade social. Não vou discutir agora. Mas constato e lamento que, inelutavelmente, os retratados sejam deformados por um sorriso idiota. A imagem da felicidade proposta se confunde com um ricto que não é justificado pelas circunstâncias, mas vale como uma declaração: olhem para nós, estamos alhures, esquecidos do mundo e de nós mesmos, nos divertindo.

Em 1938, Huizinga publicou "Homo Ludens", o homem que joga, para mostrar que o jogar é uma dimensão essencial da atividade humana. Estranha premonição, ele previa que, no futuro, uma cultura da puerilidade impediria adultos e crianças de continuar jogando do único jeito interessante, ou seja, com seriedade.

05 dezembro 2002

Na passarela de Miss Mundo, lá vamos nós

A Nigéria é um país dividido entre cristãos modernizadores e muçulmanos que têm pouca simpatia pelos charmes da modernidade ocidental. Os dois grupos se odeiam.

Em 2001, a nigeriana Agbani Darego, estudante de computação, foi eleita Miss Mundo, graças à elegância de seu porte e às suas qualidades intelectuais. Com isso, a Nigéria ganhou o direito de hospedar o concurso. O governo nigeriano (o atual presidente é cristão) decidiu promover o evento de 2002 para mostrar ao mundo que a Nigéria se moderniza. A comunidade muçulmana não gostou. Primeiro, várias candidatas protestaram contra a aplicação da lei islâmica na Nigéria e pediram que fosse abolida a pena de apedrejamento para mulheres acusadas de adultério.

Também a data escolhida (7 de dezembro, no começo do Ramadã, mês sagrado dos muçulmanos) pareceu uma provocação. Enfim, como aceitar uma competição baseada em qualidades que o Islã mais conservador não preza nas mulheres, como a sedução, a independência e a formação intelectual e profissional?

Gota que fez transbordar o vaso, uma jovem jornalista nigeriana (de novo, uma mulher, mas onde já se viu?), ao comentar a chegada das moças, na semana retrasada, perguntou: "O que o profeta Muhammad pensaria do concurso?", e brincou: "Quem sabe ele escolhesse uma mulher entre as jovens pretendentes".


Blasfêmia! As autoridades religiosas do Estado de Zamfara decretaram uma "fatwa" contra a jovem, que já está em fuga pelo mundo, alvo designado de assassinato por qualquer fiel muçulmano que goste da idéia. E a rua pegou fogo. Balanço: mais de 215 mortos, 1.100 feridos, 22 igrejas e oito mesquitas destruídas.

O páreo mudou-se para a Inglaterra. Aqui, surpresa, as concorrentes foram acolhidas por outros protestos. Germaine Greer, feminista veterana, fez eco às autoridades islâmicas de Zamfara, declarando que era horrível que o concurso ocorresse em Londres.

Mesmo sem aventurar-se em críticas ideológicas, é fácil zombar de Miss Mundo: os concursos de beleza parecem puras futilidades. Os organizadores deveriam ter desistido na hora do primeiro bofetão na rua, não é?

O problema é que, pensando bem, não estou tão certo da futilidade do concurso de Miss Mundo. Há traços e manifestações de nossa cultura que podem nos incutir uma espécie de vergonha. Com isso, não reconhecemos que são parte integrante e necessária de nossa maneira de ser.
Um exemplo. A liberdade de expressão é crucial na nossa cultura: acreditamos no indivíduo como valor, portanto defendemos a liberdade de cada um se expressar livremente.

Essa atitude é fácil quando se trata de proteger uma revista militante ou mesmo (espero) o colunista de um diário. Mas hesitamos quando se trata de defender palavras e imagens que não têm, aparentemente, funções nobres ou superiores. Pelo jornal da CUT desceremos nas ruas e enfrentaremos polícia a cavalo e bombas de gás lacrimogêneo. Será que faríamos o mesmo pelos anúncios eróticos da "Private" ou pelos cinemas pornográficos do centro? Na hora de proteger a expressão das fantasias eróticas, achamos que essa é nossa parte acessória, envergonhada. No melhor dos casos, nós a defendemos só para evitar que a repressão estabeleça um precedente do tipo: amanhã será a vez da Folha. Dificilmente reconhecemos que a liberdade das fantasias eróticas é um traço irrenunciável de nosso jeito de ser.

Ora, nossa subjetividade não é possível sem a liberdade de fantasiar sexualmente. Montesquieu, Locke e Rousseau não existem sem Sade. Cultuamos a liberdade política e prezamos a autonomia também porque nossa fantasia erótica se arrisca a enlouquecer, imaginando e desejando coisas impossíveis ou proibidas. É com a liberdade de fantasiar que nasce a culpa moderna: paramos de ser culpados por não respeitar proibições e normas e passamos a sentir culpa sobretudo por deixar de perseguir o que desejamos.

Outro exemplo, mais próximo de Miss Mundo. A sedução é a modalidade geral de se afirmar e de se relacionar em nossa cultura. Mas dificilmente reconhecemos nela um traço decisivo de nossa subjetividade. Querer seduzir não é o triunfo das aparências e da futilidade? Por que defender concursos que parecem premiar a sedução?

Ora, a sedução generalizada, que nos envergonha um pouco, é o corolário da revolução que aboliu os privilégios do berço. Se cada um deve valer por si só (não pelo lugar ou pelos pais de quem nasceu), então, nosso valor é decidido pelo olhar dos outros, ou seja, por nossa capacidade de seduzi-los.

Resumo: se nos orgulhamos da liberdade de expressão, devemos defender também os cinemas do centro. Se nos orgulhamos do fim dos privilégios na organização social, devemos defender a sedução que organiza nossas relações sociais.

Em suma, podemos não gostar, mas não podemos renunciar aos "sex shops" e aos clubes de swing. Como não podemos renunciar ao desfile de Carnaval, ao concurso de Miss Mundo ou à semana da moda de São Paulo. Pois os cantos escuros do sexo e as passarelas da sedução não são as escórias, mas os caminhos de nossa liberdade.

28 novembro 2002

Simulando a vida

Na "New York Times Magazine" de domingo passado, David Brooks (o autor de "Bubos no Paraíso") comentava o lançamento da versão on-line dos "Sims".
Os "Sims" (os simulados) é um jogo para computador que existe desde 2000 e que se tornou extremamente popular. Nada a ver com os cenários de combate de "Quake" ou "DukeNukem". Nada a ver com o mundo heróico e fantástico de "Final Fantasy". Nos "Sims", os jogadores circulam num habitat parecido com o mundo da classe média (sobretudo suburbana) e são convidados a simular a banalidade da vida.

Você volta do trabalho, prepara o jantar, vai ao shopping, ocupa-se das crianças, chama o encanador, lava os pratos, briga com seu ex, tenta encontrar alguém interessante para sair, paga as contas etc. Quando tudo isso acaba, senta-se ao computador e faz tudo de novo, na tela, simulando. Qual é a graça?

Eu imaginava, inicialmente, que a graça consistiria em compensar as frustrações do cotidiano. Os jogadores poderiam se inventar mais bonitos e mais bem-sucedidos. Aproveitariam a simulação para ludibriar seus superiores e pensar, enfim, no seu prazer. A dita simulação seria, em suma, uma transformação radical.

Mas a razão do sucesso dos "Sims" não foi essa. Frequentei um pouco os sites de discussão para jogadores dos "Sims". Descobri o seguinte: quem joga na esperança de se tornar Indiana Jones ou Lara Croft cansa rapidamente. A maioria dos jogadores assíduos parece inventar máscaras, mundos e dificuldades iguais às de sua vida real.

Até agora, essas eram apenas impressões, pois, como saber o que cada um faz, jogando sozinho com o programa, na intimidade de seu disco rígido? A partir de dezembro, a coisa mudará. Pagando uma pequena mensalidade, os jogadores internautas poderão conviver e interagir no mesmo mundo simulado.

Nos últimos meses, mais de 35 mil pessoas jogaram os "Sims" nesse mundo virtual comum, com o intento de testar o sistema (inicialmente previsto para 1 milhão de jogadores). David Brooks teve acesso a esse teste e confirma: o barato dos "Sims" consiste em duplicar as tribulações do cotidiano, não em escapar para outra vida. Estranho? Nem tanto.

Somos todos Madame Bovary. Ou seja, podemos viver na mediocridade, mas sonhamos com grandes paixões: meu trabalho é chato, meu parceiro não transa direito e fala pior ainda, mas leio Bárbara Cartland e assisto a "Titanic". No entanto, à diferença de Madame Bovary, nós somos leitores de "Madame Bovary", o livro. Ou seja, fugimos, como ela, enveredando em sonhos extremos de amor e de aventura, mas nem toda a ficção, para nós, é evasão ou compensação. Às vezes, gostamos de sonhar com a vida que temos e queremos histórias que mostrem a banalidade medíocre de nossos dias, histórias, por exemplo, que contem a vida de Madame Bovary. Por quê?

Pelas mesmas razões pelas quais se escrevem diários: para que a vida de cada dia tenha a dignidade de uma história contada. Os diários provam que a vida deve valer, ao menos, a tinta necessária para contá-la. Os "Sims" têm a mesma função: se volto para casa e simulo meu dia na tela, é uma maneira de afirmar que minha vida merece ser contada ou simulada. Quem sabe o jogo no universo paralelo dos "Sims" reavive, em nossa cultura, o carinho pela vida como ela é.

Há um outro interesse dos "Sims". Em sua versão on-line, o jogo será um laboratório. Psicólogos e sociólogos terão acesso a um universo construído por milhões de pessoas que, interagindo, inventam uma vida em comum. É uma extraordinária ocasião de descobrir e medir modelos culturais, ideais sociais, tendências etc.

Um exemplo, desde já. David Brooks relata que, durante o teste do sistema, Will Wright (inventor dos "Sims") foi impressionado pelos esforços que muitos jogadores consagravam à tarefa de encontrar amigos que quisessem compartilhar casa ou apartamento (isso no mundo virtual dos "Sims"). Parecia que eles estavam mais preocupados em constituir um grupo de faixas com quem dividir o aluguel do que em procurar uma alma gêmea com quem viver a dois.
A observação de Will Wright me fez pensar num adolescente com quem tenho conversado um pouco nestes dias. Durante o colégio, ele não teve sorte em amor e conheceu só prazeres solitários. Chegado à universidade, eis que ele gostou de uma moça que gostou dele. Passaram um ano juntos, felizes. De repente, ele quer sair da relação porque, declara, tem nostalgia "do grupo dos amigos".

Há razões singulares para essa vacilação, mas a observação de Will Wright aponta para uma explicação cultural imprescindível.

Para a geração que chega hoje à idade adulta, o ideal de uma vida que valha a pena não é dramático e intenso, não é, por exemplo, uma paixão amorosa. Ao contrário, a vida sonhada é leve (ou leviana?) como uma sucessão de piadas entre amigos. Seu modelo não é mais a novela, brasileira ou mexicana que seja, mas o seriado: justamente, "Seinfeld" ou "Friends", em que não há amores, só amigos engraçados que vivem juntos e se divertem. Como se divertem...

