28 dezembro 2006

Doutrina, lei e consciência



Decidir em nosso foro íntimo é quase sempre melhor do que inventar leis e doutrinas

EM 1870, morreu George Holland, um ator de origem inglesa, que morava em Nova York na pobreza. Naquela época, muitas igrejas se negavam a oferecer ritos religiosos ao corpo dos atores, que eram considerados párias: uma casta de perdidos.

Na hora de enterrar George Holland, portanto, os amigos e os filhos encontraram sérias dificuldades, até que alguém lhes assinalou (com um certo desprezo) uma "igrejinha atrás da esquina, que talvez topasse essas coisas". Era uma igreja anglicana, que ainda existe, em Nova York, na rua 29, entre a Quinta Avenida e a Madison.

Assim, logo antes do Natal de 1870, o reverendo George Hendric Houghton celebrou o funeral de George Holland, e a "igrejinha atrás da esquina" se tornou, desde então, o refúgio preferido dos atores da Broadway -e dos atores em geral.

Depois do Natal (bem nesta época do ano, 136 anos atrás), a imprensa americana levou a questão para a opinião pública, que, em geral, aprovou o ato do reverendo.
Há quem diga que a generosidade de Houghton fosse uma conseqüência de sua paixão pelo teatro. Essa suposição o torna ainda mais simpático, mas tudo indica que sua motivação era mais ampla.

Houghton não era homem de se orientar pela opinião dos demais nem por doutrinas estabelecidas.

Durante a Guerra de Secessão americana, ele tinha abrigado escravos fugitivos. Mais tarde, fundou a primeira escola dominical para negros. Também ele instituiu uma prática (que se popularizou um pouco): na janela de sua paróquia, colocou uma vela que queimava a noite inteira e, na porta, uma campainha, para assinalar que, na necessidade, era sempre possível procurar ajuda na casa de Deus.

Pois bem, para enterrar George Holland, Houghton não pediu a autorização de ninguém. Não se preocupou com a doutrina oficial de sua congregação em matéria de atores.
É verdade que a Igreja Anglicana, em geral, não promove doutrinas de cima para baixo, mas aposto que, mesmo se ele fosse padre católico, Houghton não agiria diferente: decidiria segundo sua consciência.

Seu moto pessoal era uma citação de Terêncio (um autor, que, além de escrever comédias, não podia ser cristão por ter nascido bem antes de Cristo): "homo sum: humani nihil a me alienum puto", sou homem, nada do que é humano me é alheio.

Nestes dias, em Roma, a Igreja Católica recusou o enterro religioso a Piergiorgio Welby, um italiano que sofria de distrofia muscular progressiva, vivia paralisado há dez anos e, quando a doença lhe retirou a própria possibilidade de falar, quis que seu médico desligasse o respirador artificial. Como relatou a reportagem da Folha no dia do Natal, o papa (que não se opôs ao funeral religioso de Pinochet) achou bom se pronunciar nesse caso e declarou que "o nascimento de Cristo nos ajuda a tomar consciência do que vale a vida de todo ser humano, desde seu primeiro instante até seu declínio natural".

É um bom exemplo de como a "autoridade" permite qualquer distorção. É claro que o nascimento de Cristo celebra a vida (como todos os nascimentos), mas é meio capenga escolher o Cristo como exemplo de valorização da vida acima de tudo. Afinal, o Cristo, que eu saiba, não fugiu de Jerusalém para salvar a pele, mas ficou encarando o suplício porque pensava, por exemplo, que sua missão valesse mais do que sua vida.

Fora esse detalhe, não sou "a favor" da eutanásia nem "contra" ela. Assim colocada, a alternativa não me interessa, pois tenho a maior dificuldade em ser "contra" ou "a favor" quando se trata de generalidades. Ou melhor, sou quase sempre contra quem legisla abstratamente: a eutanásia não pode (e o ditador assassino e corrupto pode, porque o caso não está no livro).

Teria preferido que, no caso da morte de Piergiorgio Welby, não houvesse debate, apenas um padre que ouvisse o pedido da mãe, considerasse as circunstâncias da vida de Welby e fizesse seu dever ou, então, se assim ditasse sua consciência, rejeitasse o pedido e encaminhasse os familiares a um outro padre, sem fazer disso um tema de discussão, sem pedir que alguém, de cima, legislasse. Por quê?

Porque nossa capacidade de decidir, em nosso foro íntimo, o que é justo e o que é errado é infinitamente maior que nossa capacidade de inventar leis e doutrinas que respeitem a singularidade das vidas concretas.

Um bom começo de ano a todos.

25 dezembro 2006

É Natal

Os primeiros Natais de minha infância foram momentos encantados. Ou, ao menos, é assim que me lembro deles.

No dia 24, de tarde, cada escrivaninha e console da casa era levado para a sala de jantar e servia para encompridar a mesa, de maneira a acomodar os 20 e tantos familiares e amigos de sempre. Logo começava a preparação do peixe. Meu irmão e eu ajudávamos meu avô na tarefa selvagem de tirar a pele das enguias, que eram o prato tradicional e que nenhum de nós gostava de comer. Antes de ir para a cama, nós, as crianças, preparávamos, perto da árvore, uma mesinha: um copo de vinho branco, um prato com uma fatia de bolo e um pequeno guardanapo. No chão da entrada, colocávamos uma bacia com água e outra com duas ou três cenouras. O bolo e o vinho eram para o menino Jesus. A água e as cenouras eram para a mula que o carregava.

Acordávamos de madrugada, pela ânsia de ver os presentes e de constatar a mágica passagem do menino Jesus. A casa estava deserta, os presentes brilhavam embaixo da árvore, o copo de vinho tinha sido em parte (só em parte) bebido, a fatia de bolo tinha sido mordida, assim como as cenouras. Havia, sempre, em algum lugar do corredor, uma poça: a mula, coitadinha, tinha feito xixi. Da porta de entrada até a árvore, espalhava-se um rasto de folhas e pétalas de flores, que, aparentemente, o menino Jesus deixava atrás de si, por onde passasse.

Não sei por que, na nossa família, era o menino Jesus, e não Papai Noel, que trazia os presentes. A coisa era ainda mais curiosa por meu pai ser declarada e ferozmente ateu. E minha mãe o acompanhava.

Menino Jesus ou não, era bom fazer de conta: o ritual era um segredo de família que celebrava o milagre de estarmos juntos. Também era um alívio constatar que nem todos os presentes vinham de meus pais. E era gostoso acreditar numa certa benevolência do mundo ou de seu criador: havia ao menos um dia no ano em que, indo para a cama cedo e forçando-se a fechar os olhos, alguém, no meio da noite, faria o necessário para que acordássemos felizes.

Houve Natais em que o encanto se perdeu. Num deles, bem perto da meia-noite, morreu de repente o pai de meu melhor amigo. Meu pai saiu correndo com sua bolsa de médico; a festa parou. Nós descobrimos que, às vezes, não só a mula, mas o próprio menino Jesus se esquecia (de alguém, no caso). Os presentes, na manhã seguinte, estavam lá; mas eu não sabia o que fazer com eles. Também estava lá Alessandro, meu amigo do peito, órfão.

E houve outros Natais em que explodiram brigas de família incompreensíveis (para nós). Um tio que saiu batendo a porta porque não gostou do lugar que sua mulher ocupava na mesa ou uma nora que não se dava com a sogra. Esperávamos demais e, à força de querer (e simular) harmonia para a família e o mundo inteiro, vivíamos decepções fellinianas se algum detalhe atrapalhasse o cartão-postal natalino.