21 novembro 2002

Edifício Master

Estréia amanhã, no Brasil, "Edifício Master", documentário de Eduardo Coutinho, o autor de "Santo Forte" e "Babilônia 2000".

O Master é um prédio de Copacabana, a uma quadra da praia. São 276 conjugados (23 por andar), em que vivem mais ou menos 500 pessoas (donos ou inquilinos). O aluguel de um apartamento é por volta de R$ 350, com despesas de condomínio de R$ 135.
Coutinho e sua equipe ficaram no prédio por um mês, filmando entrevistas. Na montagem final, aparecem os depoimentos de 37 moradores.

Antes de assistir ao filme, ao anoitecer, contemple o tabuleiro das janelas acesas na fachada de um grande prédio. A luz trêmula dos televisores parece sugerir uma banalidade comum. Alguém dirá: são vidas massificadas (sempre subentendendo: à diferença da minha, não é?). Mas as sombras que se movimentam atrás das cortinas falam de existências concretas: quem são nossos vizinhos?

Fique mais um pouco na frente do prédio e considere o paradoxo da modernidade urbana: uma extrema proximidade física, vidas que se tecem a poucos metros umas das outras, atrás de uma parede ou de um piso, mas que mal se cruzam. De maneira inédita na história e na variedade das culturas, nós acreditamos que todos são nossos irmãos ou semelhantes. Mas não conseguimos bem explicar por quê e no quê. Os prédios em que moramos são aldeias paradoxais: compartilhamos cheiros, barulhos, gritos, sem por isso saber o que define a nossa tribo; ou seja, sem saber o que temos em comum ou mesmo sem admitir que tenhamos algo em comum. Até porque, em geral, preferimos curtir a ilusão de nossa unicidade absoluta.

Qual é o comum denominador de humanidade que reconhecemos em nossos vizinhos e semelhantes? Como essa humanidade comum se concilia com a presunção de nossa unicidade? O filme de Coutinho responde. Graças a ele, descobrimos que nossos vizinhos não são exóticos; ao contrário, são banais, mas, apesar disso, suas vidas são tão únicas quanto as nossas.
Em suma, somos todos membros da mesma tribo moderna justamente por isso: porque somos todos únicos. No edifício Master, nos sentiríamos em casa, não apesar da diversidade das escolhas e dos destinos, mas por causa dessa diversidade.

Vera viveu no Master a vida toda, mas teve uma existência cigana, porque passou por 28 apartamentos diferentes: sem deixar o edifício, viu suicídios, assassinatos, mortes, cafetinas e prostitutas. Esther, que foi costureira "da alta sociedade", começou um dia a tirar retratos e ficou encantada consigo mesma. Renata fugiu da mãe que a forçou a abortar e, agora, ela tem um namorado nos EUA. Nadir tem oito netos, toca e canta. Carlos e Maria Regina se amam, mas ele tem mania de olhar para outras mulheres, e ela quis se jogar pela janela. Três jovens querem ser músicos. Oswaldo e Geicy são felizes: encontraram-se pelos classificados, começaram a morar juntos três dias depois e são um casal há 13 anos. Daniela, que viveu em Nova Orleans, EUA, luta contra seu medo de encarar a vida escrevendo poesias em inglês e pintando: ela mostra um quadro intitulado "A Floresta de meu Desespero". Roberto, camelô e aposentado, ainda chora a morte de seus pais. Alessandra sustenta a si mesma e a sua filha fazendo programas: é tão bonita e corajosa que, depois do filme, aposto que receberá propostas de casamento pelo correio. Jasson compôs e canta samba. Fernando José foi ator em mais de 30 novelas e 62 filmes. Cristina foi exilada no Master, junto com o filhinho, pelo pai de classe média alta, revoltado pela gravidez precoce da filha. Maria Pia, espanhola e doméstica, já visitou duas vezes a Europa. Suze foi dançarina e cantora no Japão. Paulo Mata jogou futebol no México, na França, nos EUA e na Venezuela, foi treinador na Arábia Saudita e no Sudão e agora compõe e canta. Eugênia é poeta. E por aí vai.
O Master é um edifício de pequena classe média. Seus moradores são, socialmente, de pequena classe média, mas eles não têm nada de médio e nada de pequeno: são todos heróis. Pela arte de Coutinho, suas vidas, milagrosamente, revelam uma grandiosidade épica.

Henrique emigrou para os EUA com 17 anos. Vive de sua aposentadoria americana, sozinho e modestamente. O que ele conseguiu já deu para os filhos, que residem todos nos EUA.

Recentemente, caiu e teve um derrame. Recuperado, canta para nós "My Way" de Sinatra, com entusiasmo e braço erguido. Ao escutá-lo e vê-lo cantar naquele pequeno conjugado de Copacabana, longe de qualquer estereótipo do sucesso, poderíamos perguntar: mas qual é seu triunfo, qual o seu orgulho? A letra da música de Sinatra responde: Henrique canta e se comove porque viveu "do jeito que quis". Orgulha-se e celebra a grandeza de ter vivido e de viver. Só isso, mas não conheço postura mais digna.

P.S. Uma sugestão: se você gostar do filme de Coutinho, ou seja, se você achar graça e grandeza nos heróis do apartamento ao lado e do andar de cima, leia ou volte a ler o livro de Georges Perec, "A Vida - Modo de Usar".

14 novembro 2002

Suzane: pano de fundo

É sábado . Parece que, na cidade, só se fala da confissão de Suzane von Richthofen. Com o namorado e o irmão dele, ela levou a cabo o assassinato de seus pais, que se opunham ao namoro. Calma, não é necessário trancar os quartos; filhos e filhas não nos matarão nesta noite. Mas muitos pais se perguntam: a casa dos Richthofen era muito diferente da nossa?

À noite, vou ao shopping Frei Caneca, para assistir a "Madame Satã", e João, motorista do táxi Abreu que me leva, comenta sobre Suzane: "Matar os pais por causa do namorado é safadeza mesmo". Parece-lhe intolerável que a cumplicidade com namorados e amigos prevaleça sobre a aliança entre pais e filhos. Concordo, mas receio que a coisa não seja uma novidade.

Enquanto espero a hora do filme, erram pelos corredores do shopping vários grupos de adolescentes. São coesos, cada grupo tem um "look" próprio: um corte de cabelo, uma maneira de vestir as calças, um jeito de andar. Passam três meninos de oito ou nove anos, todos com um brinco na orelha direita. São graciosos, mas o que estão fazendo de noite, num shopping, sozinhos?

É uma banalidade: cada vez mais, na vida dos jovens, na escolha de suas condutas e na invenção de sua identidade íntima, os companheiros contam mais do que os pais. O pai de Suzane não gostou disso, reagiu e morreu coberto de razão, pois ficou demonstrado que as companhias de Suzane eram, bem como ele pensava, péssimas.

Em 1998, o livro de Judith Rich Harris "Diga-me com Quem Anda..." provocou um pequeno tumulto no mundo da psicologia. Rich Harris declarava que os jovens não são (mais) o efeito dos cuidados que receberam na sua primeira infância. Pouco importa que, com suas crianças, você seja carinhoso ou estupidamente ausente: de qualquer forma, a influência do grupo de amigos decidirá quem serão seus filhos. Os jovens se formam em relações horizontais, entre companheiros e iguais. As relações verticais, hierárquicas (com os pais e outros adultos dotados de autoridade), contam cada vez menos.

Não é de estranhar. A personalidade moderna vive numa permanente consulta ao olhar dos outros: existo porque os companheiros de meu grupo, os meus semelhantes, me aprovam e me tratam como um membro do bando. Devo quem eu sou a eles, não à bênção de alguém acima de mim. A cumplicidade e o mimetismo nas parceiradas são mais importantes do que os imperativos da autoridade.

Parêntese: essa mudança não se deu contra ou apesar dos adultos. Os pais de hoje preferem ser bem-vistos e amados por seus filhos a ser respeitados e obedecidos. Em suma, a subjetividade dos pais também mudou com a modernidade, e a família torna-se, aos poucos, uma parceria horizontal.

Ora, ser mais membro de seu grupo do que filho de seus pais acarreta algumas consequências, que constituem o pano de fundo do crime de Suzane & cia. Para quem prefere o grupo à hierarquia familiar, o que vem dos pais não tem valor simbólico. As interdições aparecem como a expressão de uma autoridade que se justifica só na violência; a reação, se acontecer, será também violenta. Da mesma forma, o que se espera que os pais transmitam não são princípios ou exemplos, apenas bens materiais: a herança é só grana.

Outra consequência é a urgência. As relações verticais ensinavam a pacientar: um dia, você subirá na hierarquia, será adulto e tomará nosso lugar. Mas, para quem vive de relações horizontais, não há nenhuma razão para esperar. Quem estiver me atrasando que saia do caminho.

A droga, além de reforçar a cumplicidade do grupo (à diferença dos babacas, nós sabemos o que é bom), satisfaz e encoraja a urgência do querer. Não espere, o futuro sonhado já está aqui, ao alcance da mão, tome.

Depois de assistir a "Madame Satã", na falta da Lapa carioca dos anos 30, vou a pé até a Boca do Lixo, para prolongar o prazer do filme. Numa lanchonete na esquina da Augusta com a Dona Antônia de Queiroz, participo de outra conversa sobre a confissão de Suzane. Uma figura saída do filme de Karim Ainouz exclama: "Coisa de louco, logo num bairro bom". Aparentemente, segundo ele, o crime contradiz a geografia da moralidade. Apesar de todas as revelações de Freud, a casa de família de classe média e de bairro bom continua aparecendo como o lugar do bem. E a Lapa ou a Boca do Lixo, como seus opostos.

Mas há crimes -quase sempre às escondidas, mas desta vez às claras- que nos lembram qual é o preço do bem-estar moderno, que é próprio das casas dos bairros bons. No caso, o preço é uma subjetividade sem mandato, que, para descobrir a que veio, só sabe entregar-se ao conformismo dos pequenos grupos e exigir satisfações imediatas.

Mais um detalhe: muitos acharam que, no enterro dos pais, Suzane fingiu seu choro e que seu pranto seria a prova de seu cinismo. Mas uma subjetividade sem mandato não precisa fingir. Basta-lhe conformar-se ao grupo, conquistá-lo. Na parceria dos enlutados, ao redor da fossa, a órfã inconsolável era uma identidade ideal. E Suzane, aposto, chorou de verdade.

07 novembro 2002

Balanços do boom dos anos 90

Sob o título comum "A Guerra de Classe", o "New York Times" acaba de publicar dois balanços opostos da última década e do boom econômico que está implodindo.

Paul Krugman, economista e colunista, assina o primeiro texto, publicado em 20 de outubro. Ele considera que os anos 90, por mais que tenham sido agradáveis e festivos, foram o momento conclusivo de uma transformação desastrosa para a sociedade americana. Krugman constata que, nos últimos 30 anos, o poder aquisitivo do americano médio aumentou apenas 10%. No mesmo período, o salário médio dos cem dirigentes mais generosamente remunerados evoluiu de maneira diferente. Em 1970, ele era 39 vezes o salário médio do trabalhador; em 2000, os dirigentes ganhavam mais de mil vezes o que ganhava um trabalhador.

A partir dos anos 70 e com uma aceleração brutal na última década, a economia americana produziu uma concentração de renda e um nível de desigualdade que lembram a época do capitalismo selvagem. Estamos de volta aos tempos do Grande Gatsby. No começo do século, os Vanderbilts, Morgans etc. construíam mansões que eram verdadeiros museus da extravagância. Hoje, celebram-se arquitetos especializados em construir casas de 2.000 a 6.000 metros quadrados. Qual é a diferença?

Ora, observa Krugman, entre 1930 e 1970, houve um interregno em que a América foi um país de classe média, relativamente igualitário e, sobretudo, animado por questões morais, e não só pela sede de lucros. Esse universo, no qual Krugman cresceu, surgiu após a Depressão de 1929, quando o presidente Roosevelt inspirou um pacto nacional que instituiu novas normas de justiça social na consciência americana. Essas normas resistiram por mais de três décadas. A América foi, durante esse tempo, um país nada idílico, ainda racista, capaz de todos os bigotismos, mas também constantemente preocupado com a iniquidade. Aquelas décadas foram a matriz das lutas pelos direitos civis e da contracultura dos anos 60.

Quer reconstruir esse percurso? Para evocar a América absurdamente desigual do começo do século 20, leia ou veja "O Grande Gatsby" ou "A Idade da Inocência". Logo, assista a "Wall Street" (1987) e a "American Psycho" (1991), que (deixando de lado os excessos homicidas do segundo) fornecem exemplos da personalidade ideal dos anos 90. Enfim, para ter uma imagem das melhores décadas americanas entre 1930 e os anos 70, veja ou leia "O Sol É para Todos" (romance de Harper Lee e filme de Robert Mulligan, com Gregory Peck, três Oscars em 1962).

Também acaba de ser reeditado em livro de bolso outro romance famoso: "The Man in the Grey Flannel Suit" (O Homem com o Terno de Flanela Cinzenta), de Sloan Wilson, que foi um best-seller em 1955 e deu lugar a um filme, também com Gregory Peck. É a história dos tormentos de um homem que, para conseguir um salário melhor, preenche uma função que ele mesmo não aprova e que, em suas palavras, consiste em sugerir às pessoas que comprem e consumam "até que possam explodir de felicidade".

Compare os escrúpulos do herói com o cinismo de Michael Douglas no papel de Gordon Gekko, o protagonista de "Wall Street" que promovia a moral dos anos 90, declarando: "A cobiça é uma coisa boa".

Em suma, a verdadeira crise não foi o estouro da bolha na Bolsa. A crise que importa foi moral e aconteceu enquanto se festejavam sucessos e lucros: na ganância que tomou conta de todos, a sociedade perdeu seu rumo.

O outro texto da série (publicado em 27 de outubro e menos interessante) é de Michael Lewis, escritor e ex-investidor. Lewis, simplesmente, defende os anos 90: a década trouxe transformações tecnológicas que ainda darão frutos graúdos e, sobretudo para ele, a década valeu por ser uma expressão de nossa natureza. A cobiça não é nem boa nem ruim, ela nos define.
Inevitavelmente, o leitor dos dois textos fica com uma pergunta. Será que o liberalismo só sabe promover uma ética pela qual o bem coincide com o ganho? Ou, então, o interregno caro a Krugman não foi apenas uma irregularidade, e a América, com o Ocidente liberal, poderiam viver de outros valores que não a cobiça?

A questão parece primária e abstrata, mas ela é central, hoje, no espírito dos americanos. E talvez explique por que muitos encaram sem hesitação a perspectiva de uma guerra cuja necessidade estratégica não está muito clara.

Os escândalos Enron, Tyco, Worldcom etc. revelaram a face obscena da festa dos anos 90 e a debilidade moral que espreita a vontade de lucro. A guerra, ao contrário, é apresentada, entendida e vivida não como um conflito de interesses materiais, mas como uma luta entre culturas inconciliáveis. Ela aparece, portanto, como demonstração de que a América, apesar da cobiça dos anos 90, ainda tem valores para promover e defender. A guerra, em suma, é aceita porque parece ser um comportamento moral, uma maneira de se reabilitar depois dos excessos materialistas dos anos 90: quem luta e arrisca a vida para defender sua cultura não pode ser igual a Gordon Gekko.

31 outubro 2002

As origens humildes do novo presidente

Nos últimos dias, li ou escutei não sei quantas vezes que Luiz Inácio Lula da Silva é um ex-metalúrgico, um ex-operário e um ex-retirante pernambucano.

Dependendo das circunstâncias, essas expressões têm sentidos diversos: simpatia, admiração, condescendência paternalista, suficiência, desprezo. Seja como for, o lembrete manifesta, no mínimo, o seguinte: é uma surpresa absoluta que um homem dessa extração tenha chegado à Presidência. A origem humilde de Lula tornou-se uma notícia: para alguns, um espanto; para outros, um valor e a promessa de um futuro diferente.

A surpresa não deveria ser tamanha. Afinal, funciona, há um certo tempo, um quadro democrático formal. E, contrariamente à opinião frequentemente recebida, o Brasil é um país com acelerada mobilidade social. Por que um operário não chegaria à suprema magistratura do país?

O verdadeiro mistério é o estranhamento de todos, inclusive do novo presidente, que se comove com a lembrança de suas origens. Em suma, é óbvio que chegar à Presidência saindo de um berço humilde constitui um mérito extraordinário, mas a surpresa que todos manifestam ressoa como algo mais do que o reconhecimento da façanha de Lula. O caminho percorrido pelo novo presidente surpreende não apenas como uma espetacular ascensão social mas como se representasse uma transgressão da ordem das castas. Fala-se de Lula metalúrgico e retirante como, numa sociedade tradicional, poderia ser celebrada (ou execrada) a chegada de um pária ao poder.

Quando Bill Clinton foi eleito presidente dos Estados Unidos, houve, na imprensa americana, artigos lembrando suas origens pobres e desastradas (o pai que morreu antes de ele nascer, as dificuldades e a coragem da mãe para criá-lo, o padrasto alcoólatra e abusador). Era claro que ele não pertencia nem de longe ao clube do "establishment" americano. Isso era uma surpresa desagradável para alguns e agradável para outros, mas não foi nunca uma manchete, embora o fato fosse pouco banal (a mobilidade social nos EUA de hoje não é maior do que a brasileira). Não houve títulos anunciando: "Filho adotivo de alcoólatra abusador chega à Presidência". Para que, nos Estados Unidos, a imprensa e a rua fossem levadas a lembrar constantemente as origens de um presidente, ele deveria ser negro ou mulher. Aí, sim, seria repetidamente conclamado que foram eleitos, enfim, o primeiro negro ou a primeira mulher presidentes.

Com Lula acontece isto: suas origens sociais são evocadas não para lembrar uma diferença que, no Brasil moderno, é difícil, mas possível, percorrer. Elas parecem ser evocadas para lembrar um fosso que, normalmente, é proibido atravessar.

Apesar do verniz de modernidade e da efetiva mobilidade, as diferenças sociais, no Brasil, são vividas como diferenças essenciais, mais parecidas com distâncias qualitativas (raciais e racistas, por exemplo) do que com as disparidades econômicas que, na modernidade, deveriam ser a forma principal, se não única, de diferença social.

Lula, numa outra democracia, seria apresentado como um líder sindical e político que foi eleito presidente. No Brasil, ele é apresentado como operário e retirante: sua chegada à Presidência constitui um alvoroço, porque "operário" e "retirante" parecem designar espécies distintas. É como se Spartacus, o escravo, se tornasse imperador em Roma.

Nesse quadro, como entender o apoio que as elites mais conservadoras deram à candidatura de Lula? Nesta eleição, houve uma grande novidade: quebrou-se a aliança, que durava desde o fim da ditadura, entre as forças da modernização social-democrata e as forças ligadas à manutenção das formas mais arcaicas do poder.

Durante séculos, as elites antigas e escravocratas inventaram e aperfeiçoaram um erotismo do poder especificamente nacional, feito de condescendência e posse dos corpos, de brutalidade e paternalismo. Protegendo seu gozo, elas receavam e receiam tanto a insurreição dos explorados quanto a modernidade que transforma os escravos em trabalhadores e, aos poucos, promove uma sociedade de classes médias.

Parece que, depois de oito anos de FHC, essas elites tradicionais acharam que, para o estilo de domínio que elas preferem, a social-democracia talvez fosse mais ameaçadora do que a reivindicação e a rebelião popular. Afinal, devem ter pensado, a revolta dos escravos a gente conhece, ela faz parte da ordinária administração: sempre pode ser reprimida (ao estilo de Canudos) ou enrolada na condescendência, quem sabe em nome de um nacionalismo pretensamente comum. Elas apostaram, ao que parece, que o povo revoltado seria um aliado, temporariamente, contra a modernidade e, com isso, lhes prolongaria a sobrevida.

É certo que elas não encontrarão em Lula a complacência esperada. Outra coisa também é certa: para que o mundo inventado e curtido pelas elites tradicionais mude, será bom que reconvirjam as forças dos que desejam que isso aconteça -forças que, nestas eleições, se separaram.

24 outubro 2002

Conversas sobre eleições e cidadania

Domingo , num restaurante da Nona Avenida, em Nova York, conversei sobre as eleições com L.R., 30, músico, brasileiro. Ele chegou aos EUA em 1993 e tem, hoje, dupla nacionalidade.

L.R. não votou no primeiro turno e não votará no segundo. Não foi por falta de ter retirado seu título de eleitor no consulado. Nada disso: ele não votou e não votará porque não se reconhece o direito de votar: "Não me parece justo. Faria uma escolha da qual não encararia as consequências. Voto em Fulano, o país vai à m..., e eu, aqui, tranquilo. Além disso, não sei se a gente ainda é verdadeiramente cidadão quando não entra com uma cota. Claro que sou brasileiro, mas pago meus impostos aqui, não no Brasil. Quem não paga imposto não é plenamente cidadão".

É óbvio que L. não pretende excluir do voto quem não tem renda para declarar. Sua idéia é a seguinte: contribuir, de alguma forma, na invenção do país é a condição para opinar sobre seu rumo. No caso, pagar os impostos é a contribuição mínima esperada de quem ganha mais do que o necessário.