Mais tarde, chegaram os anti-Natais da adolescência. Eram proclamações indignadas contra a família. Valia qualquer coisa para contrariar o espírito dos Natais da infância: Natal numa boate? Natal num prostíbulo? Natal jogando pôquer num boteco?

Ou, então, eram proclamações políticas: Natal numa célula de militantes, Natal com amigos e companheiros, sem festa, sem árvore e cheio de conversas sobre as armadilhas "alienantes" do consumo.

Alguns anos atrás, no dia 25, acordei muito cedo, embora soubesse que ninguém viera, no meio da noite, depositar presentes embaixo da árvore. O apartamento estava deserto, todos dormiam ainda. Atravessei a sala assim como costumo dormir, de camiseta, sem pijama. Olhei com carinho para os restos do jantar da noite anterior e liguei a máquina do café. Não sei por que, achei graça enfiar na cabeça um chapéu de Papai Noel que estava em cima da mesa. Logo fui buscar o jornal na porta de casa, caso ele já tivesse chegado.

Por precaução pudica e por preguiça de vestir uma calça ou mesmo uma cueca, tentei inventar um jeito de apanhar o jornal sem impor minha nudez aos (improváveis) vizinhos que estivessem circulando pelo prédio às 6h do dia de Natal. Ajoelhado, abri a porta e estendi o braço; o jornal estava lá, mas longe demais. Insinuei o ombro na abertura, mas não bastou. Avancei mais, sempre ajoelhado, até que, empurrado pela própria porta, que é comandada por uma mola que a fecha automaticamente, estava mais fora do que dentro do apartamento. Por sorte, o batente não fechou atrás de mim. No instante em que, enfim, coloquei a mão no jornal, escutei um barulho. Levantei os olhos: bem na minha frente, um vizinho, também ajoelhado e seminu, era vítima da mesma manobra. Ficamos imóveis um longo momento, até que, de jornal na mão, desejei-lhe "feliz Natal" e recuei.

Cinco minutos depois, sentado contra a porta fechada do meu apartamento, ainda estava rindo, constatando que, durante esse estranho encontro, ficara não só meio nu, de camiseta, mas também de chapéu de Papai Noel.

É um bom retrato de meus Natais de hoje. O chapéu representa uma certa fé no ritual que afirma a permanência dos afetos familiares e das amizades, mas sem esquecer que o espírito de Natal não ganha das notícias do dia (o jornal na mão) nem dos desejos que nascem abaixo da cintura (às vezes estamos sem cueca).

Feliz Natal a todos.

21 dezembro 2006

Mudar de gênero

Projeto de lei nova-iorquino reconheceria a todo cidadão o direito de mudar de gênero

ATÉ ESTE começo de dezembro, tudo indicava que o conselho de saúde pública (Board of Health) da cidade de Nova York aprovaria uma lei autorizando qualquer cidadão a mudar de gênero em sua certidão de nascimento e, conseqüentemente, em todos os seus documentos.
Bastaria pedir: não seria necessário comprovar que o sujeito tivesse mudado seu sexo anatômico por uma cirurgia ou alterado seu corpo pelo uso de hormônios. Não seria sequer exigido que ele se vestisse e vivesse habitualmente como uma pessoa do sexo oposto ao seu.

João, de terno e bigode, poderia se apresentar no escritório previsto e pedir para se tornar oficialmente mulher. Inversamente, Maria, de saia e cabeleira, poderia pedir para tornar-se oficialmente homem.

O projeto de lei parece extremo e, de fato, foi objeto de gozações ("Se eu não gostar, posso mudar de novo? Quantas vezes no ano?"). Mas, a bem da verdade, ele era adequado, por duas razões.

A primeira é que nenhum sujeito pediria a mudança administrativa de seu sexo se a questão não fosse, para ele, mais que séria: vital. A segunda é que, hoje, o estado de nossa ciência, biológica e psicológica, não permite mesmo que um conselho de especialistas (por mais bem escolhido que seja) assuma a responsabilidade de autorizar ou proibir uma mudança administrativa de sexo.

Nessas condições, respeitar a palavra do sujeito interessado é, muito provavelmente, o caminho em que menos se erra. Mas, antes de mais nada, algumas explicações. Há sujeitos ("transgêneros") que sofrem porque seu sentimento profundo de pertencer ao sexo masculino ou feminino não corresponde à sua anatomia. Em número mais ou menos igual para cada sexo, há mulheres que se sentem homens e se vivenciam como homens, e há homens que se sentem mulheres e se vivenciam como mulheres. Ambos são cativos de corpos que lhes parecem estrangeiros.

Quantos são? As estatísticas oscilam absurdamente: entre um sujeito em cada mil e um sujeito em cada 100 mil. Por que existe tamanha variação? A categoria dos transgêneros pode ser delimitada de maneiras muito diferentes: ela pode incluir desde sujeitos (raríssimos) que nascem com os atributos sexuais de ambos os sexos até sujeitos (muito numerosos) que, esporadicamente, sentem a necessidade de vestir a roupa do sexo oposto - passando pelos sujeitos que modificam (mais ou menos radicalmente) seu corpo para que corresponda a seu sentimento de identidade.

Para complicar a tarefa dos pesquisadores, existem transgêneros "primários", em quem a discordância entre sexo anatômico e sentimento de identidade se manifesta desde a infância, e transgêneros "secundários", em quem a discordância se manifesta ou se agudiza na idade adulta (às vezes avançada).

Seja qual for o número de transgêneros no mundo, em sua grande maioria (90%, as estatísticas concordam) eles residem nas grandes cidades, onde o anonimato permite mais facilmente viver num gênero diferente do que figura nos documentos e é mais fácil encontrar possibilidades de inserção social (sempre tristemente escassas).

Fato de difícil compreensão para os "normais": os problemas de identidade de gênero não correspondem a uma orientação sexual específica.

Um grande número de transgêneros (a metade deles, segundo algumas estatísticas) eram e continuam sendo heterossexuais, ou seja, eram homens que desejavam parceiras mulheres ou mulheres que desejavam parceiros homens: ao mudarem de gênero, eles não alteram seu desejo e se tornam, de uma certa maneira, homossexuais.

Pois bem, a lei proposta pelo conselho nova-iorquino foi retirada. A proposta suscitou, obviamente, protestos "morais", fruto da ignorância de quem confunde um drama do sentimento de identidade com alguma forma de libertinagem. Mas, sobretudo, apresentaram-se problemas práticos ("New York Times" de 6/12): por exemplo, o que aconteceria com transgêneros que tivessem mudado de sexo administrativamente e que, por alguma razão, fossem presos? Iriam para uma penitenciária masculina ou feminina? E nos hospitais, como seria?

Essas objeções fazem sentido, mas revelam quanto nosso mundo é segregado pela diferença sexual. Homens à esquerda, mulheres à direita. Quem não se enquadra, que se vire.
O Natal é sempre um bom momento para pensar em quem tem uma vida especialmente difícil. Boas festas a todos.

14 dezembro 2006

"Inocência" e as mesas de bar

Se não sabemos mais sonhar com a vida como deveria ser, podemos abraçá-la como ela é

NO SÁBADO passado, em São Paulo, fui para o Espaço dos Satyros, na praça Roosevelt, e assisti a "Inocência", de Dea Loher, com direção de Rodolfo García Vasquez. A peça fica em cartaz até o dia 18 e volta em janeiro. A montagem é surpreendente pela elegância das soluções cênicas e pela performance de todos os atores.