Ao contrário de um absenteísta, L.R. não vota porque leva o voto a sério. Para estabelecer a legitimidade das urnas, não lhe basta que a escolha do eleitor seja secreta e livre. Ele propõe que, para votar, seja obrigatório pertencer concretamente à comunidade. Por que alguém se pronunciaria sobre o futuro de nossa comunidade, se ele não está disposto a dar sua contribuição para esse futuro? É o espírito do discurso de posse de J.F. Kennedy, em 1961: "Não pergunte o que o país pode fazer por você, pergunte o que você pode fazer pelo o país".

Que ele tenha razão ou não, L.R. tem toda a minha simpatia. Mas, depois de escutar suas reflexões, voltei para casa preocupado. Pensava numa outra conversa, três dias antes, em São Paulo, com um comerciante dos Jardins, que é uma presença amigável perto de minha casa.
O comerciante queixava-se de que, nos 20 anos durante os quais conseguiu manter sua loja, ele não se tornou rico: ainda batalha no fim do mês e culpa o governo por isso. Está na hora de mudar: quem sabe um governo completamente outro permita, enfim, que ele prospere como acha que merece. O poder central é o culpado por ele não ter alcançado seus sonhos, e o poder central também é a solução.

No começo, há um ato de fé num sistema de recompensas de tipo divino: trabalhei 20 anos e mereço, pouco importa considerar se escolhi o produto certo ou se soube competir com a concorrência. No fim, outro ato de fé: a esperança é depositada no governo, como se ele fosse não apenas o representante de nossas vontades mas uma entidade divina, operando por milagres.
É a herança do Brasil colônia: o governo não somos nós, não emana de nós e não nos representa.

É Lisboa, que não se confunde nem um pouco com nossa comunidade. Lisboa, Brasília ou Washington são responsáveis por nossos males. Roubam de nós e, portanto, na hora da dificuldade, têm o dever de nos ajudar. Nós não lhes devemos nada: são elas que nos devem. Outra herança do sonho colonial: se alguém não prospera, a culpa é do governo. No paraíso terrestre, se as plantas deixam de crescer, não é por falta de adubo ou pelo pouco cuidado dos homens: é sempre por maldade de uma divindade invejosa. Quem sabe uma nova divindade seja mais indulgente conosco?

Durante a conversa, uma amiga entrou na loja e o papo continuou, animado, entre a amiga, serrista, e o comerciante, lulista pelas razões mencionadas. A amiga entrara na loja para escolher um presente. Comprou e, receosa de que o presenteado não gostasse, pediu a nota fiscal, para que, eventualmente, a mercadoria pudesse ser trocada. O comerciante (brincando, mas, como se diz em música, "non troppo") declarou: "Nota fiscal, com este governo que está aí, eu não dou. Talvez se o PT ganhar".

De novo, nosso arcaísmo. A revolução burguesa ainda não trouxe seus melhores frutos: muitos, não necessariamente entre os mais pobres, têm (temos) com o governo central, seja qual for, uma relação não de cidadãos, mas de súditos. A experiência de pagar impostos confunde-se com aquela dos vassalos, quando pagavam tributos ao senhor ou com a dos colonos, obrigados a enriquecer a potência colonial que os despachou para a nova terra.

Nesse espírito, sonegar é glória, quase um ato de resistência. Presumimos, com desconfiança historicamente justificada, que os governantes estejam sempre contra nós: por definição, representantes de um poder estrangeiro. Trocar de governo, por consequência, não significa querer uma mudança da sociedade e de nós mesmos: é mais como chamar, sei lá, a Inglaterra para que nos tire a França das costas para que possamos, portanto, seguir cuidando de nossos negócios e interesses particulares.

Se os eleitores de domingo forem, em sua maioria, como o comerciante dos Jardins, tão parecido com todos nós, Deus proteja o próximo governo. Se forem como L.R., não precisaremos de proteção divina. O diabo é que logo L.R. não votou.

17 outubro 2002

Seis razões para votar em Enéas

Enéas Carneiro foi eleito deputado federal por São Paulo com quase 1,6 milhão de votos. Para entender melhor o porquê de seu sucesso, consultei vários eleitores que votaram nele. As respostas que ouvi foram de seis tipos.

1) "Enéas vai encher o saco deles, lá em Brasília." Entende-se: Enéas não é um político. Vai para Brasília como ia para Washington o mr. Smith do filme de Frank Capra ("Mr. Smith Goes to Washington", traduzido misteriosamente para "A Mulher Faz o Homem"). Cidadão comum honesto e idealista como Smith, Enéas enfrentará o sistema político corrupto.

Sonhamos com uma democracia em que os bairros e as vilas escolheriam um de seus membros, que aceitaria o mandato a contragosto, por dever cívico. Nesse sonho, nossos representantes se dedicariam à política temporariamente e por necessidades específicas (um projeto, uma missão). Desconfiamos da política como carreira ou como ambição, e Enéas é o porta-voz de nosso desgosto com os políticos profissionais.

2) "Ele não tem o rabo preso" e "ele não tem papas na língua". Enéas grita e ataca: sua fúria não poupará suscetibilidades. Ele ousará bater em qualquer um, doa a quem doer. É homem adamantino, inteiro, que não aceita negociatas nem alianças duvidosas. Só tem compromisso com a causa fundamental: a da nação.

Nisso ele não é apenas diferente dos políticos tradicionais. Ele representa também o contrário da inevitável covardia de nossos compromissos cotidianos. Votando nele, resgatamos os sapos que engolimos a cada dia. "Não posso mandar meu chefe ou meu tio à p.q.p.? Voto no Enéas. Ele é minha coragem."

3) "Enéas não tenta ser bonito." Ele é o oposto do galã. Aprendemos, eventualmente, que ele pinta a barba, mas pouco importa: ele está acima das frescuras. Nenhum Duda Mendonça apara seus pêlos.

Votando nele, compensamos nossa frustração com as inevitáveis imperfeições de nossa própria imagem. O voto é uma declaração contra o culto das aparências, que sempre enganam. "Detesto o meu próprio "look'? Voto no Enéas, o candidato para quem o "look" não importa. De repente, a imperfeição do meu semblante prova que, como Enéas, eu não engano ninguém: somos autênticos."

4) "Enéas é inteligente." Ninguém conhece bem as idéias de Enéas. Só se constata que ele está indignado. Ora, a indignação é a forma mais barata de inteligência: ela substitui a complexidade pela irritação dos humores. Ao mesmo tempo, sabe-se que Enéas é cardiologista. Dedução: se ele é doutor e tem esporros no lugar das idéias, isso prova que os esporros (os meus, por exemplo) podem ser inteligentes.

Em suma, a indignação é validada como uma maneira de pensar a realidade. É uma receita tradicional da oratória política: o bom orador tem credibilidade suficiente para oferecer esporros em vez de idéias e, assim, convencer seus ouvintes de que, quando eles estrilam, pensam.

5) "Com Enéas não tem conversa." Salvo loucuras um tanto suicidas, a margem de manobra de quem assumirá o poder depois destas eleições será pequena. O contexto internacional e o momento limitam nossas esperanças.

Enéas cura essa impotência: ele nos sugere que tudo o que acontece é efeito de inimigos identificáveis que conspiram contra a gente. O contexto e o momento escondem um complô. Portanto a complexidade do mundo é uma desculpa com a qual não queremos papo: ela não freará a nossa ação.

6) "Ele vai denunciar sem piedade." Enéas não tem medo de designar seus (nossos) inimigos. Seu espírito não é intimidado por empatias espontâneas que sempre sugerem clemência. Ou seja, na hora de acusar invasores e traidores, ele não vacilará, porque não reconhece em si nenhum dos vícios dos culpados. Se pode jogar facilmente a primeira pedra, é porque deve estar sem pecado.
Identificados com Enéas, podemos acreditar que nossos inimigos, por exemplo os corruptos que vendem a nação, sejam radicalmente diferentes de nós. Não teremos medo de apontar o dedo, porque estaremos sem manchas. O sonegador despejará sua raiva sobre a malversação empreendida pelos poderosos, esquecendo o que ele tem em comum com eles. O usureiro bradará contra os juros abusivos dos bancos. O aproveitador, o pequeno corruptor, o fura-fila, o comerciante que não imprime nota fiscal poderão fazer-se paladinos da legalidade.

Enéas redime nossa capacidade de acusar e condenar. Nas suas palavras, o acusado torna-se absolutamente outro, e podemos, por um instante, desconhecer a nós mesmos, ou seja, desconhecer o que há em nós que nos acomuna com os culpados. É um descanso: a acusação feita aos outros nos exime da tarefa de transformar a nós mesmos.

Conclusão: com Enéas, os ideais nos animam, a pureza nos sustenta, somos sinceros porque não somos bonitos, e nossa raiva é inteligente. Também, com Enéas, não cairemos no conto do vigário da complexidade do mundo, mas iremos direto para a garganta do mal. E poderemos desconhecer que somos, todos e sempre, um pouco parecidos com nossos inimigos. Que é que pode haver de melhor?

26 setembro 2002

Instantâneos eleitorais

1) Liberalismo
O liberalismo promoveu uma idéia curiosa: para fazer a felicidade de todos (ou, ao menos, da maioria), não seria necessário decidir qual é o bem comum e, logo, impor aos cidadãos que se esforçassem para realizá-lo. Seria suficiente que cada um se preocupasse com seus interesses e seu bem-estar. Essa atitude espontânea garantiria o melhor mundo possível para todos. Afinal, nenhum malandro seria burro (não é?) a ponto de perseguir seu interesse particular de maneira excessiva, pois isso comprometeria o bem-estar dos outros e produziria conflitos que reverteriam contra o suposto malandro.

Ora, o liberalismo, aparentemente, pegou feio. Não paro de encontrar pessoas convencidas de que, cuidando só de seus interesses, elas, no mínimo, não fazem mal a ninguém.

Converso com M., que dirige o táxi que me leva a Guarulhos. Falamos das perspectivas políticas. Ele está indignado com a corrupção das altas e das baixas esferas da política, convencido de que, sem ladrões, o país avançaria e resolveríamos nossos problemas. Concordo, mas aponto que, mesmo calculando generosamente, o dinheiro que some na corrupção não seria suficiente para mudar a cara do Brasil. Sem dúvida, deve ser bem inferior ao dinheiro que o governo deixa de arrecadar por causa da sonegação banal: rendas não declaradas, notas fiscais que só aparecem sob pedido e por aí vai.

M. aceita essa idéia com gosto e lança-se numa diatribe contra os sonegadores, inimigos do povo brasileiro tanto quanto os corruptos. Pergunto a M. quanto ele paga de Imposto de Renda. Ganho a famosa resposta: "Não adianta pagar, porque nada volta para a gente". Alego que não adianta esperar que algo volte, se a gente não paga.

A conversa pára. Depois de um silêncio perplexo, M. proclama que, de qualquer forma, se os Estados Unidos gastassem menos em armamentos, se não insistissem em querer ser os mais fortes do mundo (intenção explícita da doutrina Bush), aí eles teriam dinheiro suficiente para ajudar todo o mundo e acabar com a fome e a miséria do planeta inteiro.