O texto de Dea Loher é uma meditação (teatral e engraçada: nada de longos discursos) sobre a idéia, própria aos nossos dias, de que a vida não faz sentido. Misteriosamente, a montagem dos Satyros opera um pequeno milagre: ela revela, no pouco sentido do mundo, mil razões para amar a vida. Nisso, ilustra uma moral que aprecio muito: talvez não consigamos mais sonhar com a vida como deveria ser, mas podemos abraçar a vida como ela é.

Na saída do teatro, é de praxe parar numa mesa de bar naquele trecho da praça Roosevelt (escolha entre o espaço dos Satyros, o dos Parlapatões e o bar-antiquário Papo, Pinga e Petisco). A animação da rua responde à inquietude levantada pela peça: talvez a vida não faça sentido, mas nos resta viver. No mínimo, resta-nos a mesa do bar.

Sei que é pouco: a quem se sente abandonado pelas grandes causas comuns, a mesa do bar e sua conversa parecem pálidos reflexos da sociedade desejada. Mas, filosofando: se, por falta de transcendências, devemos encontrar sentido na imanência, é melhor se acostumar a dar relevância às coisas pequenas de cada dia.

Na mesa do bar, a gente dá "uma relaxada": encontra, na facilidade do convívio (ou do "convício", entre cigarros e cervejas), um amparo contra as frestas e falhas mais dolorosas. Considere seus companheiros de mesa: todos parecem espirituosos e bem-humorados.

Mas há um que, uma vez de volta em casa, perseguirá, solitário, na internet, fantasias sexuais que ele nunca se permite viver; há o casal que se deitará sem se abraçar; há outro que não quer ir embora porque a perspectiva da solidão o desespera; há outra que consegue ironizar uma perda cuja lembrança, quando ela estiver sozinha, de novo a arrasará. E por aí vai.

Não se trata de um "fazer de conta": existe uma divisão subjetiva sem a qual viver seria difícil. Já imaginou um dia inteiro na intensidade alarmante de um diálogo com seu melhor amigo, com um terapeuta ou até consigo mesmo, numa noite sem sono?

A única dificuldade com as mesas de bar é que, às vezes, o amparo se dá às custas dos ausentes, a torcida do "outro" time, os "veados", os negros, etc. (a mesa de bar pode ter uma proximidade perigosa com as mesas da infausta cervejaria onde começou o nazismo).

Mas, fora isso, as mesas de bar e as rodas de padaria são uma modesta e frágil presença da vida social concreta: elas mantêm, ao menos, a ilusão de que os outros existem para nós e nós existimos com eles. Falando em mesa de bar, na esquina de meu consultório tem um café, que, até pouco tempo atrás, tinha três mesinhas na rua. Era o lugar onde eu almoçava; era também o lugar onde as pessoas do bairro se encontravam, e a conversa rolava ao lado da banca de jornais, na frente do ponto de táxi.

Ali, vendedores ambulantes paravam entre as mesas. Meninos e meninas de rua pediam aos clientes um refrigerante e um salgado. Em suma, casas e apartamentos se prolongavam para um pouco além das portas trancadas.

Um belo dia, veio um caminhão da prefeitura; disseram que a ocupação da calçada não era legal e levaram embora (triste troféu) as mesinhas e as cadeiras de metal branco. "Quer regularizar? Faça um toldo retrátil novo." Custo: R$ 10 mil, impossível para o café da esquina.

Acho ótimo regulamentar o uso das calçadas. Mas governar, ao meu ver, deveria ser a arte de estimular a (frágil) comunidade que existe. Fazer o quê, deixar tudo na bagunça? Não, mas um funcionário da prefeitura poderia ter chegado no café da esquina (e em centenas de outros bares da cidade) e dito, por exemplo: a gente vai tornar São Paulo mais bonita, é preciso regularizar os toldos, a administração previu sua dificuldade e obteve um empréstimo do BNDES. Você vai poder pagar seus R$ 10 mil ao longo de cinco anos, a juros razoáveis.

Para que isso acontecesse, teria sido suficiente que os governantes pensassem primeiro na vida concreta da gente, que não é nada -pode ser apenas uma mesa de bar-, mas, num mundo com pouco sentido, é o que temos.

07 dezembro 2006

"Crazy - Loucos de Amor"

Como se determina a orientação sexual? É uma "escolha" livre ou uma fatalidade?

ESTÁ EM cartaz "Crazy - Loucos de Amor", de Jean-Marc Vallée (canadense de língua francesa). É a história de Zac, um garoto que se torna adulto e homossexual entre uma mãe religiosa, um pai banalmente machista e quatro irmãos.

O filme é uma pérola: delicado, engraçado e comovedor. Além disso, ele é uma obra de utilidade pública. Ao longo dos anos, muitas vezes, encontrei e tentei aconselhar casais que lidavam, de maneiras diferentes, com a descoberta de que seu filho (ou um de seus filhos) era homossexual. As reações variavam, desde uma aprovação maníaca (que, em geral, escondia um desespero reprimido) até a decisão sádica de impor a normalidade a tapas ou à força de excursões obrigatórias ao bordel.
Pois bem, hoje, a todos esses pais de um jovem homossexual, sem exceção, recomendaria que, antes mesmo de começar a conversa, eles assistissem a "Crazy". Estenderia a recomendação aos eventuais irmãos do jovem, aos amigos, aos colegas de colégio e de trabalho.

Deixo aos espectadores o prazer de uma história que, para usar uma expressão na moda, melhora singularmente nossa "inteligência emocional". E aproveito para resumir um debate que o filme reavivou.

Falando com um amigo sobre a história de Zac, usei a expressão "escolha sexual" (diga-se de passagem que, no filme, Zac é perfeitamente "capaz" de desejar e talvez de amar uma mulher). O amigo desaprovou energicamente minha expressão. E lá fomos nós, discutindo, mais uma vez: a orientação sexual é fruto de uma especificidade genética ou é um efeito da história do sujeito? Além disso, é uma fatalidade ou uma "escolha"? Chegamos a algumas conclusões provisórias, que resumo a seguir.

1) Os dados científicos não são conclusivos. Por exemplo, os estudos sobre gêmeos univitelinos (que já comentei no passado, nesta coluna) deixam, sobretudo, perplexidade: seria esperado que uma maioria esmagadora de irmãos gêmeos, por compartilharem o mesmo patrimônio genético, tivesse uma orientação sexual idêntica, mas as pesquisas mostram que isso acontece em pouco mais de 50% dos casos -uma maioria pequena, que poderia ser explicada pela infância comum.

2) De qualquer forma, o termo "escolha sexual" é, no mínimo, impreciso: ele sugere uma liberdade que, de fato, nunca existe em matéria de amor e sexo. Em geral, a fantasia que sustenta o desejo de cada sujeito (homossexual ou não) é mais próxima de uma imposição do que de uma criação livre e variável: não é uma coisa que a gente "escolha".

3) A razão para defender a expressão "escolha sexual" ou, então, seu contrário (por exemplo, "determinação sexual") é sobretudo política. Muitos sujeitos cuja conduta amorosa e sexual é excluída, perseguida ou censurada preferem, hoje, que a forma de seu desejo seja considerada por todos como uma necessidade biológica. Com isso, eles se libertariam das tentativas (ridículas e opressivas) de "corrigir" o que, para eles e de fato, é um desejo não negociável (que pode ser reprimido, mas não "endireitado"). Em suma, eles esperam ganhar uma aceitação social definitiva, visto que não há como se opor "à natureza".

Por que não adotar esse argumento, considerando que, de qualquer forma, a expressão "escolha sexual" é incorreta?