Não sei qual será a escolha eleitoral de M.. Em todo caso, ele votará convencido de que está se pronunciando contra a corrupção, a favor de mais justiça e de mais independência nacional.
Essa história tem três morais. Primeira: a democracia formal está forte; a concreta, nem tanto. Segunda: os espíritos são nobres, a carne segue fraca. Terceira: o nacionalismo brasileiro pode ser férvido, mas a experiência de uma comunidade de destino ainda está longe.

2) Imigrantes
Em Boston e Nova York, os brasileiros devidamente registrados votarão para presidente. A comunidade que vive nas duas cidades e em suas proximidades deve ser próxima de 500 mil. Desses, votarão, mais ou menos, 20 mil, o que já representa um sucesso das autoridades consulares. Afinal, muitos não têm documentos de imigração e preferem não se manifestar. Seu receio é sem fundamento, pois em nenhum caso o consulado brasileiro entregaria uma lista de cidadãos aos serviços americanos de imigração. Mas a desconfiança é compreensível.

A maioria dos imigrantes nos Estados Unidos votarão divididos entre dois sentimentos. Querem que o Brasil mude, rápida e substancialmente, nem tanto para eles voltarem (muitos já sabem que, se os EUA permitirem, ficarão para sempre ou quase), mas, por assim dizer, para o país tornar-se um lugar de onde não teriam saído. Votarão, sem ressentimento, para que exista um Brasil de onde não teriam viajado. Pela urgência desse desejo de mudança, a maioria dos imigrantes votaria em Lula.

Mas os Estados Unidos são, para eles, o modelo de um lugar onde se sentiram não apenas recompensados por salários mais justos, mas reconhecidos como cidadãos. Paradoxo: às vezes, sentiram-se mais em casa estando nos EUA sem papéis do que nas margens maltratadas da sociedade brasileira. Como muitos outros imigrantes antes deles, os brasileiros nos Estados Unidos já são, aos poucos, brasileiro-americanos. Muitos lêem, perplexos, nos jornais on-line, a suficiência do anti-americanismo nacional. Parece-lhes uma segunda traição: depois de tê-los expulsado, o Brasil condena o lugar para onde foram.

3) Sem garantia
Discuto eleições com amigos. Alguém declara, firme: o que importa é saber qual é o candidato dos trabalhadores e dos deserdados e qual é o candidato dos abastados e poderosos. Implícito: uma vez isso decidido, a escolha moral será simples, estaremos, como na letra de "Guantanamera", "con los pobres de la tierra".

Sinto nostalgia dos tempos em que a resposta a essas perguntas devia ser, além de clara, decisiva. A segunda metade do século 20, aos poucos, nos privou desse conforto.

Coitados de nós, modernos. Foi um esforço de séculos entender que o poder, em si, não constitui uma garantia moral: o poderoso pode ter a espada na mão, mas nem por isso é dono do bem. Agora, à força de totalitarismos populares e ditaduras populistas, descobrimos que a qualidade de oprimido e de explorado tampouco constitui, em si, uma garantia moral.

19 setembro 2002

O sorriso de Fernandinho Beira-Mar

Fernandinho Beira-Mar está sorrindo triunfante. Paira no ar sua frase conclusiva, depois do assassinato de seus rivais, no meio de um presídio de segurança máxima: "Tá dominado, tá tudo dominado".

Aviso: ele e seus semelhantes não vão parar de sorrir tão cedo. O narcotráfico continuará presente e influente em nossa sociedade. Para ter uma idéia de seu ciclo econômico, de suas cumplicidades e de suas parcerias políticas, leia o pequeno livro de Mário Magalhães, "O Narcotráfico". Logo, seguindo a observação de Gilberto Dimenstein na Folha de domingo, considere nossa massa de jovens desempregados ou subempregados: não faltam os voluntários baratos para o exército dos vários Beira-Mar.

Também não faltarão clientes. Os psicanalistas e os psicólogos constatam há tempos que existe uma relação direta entre a sociedade de consumo e o uso de drogas. Esperamos que a felicidade venha dos objetos que consumimos, mas descobrimos repetidamente que não é bem assim: nenhum objeto de consumo é conclusivo. Ao contrário, cada objeto nos remete ao seguinte, como uma bebida que aumentasse a sede. A droga parece prometer uma satisfação final: graças a ela, dispensaremos todos os outros objetos -seu consumo nos apaziguará, enfim. De fato, ela apenas transforma a frustração consumista banal numa privação dolorosa, mas que tem a vantagem de ser unívoca: o drogado, ao menos, sabe o que lhe falta.

Há mais um traço de nossa cultura que garante o bom humor dos Fernandinhos Beira-Mar do mundo inteiro.

Em Nova York, conheci jovens de subúrbios luxuosos que, à noite, percorriam as ruas escuras do Bronx à procura de uma boca de tráfico. E alunos das melhores escolas particulares da cidade, que subiam até a rua 145, no Harlem, e penetravam em prédios assombrados à procura de uma pedra de crack. Conheci jovens do bairro 16, em Paris, que, atrás de haxixe, se perdiam na desolação dos complexos habitacionais mais violentos e racialmente discriminados. Outros, sem deixar o centro da cidade, embrenhavam-se nos meandros da estação do metrô Châtelet, misturando-se às gangues de adolescentes de origem norte-africana. Conheci jovens da zona sul do Rio de Janeiro ou da Barra que subiam regularmente aos morros à procura de coca ou de fumo. Assim como conheci jovens paulistanos de classe média que, à noite, um gorro de lã enfiado na cabeça, erravam ao redor da estação da Luz.

Nenhum deles estava querendo só um baseado, uma pedra ou um papelote. Procuravam também a proximidade com os fornecedores. A viagem para as bocas brabas é uma parte essencial do jogo: a droga vale mais e, quem sabe, funcione melhor, quando é distribuída como uma partícula de marginalidade.

Os "mauricinhos" nacionais, americanos e europeus encontram na miséria e na exclusão dos pequenos traficantes um ideal. Muitos adotam as vestimentas, o estilo, a maneira de caminhar, os gestos e as gírias malandras dos fornecedores de droga.

Os Fernandinhos Beira-Mar do mundo podem sorrir. Eles gozam, com efeito, de um extraordinário poder. Não só a droga é um objeto adequado à sede de consumo, mas a marginalidade de seus difusores faz sonhar os filhos da classe média.

Deve ser uma experiência enlouquecedora: sentir a falta de tudo ou de quase (da dignidade, de uma família, do conforto, do amparo, dos afetos etc.) e encontrar o olhar lânguido dos filhos dos donos do pedaço. Se alguns outros supõem que eu goze de poderes e prazeres desmedidos, quero confirmar sua suposição: encherei o céu de balas e iluminarei a noite queimando corpos.
Mas esse triunfo é para a câmara da imprensa. Os soldadinhos do tráfico conhecem sua própria miséria. Nas horas vagas, eles sonham com o mesmo conforto e os mesmos afetos que, para os "mauricinhos", manifestam o conformismo "desprezível" de seu mundo: a rotina do estudo e do trabalho, os sonhos enlatados, a sabedoria rançosa dos pais.

Em suma, o morro sonha com a praia e a praia sonha com o morro. Para todos, a vida está fora do eixo, sempre alhures. Beira-Mar tem razão: "Tá tudo dominado" -não por ele, mas pela insatisfação de todos com seu destino, que é a condição básica do funcionamento e da expansão de nossa sociedade.

Nos últimos dias, no Espaço Unibanco de Cinema, em São Paulo, discutiu-se sobre o glamour que o cinema pode conferir à miséria e à violência. Pretexto mais próximo: "Cidade de Deus", o filme (admirável) de Fernando Meirelles. Questão: será que as imagens cinematográficas da marginalidade extraviam os adolescentes? A coisa é mais complexa. Os rebentos do privilégio podem sonhar com a marginalidade porque constatam o seguinte: os adultos que louvam e querem impor a tranquilidade ordeira da existência, de fato, não sonham com a vida que eles vivem e promovem. Se, na noite, os filhos tomam o caminho do morro, dos subúrbios ou do Harlem, é porque os pais não se deleitam com a calma do lar, mas ficam "zappeando" à procura de um filme de bandidos para devanear felizes antes de dormir.

12 setembro 2002

Lembrancinhas do dia 11 de setembro

Ao redor da Times Square, em Nova York, as lojas para turistas vendem camisetas, abrigos, porta-chaves, porta-retratos, enfeites, canetinhas e por aí vai. Lembram as lojas de importados de São Paulo, só que muito maiores e monotemáticas: toda a quinquilharia é para evocar Nova York.
No último ano, os turistas, sobretudo os americanos de outros Estados, vieram para Nova York por solidariedade com a cidade ferida. E a mercadoria teve de adaptar-se.

Numa loja da Broadway com a 47, encontro dois aposentados de Phoenix, Arizona. Juntos contemplamos um rolo de papel higiênico fantasia: cada pedaço traz a cara de Bin Laden e a sugestão: "Wipe out terrorism" (duplo sentido: "limpe o terrorismo" e "acabe com o terrorismo"). Ao lado de Bin Laden, uma novidade: o papel higiênico de Saddam Hussein, com a inscrição : "Wipe your crack with the guy from Iraq" (algo como: "Limpe-se a raque com o cara do Iraque"). Cada rolo sai por quase US$ 7. "Meio caro", observa um de meus interlocutores, " e não estou seguro de querer esse cara tão perto de mim..." "E se ele morder?", brinca o outro. Os rolos ficam na estante. O dono da loja confirma: eles fazem rir, mas vendem pouco, como vende pouco um jogo de dardos com a cara de Bin Laden.

O que funciona são as reproduções das torres gêmeas -pintadas, fotografadas, estampadas nas camisetas ou, então, em bronze, cristal ou plástico. Existe um modelo que é um monumento: as torres culminam em dois bustos, um bombeiro e um policial.

Também têm sucesso as estatuetas comemorativas: bombeiros e policiais em poses que se tornaram famosas pelas capas de revistas e jornais.

Em suma, as lembranças da Nova York bombardeada que os turistas preferem não são diferentes dos objetos que essas lojas sempre venderam (o táxi amarelo, a estátua da Liberdade, o Empire State Building, com ou sem King Kong etc.).

A feiúra é a mesma e é óbvia para qualquer um. Os aposentados do Arizona concordam: as coisas variam de não muito bonitas a detestáveis. Mas eles compram, para presente e para eles mesmos, um quadro, um porta-chave, um centro de mesa: todos reproduções das torres. Claro que não fazem isso para se lembrarem da viagem. Assim como, em geral, não é para lembrar-se das férias que as pessoas adquirem essa bugiganga. Para que é, então?

A resposta foi-me oferecida por um objeto. Eis como. Tornou-se famosa a imagem de um pequeno grupo de bombeiros hasteando a bandeira americana no meio dos escombros, pois o episódio evocava a imagem dos fuzileiros navais hasteando a bandeira na ilha de Iwo Jima durante a Segunda Guerra Mundial.

Ora, encontrei esse grupo de bombeiros numa daquelas esferas transparentes que, sacudidas, produzem uma nevasca. Esse tipo de bola de vidro existe para todos os monumentos. Entendo que alguém queira lembrar-se das torres, por exemplo, em pleno inverno, no silêncio da neve. Mas o hasteamento da bandeira pelos bombeiros é um acontecimento, não um monumento. Aconteceu no 12 de setembro: não nevava e, na história de Nova York, nunca nevou num 12 de setembro.

Meus interlocutores do Arizona defenderam o objeto: "É agradável de ter na mão" e "Gosto de fazer nevar". Entendo, é uma consolação: não pudemos prevenir o ataque, não sei se evitaremos mais uma guerra, mas a bola de vidro nos confere, ao menos, o controle climático.

Talvez seja essa a razão de ser de toda a bugiganga de recordação. Seu propósito não é embelezar nossas residências nem lembrar nossas viagens. Seu propósito é a domesticação do mundo.

Nem todos os turistas viajam para negar a intolerável alteridade do mundo. Alguns, ao contrário, viajam para conhecê-la e reconhecê-la. Mas todos parecemos voltar de viagem com objetos encarregados de conciliar a estranheza dos lugares visitados com a familiaridade de nossa casa e de nossa vida. A concha encontrada no fundo do mar (e que agora está na sala) nos encoraja a não fugir para o Caribe: podemos esperar até o próximo verão. O pedaço do Muro de Berlim nos assegura que, apesar do conformismo de nossos dias, fazemos parte do rebuliço social e político do mundo: não precisa procurar um novo Guevara para acompanhá-lo numa desconfortável Bolívia.

Antes de 11 de setembro, as lembrancinhas de Nova York serviam para domesticar a bagunça e a sedução da cidade. Um táxi amarelo de porcelana era como um troféu de caça: um jeito de acreditar que seria sempre possível levantar o braço e dar uma volta em Manhattan, evitando o perigo de que o táxi nos atropele ou de que fiquemos nas mãos de um motorista maluco que não entende nenhuma língua conhecida por nós.

As lembrancinhas do dia 11 de setembro tentam domesticar uma alteridade mais inquietante. As torres estão na centro da mesa, Osama está na privada, e a gente decide se neva ou não sobre os bombeiros. Moral: estivemos lá, e está tudo sob controle. Quem dera.

05 setembro 2002

O álbum de fotografias e a solidão

Estréia amanhã, no Brasil, "Retratos de uma Obsessão", de Mark Romanek, em que Robin Williams é Sy (pronuncia-se sái), o gerente do estande de fotografia de um grande supermercado.

Há anos, a família Yorkin leva para Sy suas fotos de férias, de festas e de outros momentos memoráveis. Ele revelou e, portanto, viu o pequeno Jakob crescer, de aniversário em aniversário, assim como revelou e viu, ano após ano, os beijos e os gestos amorosos dos pais de Jakob.

Sy imprime e guarda cópia extra de cada rolo de filme da família Yorkin. Ele quer um pedaço do mundo de carinhos e alegria que aparece, na verdade, nos álbuns de quase todas as famílias. Sy não é louco. Ele apenas não tem álbum próprio e tenta existir no álbum dos outros. Por que não seria um tio da família Yorkin? Afinal, ele tem as mesmas lembranças, pois conhece todas as fotos.

Sy não tem amigos nem família. Depois do trabalho, come sozinho num restaurante e volta para uma casa vazia e silenciosa. Aqui, ele olha um pouco de televisão (que pode funcionar como uma espécie de álbum de família coletivo) e contempla as fotos da família Yorkin, da qual ele, em seus devaneios, é um membro adotivo. Todos justificamos nossa vida pretendendo pertencer a uma nação, a uma religião, a um bairro, a uma torcida ou aos amigos da padaria, grupos cujos membros, em geral, mal se lembram de nossa existência. Figuramos (ou imaginamos figurar) felizes na foto-recordação da saída da igreja, do desfile da festa nacional ou da volta do estádio. Por que Sy não faria parte dos Yorkins, da mesma forma? Nada demais nisso.

O problema é outro: será que os Yorkins seriam uma família se eles deixassem cair o sorriso que é de praxe no álbum de fotografias? Sy descobre inesperadamente (e a coisa lhe é intolerável) que, atrás das fotografias dos Yorkins, se esconde uma realidade imperfeita. As imagens mentem.

É sempre assim: nossos álbuns de fotografias colecionam momentos ternos e engraçados que levamos a efeito de propósito, com o intento de os registrar e os incluir na nossa história. Nas festas de família, a câmara instiga convidados e comensais ao sorriso ou ao riso: todos são transformados em farsantes e obrigados a representar no presente a imagem do que será seu passado feliz, aquele tempo em que "olha só, lembra como a gente estava bem?".

Claro, a vida familiar é uma empresa difícil: é preciso (ou recomendável) constituir alguma unidade a partir de desejos e esperanças que discordam. Nos separam os egoísmos ordinários, as fantasias singulares, as vontades irrenunciáveis de aventuras (sempre decepcionantes). Um auxílio contra esse descompasso é o álbum de fotografias, em que os membros da família idealizam sua convivência, encenando e acumulando instantâneos de felicidade conjugal e familiar. Por fictícias que sejam, essas imagens produzidas constituem a única memória comum. É fácil verificar sua importância quando, nas separações ou na divisão das heranças, chega a hora de dividir as fotos. Naturalmente, todos os álbuns se parecem: poucos casais se dão o trabalho de inventar uma ficção original. A maioria atua segundo roteiros que já existem: contentam-se em sorrir na hora do clique.

A maior solidão, desse ponto de vista, é a ausência de um parceiro com quem bater fotos e compor um álbum. Estou sozinho se não encontro ninguém disposto a fazer comigo as caretas necessárias para que nossa foto proclame ao mundo e ao futuro: "Olhem para nós, aqui, felizes".
Sy está sozinho. Por que sua fantasia preferida é um álbum de fotografias de família? Não poderia, por exemplo, ter um desejo sexual um pouco torto, com o qual divertir-se? Não poderia frequentar clubecos de striptease ou dedicar-se à sinuca? O fato é que vivemos numa época de extrema valorização do casamento e da família. Os solitários, para nós, são fracassados relacionais. A vida solteira pode ter graça televisiva (como em "Seinfeld" ou "Friends"), mas apenas como aspiração, mais ou menos falida, a compor uma relação. Os conselhos aos celibatários são sempre conselhos para encontrar alguém com quem inaugurar, "enfim", um álbum.

Por causa dessa valorização quase exclusiva da vida familiar, os casais não sabem relacionar-se com os solitários. Quando compomos um casal e temos os álbuns de nossas fotos na estante da sala (sem contar as que enquadramos e disseminamos pela casa), achamos fácil lidar com outros casais. É só tirar fotos a quatro (ou outros múltiplos pares) e prever duplicata para os álbuns de todos. Mas os celibatários apresentam dupla ameaça. Ou estão procurando parceiro, e ninguém quer um predador dentro de casa, ou estão bem assim, sozinhos, e ninguém quer saber de uma vida que pareça contente e seja diferente daquela que imortalizamos esforçadamente em nossos álbuns.

É uma pena. Num outro mundo, os Yorkins poderiam ter convidado Sy para ser seu amigo e tio de Jakob. A vida e o álbum da família, quem sabe, se tornassem mais interessantes.

29 agosto 2002

Por que não gosto de eleições



Recentemente (15/8), a revista "The Economist" promoveu e publicou uma pesquisa para saber se os latino-americanos, nestes tempos difíceis, continuam acreditando na democracia. Pergunta: "A democracia é preferível a qualquer outra forma de governo?".

O Brasil foi um dos países em que os entrevistados mais mudaram de opinião nos últimos anos. Em 1996, 50% dos brasileiros pensavam que a democracia fosse a melhor forma de governo. Em 2002, só 37% continuam pensando da mesma maneira. Os que abandonaram suas convicções democráticas (13%) querem o quê? Será que são nostálgicos das rédeas curtas da ditadura?
A pesquisa colocava uma segunda pergunta: "Em determinadas circunstâncias, um governo autoritário pode ser preferível a um governo democrático?". Seria lógico pensar assim: os sujeitos que não acreditam mais nas virtudes exclusivas da democracia devem ser tentados por uma intervenção autoritária. É o que acontece, por exemplo, com os paraguaios, que também mudaram de opinião em matéria de democracia. Em 96, 59% acreditavam na democracia; em 2002, apenas 45% continuam pensando assim. No mesmo período, a porcentagem de paraguaios dispostos a aceitar um governo autoritário cresceu substancialmente. Ou seja, quem não acredita mais na democracia sonha com a volta de um regime militar. Faz sentido.

Pois é, os brasileiros deram uma resposta para atrapalhar o sono dos pesquisadores. Entre 1996 e hoje, como já disse, 13% deixaram de acreditar na democracia como melhor sistema de governo. Ora, o número dos que aceitariam uma ditadura no lugar da democracia não aumentou de maneira parecida, mas -surpresa- diminuiu 9%. Ou seja, no Brasil, há menos gente para acreditar na democracia, mas também menos gente para esperar que os militares resolvam a situação.

Aplausos para os brasileiros, que não se deixaram capturar por uma alternativa forçada. Entendo assim a posição dos entrevistados: a democracia não respondeu a nossas esperanças básicas, mas nem por isso entregaríamos o país ao despotismo. Sobretudo, não aceitamos uma alternativa excludente, do tipo: "De um lado, há stalinistas, fascistas ou militares e, do outro, a democracia. Olhe, escolhe e pule". Os brasileiros pareceram responder: não pulo coisa nenhuma, a escolha não é essa.

Minha leitura (otimista) da pesquisa do "Economist" é a seguinte: estamos cansados de ver o mundo em preto-e-branco, com contraste máximo.

É o mesmo cansaço que sinto durante as eleições. Com raríssimas exceções, os processos eleitorais que presenciei (na Itália, na Suíça, na França, no Brasil e nos EUA) sempre foram momentos tristes da vida democrática.

Gosto da democracia em seu exercício cotidiano e concreto. Prezo a discussão numa associação de moradores de vila para decidir se é melhor pedir mais postes de luz ou o asfalto na rua central. Aprecio uma reunião de condomínio em que uma senhora idosa e sozinha defende seu cachorrinho contra a mãe de uma criança asmática e alérgica aos pêlos de animais. Em ambos os casos, sinto carinho pelo esforço de inventar formas possíveis de convivência.

Ultrapassamos o tamanho das comunas medievais e hoje um governo democrático só pode ser representativo: as eleições são inevitáveis. Mas não me digam que elas são a melhor expressão da democracia.

A retórica eleitoral parece implicar inelutavelmente duas formas de desrespeito, paradoxais por serem ambas inimigas da invenção democrática.