Eis minha resposta: no mundo dos meus sonhos, as mais variadas orientações sexuais e amorosas seriam aceitas sem a justificativa de determinação biológica alguma, mesmo se elas fossem livres escolhas dos sujeitos.

Um exemplo vai ser útil. Uma filósofa libertária que admiro, Jeanne Hersch (que morreu em 2000), foi minha professora na época em que ela dirigia a divisão de filosofia da Unesco. Nessa função, ela teve que decidir se a Unesco financiaria ou não uma pesquisa para demonstrar que não existem diferenças de inteligência entre raças. Hersch votou contra o projeto, pela indignação de boa parte de nós, estudantes. Os filósofos apreciarão o sabor kantiano de seu argumento, que foi o seguinte: é verdade que a pesquisa poderia desmentir cientificamente muitos estereótipos raciais e racistas, mas autorizar a pesquisa significaria admitir, mesmo por um instante, que a igualdade de direito possa derivar da igualdade de fato. Isso era, para Hersch, inaceitável.

Seguindo sua lição, prefiro defender o princípio da liberdade de "escolha" amorosa e sexual, sem justificativa biológica. É muito "crazy"?

30 novembro 2006

O poder da reza


Mistério: estudo mostra que uma reza retroativa ajudou pacientes anos depois da internação

UM AMIGO médico, Décio Mion, me fez conhecer um estranho debate que ocupou, de 2001 a 2003, as páginas do seríssimo "British Medical Journal".
Premissa: várias pesquisas, há tempos, mostram os efeitos positivos da reza num

a variedade de condições patológicas. Documenta-se que o doente encontra benefícios (quanto ao andamento de sua enfermidade) no ato de rezar ou na consciência de que seus próximos rezam por ele. Até aqui, tudo bem: o paciente acharia assim uma paz de espírito que melhora sua evolução.

A coisa se complica: às vezes, as pesquisas mostram que a prece traz benefícios mesmo quando alguém reza por um doente sem que ele próprio saiba disso. Como explicar esses casos?

Talvez o benefício seja fruto de uma intervenção caridosa da divindade solicitada, mas essa explicação depende de um ato de fé que não cabe na interpretação de uma pesquisa científica. Além disso, é curioso que os benefícios apareçam seja qual for o deus ou o intercessor que receba a oração.

Resta, pois, imaginar que a intenção humana (o esforço cerebral de quem deseja que algo aconteça e reza por isso) tenha alguma realidade material (energia, partículas etc.) capaz de influir no andamento de um processo patológico. Estranho?

Nem tanto: afinal, até poucas décadas atrás, ignorávamos a existência de uma série de partículas que, segundo a física de hoje, povoam nosso universo. Por que as nossas intenções não movimentariam uma energia desconhecida, mas capaz de alterar o mundo físico? Nos EUA, nos anos 60-70, foram organizadas reuniões diante da Casa Branca com a idéia de que, se todos se concentrassem, a energia do dissenso faria levitar a residência do presidente americano. Embora cético, participei, convencido por um amigo que dizia: "Tentar não dói". Claro, não funcionou.

Ora, no fim de 2001, o "British Medical Journal", depois de um editorial lembrando que a razão não explica tudo, publicou uma pesquisa, de L. Leibovici (BMJ, 2001, 323), que registra os efeitos benéficos (em pacientes com septicemia) de uma reza afastada não só no espaço, mas também no tempo. Explico.

Foram incluídos no estudo todos os pacientes internados com septicemia, de 1990 a 1996, num hospital israelense; eram 3393. Em 2000 (de quatro a dez anos mais tarde), por um processo rigorosamente aleatório, os arquivos desses pacientes foram divididos em dois grupos: um grupo pelo qual haveria reza e um grupo de controle. Para cada nome do primeiro grupo, foi dita uma breve reza que pedia a recuperação do paciente e do grupo inteiro.

Resultado: no grupo que recebeu uma reza em 2000, a mortalidade foi (ou melhor, fora, de 90 a 96) inferior, embora de maneira pouco significativa; no mesmo grupo, a duração da febre e da hospitalização fora (ou melhor, havia sido, de 90 a 96) significativamente menor.

A publicação da pesquisa provocou uma enxurrada de cartas (BMJ, 2002, 324), algumas contestando as estatísticas, outras manifestando uma certa incompreensão do problema, que é o seguinte: como entender que uma reza possa agir não só sem que o paciente tenha consciência da intercessão pedida (com possível efeito psicológico positivo), mas à distância no tempo? Como entender, em suma, que uma reza dita em 2000 tenha um efeito retroativo em alguém que estava doente entre 90 e 96, quando a pesquisa e a reza nem sequer estavam sendo cogitadas?

Uma tentativa de resposta veio em 2003. O "BMJ" (2003, 327) publicou um interessante e enigmático artigo de Olshansky e Dossey, "History and Mystery" (história e mistério), em que os dois médicos dão prova de conhecimentos de física quântica muito acima de minha cabeça. O argumento de fundo é o seguinte: há modelos do espaço-tempo nos quais é possível que haja relações físicas entre o passado e o presente (ou seja, modelos em que o presente pode alterar o passado).

Que o leitor não me peça para explicar como isso aconteceria. As dimensões do "espaço de Calabi-Yan" e os "campos bosônicos", para mim, são tão obscuros quanto os ectoplasmas, os espíritos e os milagres.

Moral da história: embaixo do sol (ou da chuva), deve haver muito mais do que imaginamos, até porque nossa ciência está longe de ser acabada. Alguns colegas positivistas talvez durmam mal com esse barulho.

Eu não acredito nas paranormalidades, mas, em geral, durmo melhor ninado pelo mistério do que pelas certezas.

16 novembro 2006

Psicopatas bem ou malsucedidos


As pesquisas sobre motivação são biquínis: mostram muita coisa, mas não o essencial
ADMITIMOS SEM hesitar que o mundo é composto de moléculas, átomos, células etc., mas isso não altera nossa percepção da realidade. Estou num bar, vejo e toco a cadeira e a mesa, converso com o garçom; mesmo se eu fosse professor de física ou biologia, não me pareceria estar lidando com aglomerados instáveis de partículas.

Na nossa percepção da subjetividade humana, acontece uma coisa análoga. Posso saber que minhas escolhas são o efeito de meus genes, de meu passado, da forma e da quantidade de minha matéria cerebral, mas nada disso altera o sentimento fundamental de que estou agindo livremente. Isso vale também para os outros: reconheço tudo o que os determina, mas lhes atribuo a mesma liberdade com a qual imagino agir.

Nunca encontrei um drogado, alcoólatra ou fumante que não declarasse poder parar quando quisesse.

E nunca encontrei um familiar ou próximo de drogado, alcoólatra ou fumante que não pensasse, em última instância, que o "viciado", para deixar seu "vício", precisaria sobretudo de boa vontade.

Essa diferença entre nosso saber e nossa percepção (de nós mesmos e dos outros) alimenta um paradoxo, que é provavelmente salutar: pedimos que a ciência transforme o mistério das motivações humanas num cálculo exato, mas acreditamos na responsabilidade, na culpa e na possibilidade de redenção (idéias que pressupõem a liberdade do sujeito).

Quem tem razão: nossa percepção ou nossa ciência?

Seja como for, meu professor de estatística na Universidade de Milão começava seu curso de primeiro ano com esta declaração (um pouco machista): "A estatística", ele dizia, "é como um biquíni: ela mostra muita coisa, mas esconde o essencial". Pois é, as pesquisas científicas sobre a motivação humana são quase sempre biquínis, e não só porque os resultados têm valor estatístico.