Há o desrespeito aos eleitores, que é implícito na simplificação sistemática da realidade. Tanto as promessas quanto a crítica às promessas dos adversários se alimentam numa insultante infantilização dos votantes: "Nós temos razão, o outro está errado; solucionaremos tudo, não há dúvidas nem complexidade; entusiasmem-se".

E há o desrespeito recíproco entre os candidatos. As reuniões de moradores de vila ou de condomínio não poderiam funcionar se os participantes se tratassem como candidatos a um mesmo cargo eleitoral. Paradoxo: o processo eleitoral parece ser o contra-exemplo da humildade necessária para o exercício da democracia que importa e que deveria regrar as relações básicas entre cidadãos: a democracia concreta.

Em 1974, na França, Mitterrand, socialista, concorria à Presidência com Giscard d'Estaing, centrista. Num debate decisivo, Mitterrand falava como se ele fosse o único a enternecer-se ante o destino de pobres e deserdados. Giscard retrucou: "Senhor Mitterrand, você não detém o monopólio do coração". Cansado de simplificações, o eleitorado gostou, e Mitterrand perdeu.

Em 1981, a confrontação repetiu-se. Dessa vez, era Giscard que não parava de apontar em Mitterrand o homem da aventura, do risco: caso ele ganhasse, a Revolução de Outubro estaria às portas de Paris. Cansado de simplificações, o eleitorado não gostou, e Giscard perdeu.

Quem sabe os eleitores do mundo inteiro estejam, há tempos, cansados da retórica eleitoral e a fim de ouvir a verdade sobre como é difícil governar, ou seja, a fim de serem tratados como adultos.

22 agosto 2002

As eleições e a famosa falta de debate de fundo

Cada vez que, numa roda de amigos, se fala das eleições, alguém deplora que a campanha não seja uma disputa entre idéias e programas.

A reclamação pela falta de debate de fundo não é a manha de um amigo chato. Todos, em um momento ou outro, desempenhamos esse papel inevitavelmente. Parece uma regra: nas campanhas eleitorais, lamentamos a ausência de um enfrentamento construtivo entre os projetos de governo e desprezamos a preponderância da atenção dada às pessoas dos candidatos.

Ora, os projetos de política pública dos principais pretendentes podem não ser causa de grandes entusiasmos, mas são conhecidos e publicados em livros e jornais. Aparentemente, poucos os lêem.

Quando um de seus amigos se queixar da falta de debate de fundo, lance uma discussão sobre os projetos de governo. Na maioria dos casos, você constatará que o amigo reclamante tem uma idéia muito vaga dos ditos projetos. E verá sua proposta de discussão ser aprovada por unanimidade, mas imediatamente esquecida. O papo voltará para o que todos adoram repetir: Ciro é irritado, Serra é antipático, Lula é grosso e Garotinho se faz de seráfico. Ou, então: Ciro é enérgico, Serra é uma pessoa séria, Lula é dos nossos e Garotinho é boa-pinta.
Em suma, esbravejamos contra o esvaziamento do debate político, mas estamos a fim de falar só dos candidatos.

Não é um efeito da cordialidade nacional, pela qual as pessoas contam mais que as idéias. Nas últimas eleições americanas, qualquer um que comparasse as propostas políticas de Al Gore com as de George W. Bush constataria que o primeiro defendia os interesses da classe média, e o segundo, os interesses da grande indústria. Mas Gore perdeu por ser "elitista" e Bush ganhou (mais ou menos) por ser "popular". Enfrentaram-se duas figuras, não dois planos de governo. E, no dizer de muitos, Bush foi favorecido por seus erros e suas trapalhadas - sinais de autenticidade.

Então, como perdemos o interesse pela política pública? "O Declínio do Homem Público", que Richard Sennett publicou em 1974, nos serve de guia para explicar a sensibilidade política contemporânea. Os anos 60 promoveram a idéia de que as verdadeiras revoluções devem acontecer dentro de nós. Para mudar o mundo, mude a si mesmo e não conte com o Congresso ou a Esplanada dos Ministérios. Tampouco conte com o partido, com a conquista do poder etc.
A intimidade foi valorizada como lugar onde era preciso resolver os conflitos mais urgentes e verdadeiros. Isso produziu um descrédito da política pública. Surgiram as perguntas: "Revolucionário, como trata sua companheira e suas crianças? O que sabe de si e de sua sexualidade?".

Hoje, escreve Sennett, "entendemos muito bem que o poder é uma questão de interesses nacionais e internacionais, entendemos o jogo entre as classes e entre os grupos étnicos, entendemos o conflito entre regiões e religiões. Mas não agimos segundo esse entendimento". Na hora de votar, por exemplo, não escolhemos planos de governo, mas personalidades. Como as escolhemos?

A importância atribuída à intimidade faz com que a autenticidade se torne um parâmetro. Gostamos de candidatos "autênticos", que mostram suas tripas. E isso vale seja qual for a qualidade das tripas, pois a autenticidade é um critério abstrato, que não garante nada. Um candidato descreve veridicamente as condições e as possibilidades do país: nós o acharemos sincero. No entanto preferiremos outro que se atrapalha na apresentação dos fatos, mas que nos revela sua intimidade e, portanto, parece mais autêntico.

Muitos homens políticos devem ter-se dado conta dessa mudança: desistem de dar prova de autocontrole, soltam as emoções e choram como crianças.

Para Sennett, é suicida o líder que declara: "Esqueçam minha vida privada, tudo o que precisam saber de mim é quais ações tomarei uma vez eleito". Desde os anos 60, a credibilidade de qualquer sujeito é função de sua capacidade de parecer autêntico. Não é diferente para um candidato: sua "credibilidade" não tem a ver com seu projeto político (veridicidade dos pressupostos, razoabilidade das propostas), mas com a capacidade de mostrar sua intimidade. Pois, para nos conquistar, ele deve mostrar-se autêntico.

De fato, na corrida em curso, até agora, os que parecem mais "autênticos" encabeçam as pesquisas. Dos olhos de Lula marejam as lágrimas na hora de evocar sua infância e as misérias do povo e, provavelmente, isso vale mais que o projeto de governo do PT. Ciro se irrita que nem a gente e é carinhoso com a Patrícia, e isso vale mais que os livros escritos com Mangabeira.

Enquanto isso, a campanha de Serra parece insistir na qualidade de sua atuação como ministro e na sua competência, como se as eleições fossem decididas apenas num debate em que os diferentes planos de governo seriam comparados e discutidos. Quanto a Garotinho, sua fé poderia valer como sinal de autenticidade, mas, para isso, deveria ser, no mínimo, mais atormentada.

15 agosto 2002

A psicologia forense, a origem do mal e a culpa dos outros

Desde o começo dos anos 90, nos EUA, há uma proliferação de romances cujos heróis são psicólogos ou psiquiatras forenses. Os leitores de histórias policiais conhecem os protagonistas clássicos: o detetive que leva e dá pauladas até que as coisas se esclareçam (estilo Mickey Spillane), o advogado de defesa à Perry Mason e o investigador que pensa e computa (uma tradição que vai dos contos de Edgar Poe até Nero Wolfe, passando por Sherlock Holmes). A eles acrescenta-se, hoje, uma nova figura: o "profiler", o clínico que lê no crime a dinâmica exclusiva de uma mente criminosa.

Graças a esses psicólogos forenses, na última década, a psicologia clínica tornou-se depositária da questão da origem do mal: é muita honra. Mas é também uma armadilha que funciona assim. Acho que entendo a angústia e a depressão porque já estive ansioso e triste alguma vez. Agora, o que é esquartejar e comer um pedaço de minha vítima? Isso não consigo vislumbrar. E gostaria que a psicologia me explicasse -não tanto para entender quanto para me exonerar. Os heróis da nova onda de romances policiais me dirão as razões pelas quais os monstros torturam, amputam, sangram e estupram. Com isso, confirmarão que eu não tenho nada a ver com isso.

Estamos no ápice da confiança concedida à psicologia clínica, que deve nos dizer de onde vem a maldade. Mas estamos também no ápice da negação do aporte mais inquietante da mesma psicologia, pelo qual, em princípio, não há loucura que seja completamente estrangeira ao homem normal. Ou seja, a psicologia diz que compartilhamos os mesmos monstros com o criminoso e o maluco, apenas somos mais hábeis no manuseio das rédeas. Mas, nos romances "psicopoliciais", o psicólogo forense, revelando a verdade oculta dos assassinos, proclama nossa inocência.

Há exceções a essa regra. Um psiquiatra forense (de verdade), Keith Ablow, escreveu três romances -"Compulsion", "Projection", "Denial", infelizmente ainda indisponíveis em português-, que poderiam servir de livros de texto de psicologia clínica. O herói é Frank Clevenger, um psiquiatra forense dramaticamente perturbado pelo vai-e-vem entre sua própria análise, as lembranças de sua infância e a interpretação das palavras e dos atos de suspeitos e criminosos. Clevenger, atormentado cocainômano e alcoólatra em recuperação, sabe que o mal é compreendido só por quem não hesita em olhar dentro de si.

Lembra o "Silêncio dos Inocentes"? É por ele mesmo ser canibal que o dr. Lecter, psiquiatra, pôde adivinhar quem era o monstro que Clarice estava procurando. Como todo verdadeiro clínico (forense ou não), ele se servia de sua loucura (que, no caso, era conspícua) para entender e interpretar.
Essa diferença entre os romances de Ablow e os outros não impede que todos promovam uma mesma idéia, que é hoje recorrente nas imagens populares do trabalho psicoterápico: trata-se da idéia de que o mal é reciclado. Ou seja, tanto o sofrimento neurótico quanto a violência desinibida e criminosa seriam os efeitos diretos de algum mal que nos foi feito.

Viva o "transtorno pós-traumático": seja qual for nosso jeito, ficamos assim por causa de um trauma. A mente é um livro-caixa, com entradas e saídas: atrás de cada sofrimento, estranheza ou malvadez, deve haver alguma ofensa passada. Nossos sintomas e nossas aberrações seriam compensações ou retribuições: os que foram pouco ofendidos sofrem da reminiscência da injúria passada e os que passaram por abusos violentos atuam com a crueldade da qual já foram vítimas. Fomos maltratados quando crianças. Por isso temos medo do escuro ou então cortamos a garganta da vizinha.

Ora, de tudo que aprendi em minha formação clínica, há uma regra que se verifica a cada vez: nossos males são efeitos de nossas interpretações (mais ou menos capengas) do que os outros fizeram conosco ou quiseram de nós. Não são consequências diretas das ações dos outros.

Por isso é possível mudar. Por isso o passado não constitui propriamente um destino: porque nunca somos apenas o efeito dos abusos sofridos. Em alguma medida, sempre decidimos o sentido e o alcance que atribuímos à violência da qual fomos vítimas. Somos, portanto, os artesãos de nossas reações: escolhemos a vingança violenta contra o mundo ou uma vida consagrada a lamber nossas feridas. Ou, ainda, a coragem de ir em frente.