Eis um exemplo. Desde 1990, graças a uma pesquisa desenvolvida por Antônio Damásio, presume-se que exista uma relação entre o comportamento anti-social do psicopata e alguma redução do córtex pré-frontal. Damásio verificou essa correspondência em sujeitos que se tornaram impulsivos e violentos depois de um acidente.

A seguir, uma série de pesquisas mostrou que essa correlação vale especificamente para a matéria cinza, cuja redução seria responsável pela falta de inibições, já identificada como uma caraterística clássica dos psicopatas.

Recentemente, a revista "Biological Psychiatry" (2005, vol. 57) publicou uma pesquisa de Yang, Raine e outros, "Volume Reduction in Prefrontal Gray Matter in Unsuccessful Criminal Psychopaths" (redução de volume na matéria cinza pré-frontal em psicopatas criminosos fracassados). Esse título curioso se justifica porque os autores, por uma vez, tiveram a idéia de comparar três grupos: um grupo de controle (cidadãos comuns e pacíficos que nem a gente), criminosos aprisionados (que seriam, portanto, psicopatas fracassados, visto que se deixaram prender) e criminosos que nunca foram presos (aqui, obviamente, reunir o grupo foi difícil).

É uma novidade notável: em regra, nas pesquisas sobre a mente criminosa, os pesquisadores recrutam seus sujeitos nas prisões, sem levar em conta dois fatores. O primeiro é uma antiga constatação da psicologia social: o próprio ambiente carcerário transforma os sujeitos. O segundo (salientado pelos autores da nova pesquisa) é que talvez exista uma diferença psíquica e cerebral entre os psicopatas que se deixam pegar - ou seja, como sugerem os autores, os criminosos fracassados - e os bem-sucedidos, que conseguem perpetrar seus crimes em toda liberdade.
Pois bem, o resultado da pesquisa é o seguinte: nos criminosos fracassados (aprisionados), há, de fato, uma redução do volume da matéria cinza pré-frontal, enquanto os psicopatas bem-sucedidos (que evitam a prisão) têm um córtex parecido com o nosso.

Moral da história: a redução de matéria cinza no córtex não nos diz quem é psicopata e quem não é; ela nos indica apenas quem é impulsivo e, portanto, se for criminoso, tenderá a agir de maneira a ser preso. Note-se, de passagem, que, normalmente, os psicopatas criminosos de colarinho branco são menos impulsivos que os assaltantes de farol; é bem possível, aliás, que haja mais psicopatas fora da cadeia do que dentro.

Enfim, uma recomendação: de qualquer forma, se você for psicopata e criminoso, fique frio.

09 novembro 2006

"O Ano em que Meus Pais..."

No filme de Hamburger, a torcida de 70 é um ato de fé numa comunidade que talvez surja um dia

NA SEXTA passada, estreou o filme "O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias", de Cao Hamburger.

A história é conhecida: em 1970, os pais de Mauro, um menino de 12 anos, saem "de férias" para fugir da repressão. Por um imprevisto, Mauro acaba ficando sozinho e é acolhido pela comunidade judaica do Bom Retiro. Jogando seu futebol de botões, ele espera que os pais voltem, como lhe foi prometido, na hora da Copa.

Saí do cinema comovido, e não foi pela lembrança (que não tenho) do Brasil dos anos 70.
É que, no fundo, somos todos Mauros: alguns poucos, sem que a gente entenda direito como ou por quê, fazem "a História", e, no meio disso, nós vivemos amizades, saudades, aflições, exílios, pequenas e grandes paixões. Do ponto de vista da História com letra maiúscula, somos botões empurrados pela mão de quem joga (ou acha que está jogando), mas é no tabuleiro ou na mesa improvisada que as vidas concretas acontecem.

"A História", para nós, botões, é um pano de fundo, uma atmosfera. E Cao Hamburger é um mestre na criação de atmosferas. Sua obra anterior é um seriado para a HBO, "Filhos do Carnaval", que mereceria uma nova difusão. O seriado era dominado por uma uniformidade cromática (uma mistura fria de verdes e azuis) que era a cor de um mundo duro e impiedoso. Em "O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias", a cor dominante é um marrom grisalho, que, por si só, expressa o clima da ditadura em seu pior momento. Há um precedente: "Um Dia Muito Especial", de Ettore Scola (1977).

Na obra de Scola, o fascismo italiano tem uma cor parecida com aquela que é inventada por Hamburger (e pelo talento de Adriano Goldman, o cinematografista de ambas suas últimas obras). Mas a cor da opressão não é o único ponto em que o filme de Hamburger encontra o de Scola: nos dois filmes, os protagonistas são botões atropelados pelos "grandes" acontecimentos, seu drama humilde é um protesto, uma reivindicação da vida concreta contra as forças covardes da História.

Mauro, como disse, é acolhido pela comunidade judaica do Bom Retiro. Essa relação, que se constrói aos poucos, não é fruto de uma cumplicidade de idéias. Mal sabemos o que pensa, em matéria de política, o velho que acaba fazendo as vezes dos pais de Mauro, mas descobrimos, com ele e com Mauro, que, nos piores momentos, é possível contar com uma moral dos afetos, uma moral da vida concreta: uma solidariedade dos botões.

Mil vezes, ouvi dizer que a vitória do Brasil em 1970 foi "boa" para a ditadura (e que, se o Brasil ganhasse em 2006, Lula "capitalizaria"). A Itália ganhou suas primeiras copas durante o fascismo, em 1934 e 1938, e não sei como essas vitórias foram vividas, na época, pelos militantes antifascistas. Seja como for, o filme nos mostra o Brasil reunido e parado diante dos televisores e dos rádios; até nos redutos da oposição, a hora do jogo é um momento de trégua. A impressão (verídica, ao que tudo indica) é que, apesar de uma divisão sangrenta, graças ao futebol, ainda existia uma nação.

Mas em que sentido? Será que se tratava de uma torcida patriótica pela qual a seleção seria um símbolo nacional abstrato, uma bandeira? E, se fosse assim, no que essa torcida seria diferente da paixão guerreira de quem procura ou inventa adversários para poder gritar "my country, right or wrong" (meu país, de qualquer forma, tanto faz que ele esteja certo ou errado)?

O patriotismo, como diz a famosa frase de Samuel Johnson (com a qual concordo, aliás), é "o último refúgio dos canalhas": é um recurso para encontrar, na coletividade, força, identidade e "bom direito" sem levantar perguntas que seriam incômodas se fossem colocadas aos indivíduos, um a um.

Não vou recorrer a argúcias para provar, sei lá como, que a inspiração das torcidas pode ser de um quilate melhor que a do patriotismo canalha. Não é necessário, pois o filme de Hamburger responde: nele, a torcida de todos, em 70, é o momento comovedor de uma aposta, um ato de fé numa comunidade de destino, que surge por um momento no Bom Retiro onde Mauro se encontra e que talvez surja, um dia, depois do sangue e da raiva.

É como se a torcida nacional celebrasse não uma bandeira abstrata, mas a comunidade real, concreta, aquela que não existe, mas cujo sonho vive e continua, há alguns séculos, apesar de divisões e diferenças, apesar de tudo.

02 novembro 2006

Viva o cinema



Nunca sentimos tanto a unidade por trás da variedade de culturas: é graças ao cinema


CHEGA AO fim a 30ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Fui convidado a fazer parte do júri. Funciona assim: concorrem ao prêmio os filmes de diretores "jovens" (a obra deve ser seu primeiro ou segundo longa-metragem), os votos dos espectadores da mostra selecionam 15 finalistas, entre os quais um júri de sete pessoas escolhe qual ou quais premiar.

Desde domingo passado, assisto a três ou quatro filmes por dia. Na minha adolescência, passava as tarde de sábado no cineclube do meu colégio e assistia a dois filmes. À noite, quase sempre, ia ao cinema. Mas era só um dia por semana.

Guardo com carinho os diários do meu pai; são quase 60 volumes, de 1936 a 1994. A partir do fim dos anos 40, em média três vezes por semana, meus pais iam ao cinema, anotavam o título, o diretor e os atores principais, atribuíam uma nota ao filme (de zero a dez) e escreviam brevemente por que tinham gostado (ou não). Quando me dou o prazer (um pouco doloroso) de ler os diários, sempre me surpreendo com essas anotações: há filmes que eles adoraram e que eu presumia que eles tivessem detestado.

Imaginava que eles reprovariam aqueles filmes que falavam de uma experiência próxima de minhas inquietudes e (portanto, eu supunha) afastadíssima da visão do mundo de meus pais; ora, tanto "Juventude Transviada" quanto "De Punhos Cerrados" ganharam um 9. Ou, então, pensava que eles não gostariam de narrativas inovadoras, pouco convencionais; ora, "Fellini 8 1/2" também ganhou um 9.

Há uma entrada, de 1974, que é enigmaticamente sintética. Apenas o título e a nota, sem comentário nem nome do diretor e dos atores: "C'Eravamo tanto Amati - 10".
Para quem tinha vivido a resistência antifascista, o filme de Ettore Scola ("Nós que Nos Amávamos Tanto") era um balanço que deixava sem palavras.

O cinema é uma arte maravilhosa: um filme consegue nos envolver numa história e num mundo (semelhantes ao nosso ou radicalmente diferentes dele, tanto faz) muito mais rapidamente que a leitura de um romance. Além disso, o cinema conseguiu ensinar sua linguagem a seus espectadores de maneira, por assim dizer, indolor: todos entendem e reconhecem campos e contracampos, inversões temporais e deslizes da realidade ao sonho. Ninguém precisou estudar dicionário, gramática e sintaxe: a narrativa era imediata e magicamente acessível.

Graças ao cinema, qualquer sujeito da segunda metade do século 20 se apaixonou, comoveu-se, indignou-se por uma diversidade inédita de histórias. Com isso, nunca como hoje tivemos uma consciência da unidade por trás da multiplicidade das culturas e dos destinos. Nunca como hoje tivemos a sensação de que a imensa variedade das experiências humanas (misérias e grandezas, sonhos e pesadelos) é apenas um repertório de vidas que poderiam todas ser as nossas -a ponto que, por um instante, numa sala escura, sentimos facilmente seu gosto.

Não é louco pensar (com otimismo) que os conflitos que se exacerbam hoje (entre culturas, religiões e mesmo entre os que têm mais e os que não têm nada) sejam sobressaltos penosos, que resistem à rápida expansão do sentimento de uma comunidade de destino. Na aceleração dessa expansão, o papel do cinema foi e é crucial.

Claro, nas próximas semanas, comentarei os filmes que mais me tocaram. Mas, desde já, gostaria de organizar uma sessão dupla. Um dos filmes é egípcio, "O Edifício Yacoubian", de Marwan Hamed; o outro é norte-americano, "Shortbus", de John Cameron Mitchell (espero que logo entrem em cartaz).

O filme egípcio é o retrato de um mundo dilacerado entre a nostalgia de um passado tradicional, a corrupção de uma plutocracia com ares de democracia e a tentação do fundamentalismo como forma de vingança. O filme americano é o retrato de uma geração perdida na procura impossível (e cômica) do orgasmo e do amor perfeitos. Pois bem, eu sonho com uma cabine em que sentassem para projeção dupla os governantes dos países ocidentais (a começar pelos EUA) e as elites políticas e religiosas dos países islâmicos. Na verdade, seria bom que os povos também assistissem: é minha proposta para começar a resolver o conflito que assola o começo deste século.

De todas as soluções propostas nas últimas décadas, é a menos estapafúrdia. Prova disso: com esses filmes ou com outros, ela já está acontecendo.

26 outubro 2006

Quantos você matou?

O assassino é idealizado como se nos vingasse das imposições sociais aceitas a contragosto

DURANTE O segundo conflito mundial, Ernest Hemingway foi correspondente de guerra (não era combatente, mas gostava de circular armado). Ora, recentemente, um jornalista descobriu duas cartas em que o escritor se gaba de ter matado 122 alemães e conta o seguinte: um prisioneiro desarmado gozou da sua cara (tipo, "você não vai ter a coragem de me matar, seu bosta"), e Hemingway mandou ver.

É provável que se trate de uma fanfarronice. Naquelas circunstâncias, talvez fosse possível matar um, mas não 122. Resta que o escritor achou "legal" vangloriar-se de ter matado.
Hemingway passou a vida inteira tentando demonstrar ao mundo e a si mesmo que ele era "homem" de verdade.

Sua história pessoal faria a festa de qualquer psicanalista, desde o suicídio do pai até o dele mesmo, mas o teor das cartas me fez pensar num livro, que, em 2002, foi transformado num filme homônimo, "Confissões de uma Mente Perigosa". É a autobiografia de Chuck Barris, um produtor e apresentador da televisão americana, que contou ter sido, durante anos, um assassino ao soldo da CIA (a qual não confirmou nem desmentiu o fato).

O livro de Barris começa com ele contemplando, no espelho, as injúrias do tempo: sua barriga, sua carne flácida. O fato (ou a fábula) de ter sido um sicário parece valer, para Barris, como uma cirurgia plástica: "Olhe só, tenho cara de esportista de sofá e cerveja, mas as aparências enganam: sou um assassino".

Talvez Hemingway e Barris sejam exemplos patológicos e patéticos de machismo. Mas escute o último disco de Bob Dylan, "Modern Times". Na segunda faixa ("Spirit on the Water"), Dylan canta que ele não poderá permanecer com sua amada no paraíso porque "I killed a man back there..." (matei um cara no passado).

Que charmoso, não é? Nenhum espanto: de Johnny Cash a Merle Haggard, o passado sombrio do cantor é um lugar comum da música "country".

Em geral, o número de assassinatos em nossas ficções (escritas ou filmadas) é infinitamente superior ao das chances efetivas de nós, um dia, matarmos alguém. Em suma, ao que parece, matar nos faz "sonhar".

Evidentemente, há traços de caráter e elementos da história de uma vida que produzem uma disposição assassina, chamada, por alguns psicanalistas ingleses, de "blueprint for murder" (instruções para matar). Mas, certamente, essas peculiaridades dos (poucos) que matam prosperam num ambiente em que, para os machinhos, ter matado ou ter disposição para matar são marcas "positivas".

Ninguém parece achar bizarro que, durante algum tempo, nossos meninos queiram se vestir e andar pelas ruas como membros de gangues sanguinárias (desse ponto de vista, os jovens que se alistam no narcotráfico são apenas crianças que podem realizar um jogo que todos curtem).

Alguns se preocupariam se seus filhos não passassem por uma "fase" de brincadeiras assassinas; receariam, por exemplo, que eles fossem debochados como "frouxos" pelo grupo dos amiguinhos. Não estariam completamente errados: tudo indica que, em nossa cultura, matar é um ato que impõe respeito, ou pior, uma espécie de admiração. Como no Oeste, as entalhaduras na empunhadura do revólver (que contam o número de mortos) medem o valor do pistoleiro.
Censurar nossas produções culturais não é uma solução. Vivemos numa contradição constante entre a liberdade do indivíduo (como valor supremo) e a coação das leis necessárias para vivermos juntos. Conseguimos respeitar as leis; em contrapartida, o fora-da-lei é o herói de nosso individualismo.