Em matéria de psicologia clínica, vale um ditado que escutei pouco tempo atrás, no norte rural do Estado de Nova York. Diz assim: "Não há como arregaçar as mangas se você continua apontando seus dedos aos outros para culpá-los".

P.S.: Muitos "psicopoliciais" são acessíveis em português. Há os livros de James Patterson, cujo Alex Cross, doutor em psicologia, foi levado para o cinema por Morgan Freeman, em "Beijos que Matam" e em "Na Teia da Aranha". Há as histórias do psicólogo Alex Delaware, por Jonathan Kellerman, as de Alan Gregory, por Stephen White, e as de Lincoln Rhymes, por Jeffery Deaver. Boa leitura.

08 agosto 2002

Crise do mercado ou crise do sujeito?



Muitos dizem que a crise de Wall Street em 2001 e 2002 é um efeito da ganância. A Bolsa estaria caindo porque a conduta dos dirigentes de várias empresas (Enron, Worldcom, Tyco etc.) feriu a confiança do investidor. Se for assim, a dificuldade será resolvida logo: os desonestos irão para a cadeia, as auditorias futuras serão de verdade, e a classe média reinvestirá suas economias. Tudo voltará a ser como antes.

Minha previsão é um pouco diferente.

Desde o início do século 19, deixamos de calcular o valor social de cada um com base no lugar, na classe e na família em que nasceu. Para definir o valor de uma pessoa, suas riquezas começaram a contar mais que sua origem. Passamos de uma época que venerava o "ser" (nobre, burguês ou escravo) para uma época que venerava o "ter". A mudança foi democrática: afinal, era difícil escapar do destino que nos reservavam as diferenças de nascença (só à força de casamentos), mas, no breve espaço de uma vida, por ventura ou pelo trabalho, um indivíduo podia transformar seu status, se esse dependesse apenas de sua riqueza.

Uma sociedade organizada pelas diferenças de posses e bens não é necessariamente espalhafatosa. "Eu sou mais rico, mas me visto, moro e vou para a igreja como você, que trabalha em minha fábrica." O capitalismo começou desse jeito: com uma moral calvinista, sem simpatia por pompas e luxos. Não podia durar assim: para produzir mais bens e riquezas (e, portanto, um pouco de bem-estar para todos), era preciso crescer. E, se os abastados não consumirem de uma maneira vistosamente diferente, quem absorverá os frutos do trabalho? No fim do século 19, as riquezas tornaram-se conspícuas: diferenças de consumo, e não só de carteira.

Essa nova ostentação era o primórdio de uma mudança da subjetividade que seria exigida poucas décadas mais tarde, quando a época do "ter" entrou em crise, em 1929. Até então, numa exuberância parecida com a nossa nos anos 90, acreditava-se numa expansão ilimitada. Os ricos se tornariam mais ricos e mais numerosos. Graças a isso, todos trabalharíamos e produziríamos cada vez mais. Mas a coisa encalhou.

O esbanjamento dos endinheirados não era suficiente para motivar a máquina produtiva. A saída da crise, depois da imediata intervenção dos governos e da guerra, veio por uma transformação que se impôs nos anos 60 e deu seus frutos nos anos 80 e 90.

Dessa vez, passamos de uma sociedade organizada pelas diferenças de bens e posses para uma sociedade comandada pela aparência. Não se trata mais da necessidade de o rico mostrar sua riqueza. Parecer rico torna-se mais importante do que ser rico. Vale mais um pobretão chique do que um ricaço maltrapilho. Essa nova hierarquia, fundada nos sinais exteriores de "invejabilidade" mais do que de riqueza, abre possibilidades insuspeitadas de consumo e de crescimento. Pois, de repente, os pobres são instigados a consumir tão conspicuamente quanto os ricos. Por um instante, qualquer um de nós pode parecer-se com os ricos, usando um sabonete de R$ 10. Vale a pena comprar uma bolsa que nos custa uma semana de trabalho. É normal gastar em estilo mais do que em aluguel e comida.

Para a subjetividade da época do parecer, não devemos o que somos nem ao berço nem às posses, mas ao olhar dos outros. Outro avanço democrático, não é? A calça certa, um lenço, um corpo malhado ou siliconado permitem o acesso ao clube dos que parecem privilegiados, que é o que importa.

Estávamos nessa "festa" desde os anos 80. Aconteceu o previsível: a subjetividade dominante impôs seu feitio à sociedade inteira, inclusive à economia. Na época do "ter" (conspícuo ou não), valiam as empresas que produziam, acumulavam e trocavam riquezas reais. Na época do parecer, a economia também preferiu o parecer: valiam as empresas que "pareciam" ricas, ou seja, que produziam sobretudo sua própria imagem. Ser "cool" tornou-se uma estratégia empresarial. "O pessoal aqui trabalha de calça de brim, tem academia no escritório, e toma-se chá orgânico à vontade. Somos "cool", e isso prova o valor de nossa empresa, mesmo que a gente só perca dinheiro." Obviamente, num mundo em que parecer é mais importante do que ser, as ações da empresa fazem parte da fachada. Valorizá-las (mesmo por um embuste contábil) é mais importante do que aumentar a produtividade ou equilibrar balanços.

Essa bolha estourou. Talvez estoure também o tipo de subjetividade que foi a alma da bolha. Assim como 1929 anunciou o fim da época do "ter", 2001 e 2002 anunciariam o fim da época do "parecer".

Nesse caso, poderíamos esperar que a crise de hoje prometesse figuras novas da subjetividade. Em vez do yuppie de Wall Street, os jovens que se engajam no Peace Corps. Em vez dos elegantes e dos malhadíssimos que povoam nossos shopping centers, membros de ONGs. Depois da subjetividade do "ser", do "ter" e do "parecer", quem sabe, seja a hora de uma subjetividade do fazer e do fazer, se possível, as coisas certas.

Mas, provavelmente, estou sonhando.

01 agosto 2002

Sofrendo de doenças futuras o custo da detecção precoce

Uma empresa da Flórida chamada CATscan 2000 manda pelos EUA afora seus caminhões transformados em laboratórios: oferece tomografias computadorizadas do corpo inteiro por menos de US$ 600. É possível parcelar -não a conta, mas o corpo, que é divisível em três zonas.

Chamo o número da empresa: 1-87-RU-AT-RISK (1-87-será que você está em perigo?). Confirmam que não é necessária nenhuma prescrição médica. Só o dinheiro. Infelizmente, no momento, nenhum dos laboratórios está próximo de meu domicílio. Em geral, eles param nos estacionamentos das igrejas de pequenas aglomerações. Segundo uma reportagem do "New York Times" de 27 de maio, uma tomografia grátis é oferecida em troca ao pároco ou ao pastor. Os caminhões lembram os vendedores ambulantes do elixir de longa vida, que, no passado, iam de feira em feira. O letreiro diz: "Faça sua tomografia. A detecção precoce do câncer e da doença cardíaca pode significar a cura!". Em cada caminhão, há um técnico e um recepcionista que marca horário e cobra. Os resultados são interpretados mais tarde por um radiologista e chegam pelo correio. Claro, nenhum seguro de saúde reembolsa o custo da tomografia, mas, se um problema for detectado, o paciente levará o exame a seu médico, que agirá em consequência.

Nas grandes cidades há laboratórios menos espetaculares que os caminhões, mas que também efetuam tomografias computadorizadas a pedido do cliente, sem uma indicação e uma razão médica específicas.

Essas práticas duvidosas são apenas sintomas das expectativas do paciente de hoje. Ninguém acredita mais no silêncio dos órgãos como prova de seu bom funcionamento. Não vale a idéia de que a doença começaria com o desconforto, com a dor e com as queixas. Nossa relação com o corpo é paranóica: ele nos esconde coisas, faz-se de saudável, mas, no meio disso, é capaz de alimentar cânceres e outras porcarias.

Essa atitude corresponde ao espírito da época: o futuro é nosso tempo preferido. Nossa capacidade de mudar, de progredir e de crescer importa mais do que o peso do passado. Nossas potencialidades nos definem muito mais do que nosso estado presente. Do mesmo jeito, a experiência atual do corpo não basta para definir a saúde, como seria o caso numa cultura que privilegiasse o presente. A saúde que nos importa é a futura.

A medicina, portanto, deve sobretudo prevenir (ou seja, prescrever condutas que favoreçam a saúde) e detectar precocemente (ou seja, espreitar os primeiríssimos sinais das doenças, para esmagá-las na hora). A partir dos 40 anos, pessoas que se sentem perfeitamente saudáveis esperam a verdade sobre o estado de seu corpo de investigações clínicas que são hoje, paradoxalmente, a rotina da vida saudável: mamografias, papanicolaous, toques variados, exames de PSA ou, no caso, tomografias computadorizadas do corpo inteiro.

Graças a isso, muitas vidas são salvas (no mínimo, prolongadas). Mas há um custo. Qual?
Quem leva suas economias para o caminhão da CATscan 2000 sonha com um check-up no estilo "Star Trek". Infelizmente, nossa realidade é menos hollywoodiana: talvez tenhamos um raio parecido com o da nave espacial Enterprise, mas não temos a mesma habilidade diagnóstica nem a mesma medicina.

Para cada vida salva, há casos em que aparecem lesões milimétricas que ninguém consegue interpretar com segurança ou nódulos tão ínfimos que seu sentido é incerto. A vontade de pegar as coisas a tempo não se traduz só em curas mais eficientes. Às vezes, a detecção precoce descobre anomalias que não autorizam a certeza de um plano de cura. É possível que essas anomalias não sejam prelúdio de nada ou, então, que anunciem o pior. Em geral, nesses casos, a medicina é honesta: confessa os limites de sua competência, descreve as perdas e os riscos acarretados pelo tratamento de lesões que poderiam ser inócuas e deixa os pacientes livres para decidir se tais microcalcificações do seio anunciam ou não um tumor ou se tal tecido suspeito da próstata crescerá ou seguirá dormindo. É uma escolha impossível: entre intervenções invalidantes que talvez sejam desnecessárias e uma abstenção pela qual o paciente talvez decrete sua morte. Milhões de pessoas circulam pelo mundo perguntando-se, como Sigourney Weaver depois do encontro com o monstro, se carregam ou não um "alien" no corpo.

Na tentativa de definir pelo futuro não só nossa vida, mas também nossa saúde, descobre-se o óbvio: para quem venera o futuro e vive na antecipação, o presente se banha facilmente na angústia.

P.S.: Estréia amanhã, no Brasil, "Minority Report - A Nova Lei", de Steven Spielberg. O filme (inspirado por um conto de Philip K. Dick) imagina um sistema policial capaz de reduzir a zero a criminalidade: basta que sejam punidos não os crimes passados, mas os crimes futuros.
Em matéria de saúde, parece que corremos atrás de um sonho parecido: o de sermos curados das doenças que teremos. Para muitos, o sonho vira pesadelo.