"Não Matarás" talvez seja a norma que internalizamos melhor, mas essa é mais uma razão para que "admiremos" o matador: ele consegue agir contra o interdito que está mais solidamente dentro de nós. Nas telas, nas brincadeiras de crianças, nos escritos de Hemingway e Barris ou, simplesmente, nas nossas fantasias, o assassino é idealizado como se ele nos vingasse de todas as imposições sociais que aceitamos a contragosto.

Às vezes, a tela e a realidade se confundem. Em Campinas, na semana passada, um segurança de shopping center matou, por nada, um jovem que tinha derrubado três cones com a sua moto. Armas de verdade deveriam estar só nas mãos dos adultos. O problema é: como encontrá-los?

19 outubro 2006

O Piauí é aqui

A condição básica de uma convivência democrática é que se goste da vida concreta

CHEGOU ÀS bancas o primeiro número da revista "Piauí". Li de cabo a rabo, numa noite.
Aprendi tudo sobre Salem, nossa antepassada etíope de 3,3 milhões de anos atrás. Acompanhei Roberto Jefferson no dia das eleições e conheci o poema que, nessa ocasião, ele declamou junto com o pai, Roberto Francisco.

Entendi que há uma luta entre as baianas do candomblé e as neo-baianas, que vendem acarajé evangélico. Soube dos comentários dos ex-presidiários do Carandiru sobre a morte do coronel Ubiratan.

Conheci Fernando Henrique Freire, degustador de café; conheci José Cândido Sobrinho, que, há vinte anos, defende seus direitos trabalhistas contra a massa falida dos Diários Associados; soube que, no Pará, há policiais militares que montam búfalos reluzentes.

Li uma grande reportagem sobre como se trabalha (e por quanto) no telemarketing; outra sobre o engenheiro brasileiro seqüestrado no Iraque. Li o diário de uma jovem imigrante "ilegal" em Nova York.

Soube o que fez e pensou o jornalista Ivan Lessa, ao estar de volta ao Rio de Janeiro, depois de 28 anos de ausência. Aprendi como vive e trabalha Guilherme Guimarães, o estilista das noivas, e como foi que um jornalista americano tornou famoso um tal de Fidel Castro.

Soube também que Bertold Brecht não era "flor que se cheire". Li sobre o papagaio, animal nacional, sobre o turismo na Molvânia (que não existe, mas poderia existir) e sobre o hipopótamo. Também li uma breve ficção de Rubem Fonseca.

Um leitor dirá: "Legal, você se divertiu à beça, mas, logo neste momento da vida nacional, cadê as coisas "sérias", cadê a política?". De fato, a revista oferece um portfólio de fotografias de homens políticos, surpreendidos naqueles instantes em que, por acaso ou por descaso, suas máscaras vacilam.

Mas, para nosso leitor hipotético, isso não bastará. Ele insistirá na sua exigência, parecido com aqueles pacientes que, no consultório do terapeuta, sentem-se envergonhados ao falar das "bobagens" de seu dia-a-dia, como se seu cotidiano concreto não merecesse sua própria atenção e ainda menos a atenção do terapeuta.

Ora, na "Piauí", não há editoriais nem opiniões. Pela qualidade e pelo charme dos textos, a "Piauí" rivaliza com a "New Yorker", que a inspira.

Mas, embora eu seja um leitor inveterado da revista nova-iorquina, foi lendo a "Piauí" que entendi a relevância secreta do "novo jornalismo": ela não está no "subjetivismo" do repórter (que manifestaria seus estados de ânimo), mas no interesse pela vida concreta.

Não sei por que os colegas escolheram "Piauí" como título da revista, mas pensei o seguinte: não sei quase nada do Piauí, sei apenas que a capital é Teresina e acho o nome familiar e bonito (me faz pensar numa mulher simpática e conversadeira).

Agora, graças à "Piauí", sei que, desde 2005, em Teresina, há adolescentes praticando o badminton. É uma notícia sem importância? Não concordo, pela mesma razão pela qual acho que a chegada da "Piauí" é um evento político.

Os colegas da "Piauí", sem dúvida, acharão essa afirmação bombástica e retórica, mas fazer o quê? Aqui vai: a curiosidade e o carinho pelo cotidiano são os alicerces de qualquer política que não seja só vociferação. A condição básica de uma convivência democrática é que se torne relevante a variedade das vidas concretas, que são nosso Piauí, nossas terras desconhecidas ou silenciadas.

A "Piauí" nos traz esse Piauí, pelo Brasil afora. Considere "As Torres Gêmeas", de Oliver Stone. Alguns desdenharam o filme porque esperavam algo diferente: interpretações, quem sabe conspiratórias, dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001 ou meditações sobre a perfídia da Al-Qaeda ou do atual governo dos EUA, tanto faz.

Ora, Stone contou a história de dois policiais enterrados nos escombros e da espera de suas famílias. Ele chamou isso de "As Torres Gêmeas", como se, naquele evento que alterou a cara do mundo, os fatos mais importantes fossem duas vidas concretas, duas vidas que, em geral, ninguém vê. Essa é a grandeza do filme.

"A Vida que Ninguém Vê" (editora Arquipélago), aliás, é o título de um livro imperdível de Eliane Brum, jornalista (hoje, da revista "Época").

É uma coletânea de relatos da vida cotidiana e miúda, escritos em 1999, para o jornal "Zero Hora". Eliane Brum é uma extraordinária repórter do Piauí de todos os dias.

12 outubro 2006

Outdoors ou não


Odiando a publicidade, tentamos exorcizar a futilidade de nosso próprio consumismo
NUMEROSOS LEITORES me escreveram comentando minhas últimas colunas, nas quais tratei do vídeo de Daniella Cicarelli e da nova lei da Prefeitura de São Paulo, que proíbe os outdoors publicitários no município. Tento responder.

Sobre o vídeo, uma observação: concordo, transar no meio da praia constitui uma ofensa ao pudor de quem não está a fim de assistir ao espetáculo. Ora, no meio da praia, Daniella e seu namorado só se beijaram e abraçaram. Como assinala o vídeo, o resto ocorreu numa área afastada: uma teleobjetiva foi necessária para filmar o casal. Imagine que, com um telescópio, você espie uma transa que acontece num prédio situado a 200 metros de sua janela. Você se sentirá insultado pela "exibição"? "Fala sério!"

Mas quero voltar à nova lei da Prefeitura de São Paulo e evitar alguns mal-entendidos (enviarei a íntegra da lei aos leitores que a solicitarem).

1) Acharia ótima a idéia de uma regulamentação básica dos outdoors publicitários (de sua localização, de seu tamanho etc.), mas a lei não propõe uma regulamentação: ela decide a abolição de todos os outdoors.

Quanto aos "anúncios indicativos" (o letreiro com o nome de uma loja, o programa de um teatro etc.), ela propõe uma regulamentação tão complexa que eu não consegui estabelecer se a padaria de minha esquina deverá ou não reformar seu letreiro. Aviso: a complexidade das regulamentações é, tradicionalmente, um convite à corrupção; quando ninguém entende direito o que pode e o que não pode, alguém acaba pagando para que o deixem em paz.

2) No caso dos anúncios publicitários, a lei funciona exatamente como a repressão psíquica. Por não querer ou conseguir diferenciar, ela proíbe tudo (é o abc do sintoma neurótico: para coibir minha "devassidão" sexual, quero mesas e cadeiras sem "pernas", nenhum objeto de "pau", nada de "sainha" nas camas...aliás, "cama" já é uma palavra suspeita).

Por outro lado, a lei (que projeta melhorar a paisagem urbana) propõe uma diversão: proíbe uma coisa para que a gente se esqueça de outras (que, no caso, dependem do poder público).
Espreitando a aparição de um dirigível publicitário (que será proibido), talvez você não veja o incrível emaranhado dos fios das ligações elétricas que "ornamentam" nosso céu ou não perceba a nuvem de poluição que dá sua cor inconfundível ao pôr-do-sol paulistano. Indignado com o anúncio de um reparador de cadeiras, talvez você não note o estado deplorável dos canteiros.
Uma conseqüência, não desejada pelo autor da lei: sem letreiros luminosos e holofotes, perceberemos, isso sim, que a iluminação pública de São Paulo é assustadoramente fraca.

Percorra a pé, de noite, a av. Faria Lima, vindo da Tabapuã em direção ao Oeste; entrando à direita, na luz dos restaurantes da rua Amauri, sua pressão arterial melhorará singularmente.

4) Alguns leitores se preocupam com nossos edifícios históricos. É estranho: nunca vi outdoors publicitários escondendo o Municipal, a Pinacoteca ou a Estação da Luz. Em compensação, pelo que entendi, o Masp não poderá mais anunciar suas exposições temporárias com megatelões laterais que chamem a atenção de quem transita de carro pela Paulista.

5) A implementação da lei é prevista com total descaso pela vida de muitos cidadãos. Em três meses, sem transição, uma indústria de serviços será desmantelada (com a perda de milhares de empregos), aproximadamente cinco mil táxis não disporão mais de uma pequena renda mensal suplementar e por aí vai.

6) É possível que a aprovação entusiasta da lei por muitos comentadores seja inspirada por princípios estéticos sóbrios e adversos ao "pop". Essa discussão fica para outra vez.

Mas suspeito que a iniciativa conte sobretudo com uma antipatia pela publicidade, uma ojeriza de bom-tom, que vê nos outdoors o símbolo (ou, pior, a causa) de nossa frivolidade (e de nossa "massificação", acrescentam alguns): tirem os outdoors e seremos curados de nossa vontade de cuecas de luxo, voltaremos a pensar em coisas importantes, belas e generosas. Ou seja, suspeito que odiemos, na publicidade, a futilidade de nossos próprios desejos. E a lei nos agrada com a ilusão de que exorcizamos, enfim, o consumismo (o qual, claro, não é parte da gente, mas um demônio que nos possui).

Parodiando o marquês de Sade: "Paulistanos, mais um esforço para sermos revolucionários".

05 outubro 2006

Av. Faria Lima, Berlim Leste

Graças a uma nova lei da Prefeitura de São Paulo, logo viveremos felizes em Berlim Leste

MINHA PRIMEIRA viagem a Berlim foi no começo dos anos 70, com um grupo de amigos militantes de esquerda.

Para quem vinha da Europa Ocidental, Berlim Leste era estranhamente monocromática. No fim do dia, a débil iluminação urbana instaurava uma penumbra amarela e opressiva: era a Viena de Orson Welles no "Terceiro Homem", sem o charme do claro-escuro. Pensávamos: os "camaradas" não vão desperdiçar watts para dar à cidade um ar de festa, precisam construir o socialismo e deixar a força para as fábricas. Não é?

Alexanderplatz, com a sua Fonte da Amizade Internacional e o palito da torre da TV, parecia-nos sinistra.

Mesma coisa com Unter den Linden, apesar de nossas lembranças literárias. Alguém comentou: "Se ao menos houvesse letreiros luminosos e anúncios publicitários". Era uma constatação envergonhada: afinal, aquela iluminação parcimoniosa e a "sobriedade" da paisagem urbana deviam ser um ato de acusação contra a frivolidade do Ocidente. Ali, o pessoal se dedicava a uma tarefa séria e grande: tratava-se de construir uma sociedade em que cada um pudesse cuidar não do que ele tinha ou não tinha, mas de sua "essência". Nós, "alienados", sentíamos nostalgia da proliferação de outdoors e holofotes da Kurfürstendamm.

Voltamos para o Oeste no meio da segunda noite, com uma sensação de derrota, e ficamos passeando e conversando ao redor da estação do metrô Zoo, até o dia nascer. Era um bom lugar para meditar sobre a leviandade do Oeste, onde nos sentíamos em casa, e a tristeza do Leste, do qual acabávamos de fugir (como muitos alemães, mas sem correr os mesmos riscos). De um lado, uma idéia e um projeto só. Do outro, uma confusão de objetos e superfluidades. Descobrimos que, entre Alexanderplatz e Zoo, preferíamos Zoo, com sua mistura de desejos de consumo e vidas perdidas.

Anos mais tarde, ao chegar ao Brasil pela primeira vez, a iluminação duvidosa das ruas evocou, na minha memória, a penumbra de Berlim Leste. Com esta (grande) diferença: a alegria que pipocava nas luminárias caóticas de barzinhos, armazéns e propagandas vistosas, embora curiosamente "démodées". Aparte: a escuridão das ruas não era sinal de escassez, mas de menosprezo pelo espaço público (as ruas eram escuras, mas as casas dos amigos que me hospedavam brilhavam como árvores de Natal).

Pois bem, o prefeito e a Câmara dos Vereadores de São Paulo acabam de aprovar uma lei para melhorar a paisagem urbana. A partir de janeiro, sem mais nem menos, "fica proibida, no âmbito do município de São Paulo, a colocação de anúncio publicitário nos imóveis públicos e privados, edificados ou não". A maioria dos comentaristas aplaude: a ganância da iniciativa privada parará de desfigurar nossa cidade. Entendo, mas fico perplexo.

A Folha de quarta-feira retrasada publicou, em primeira página, a fotografia de um trecho da avenida Faria Lima em seu estado atual e uma fotomontagem da prefeitura que mostra o mesmo trecho assim como será, uma vez a lei entrada em vigor: é a Faria Lima de Berlim Leste. Se a lei não instaurar apenas um rápido intervalo para reinventar uma nova e melhor presença de holofotes, letreiros e outdoors, viveremos em Berlim Leste, com a desvantagem de não ter um sonho (ou pesadelo) utópico para justificar a monocromia e a penumbra de nossa cidade. Tudo bem, quando a gente não agüentar mais, restará passear pelos shopping centers, que permanecerão como ilhas de uma estética que não despreza o caleidoscópio desordenado dos desejos que é nossa "essência", fútil, mas (é sua vantagem) volúvel e plástica.

Ninguém parece se preocupar com a perda cultural que seria produzida pelo sumiço das propagandas. Somos uma sociedade de indivíduos. Não temos em comum nem uma fé nem uma tradição coesa.

Compartilhamos dois repertórios: o de nossos sonhos (as ficções, as músicas etc.) e o de nossos desejos desordenados, cujos caminhos coletivos aparecem, por exemplo, nas mil seduções dos anúncios que decoram o espaço no qual vivemos juntos.

Se você não acredita que esse segundo repertório possa ser uma parte relevante de nossa cultura e de nossa história comuns, faça uma experiência simples: folheie com amigos o maravilhoso "Almanaque dos anos 70", de Ana Maria Bahiana (Ediouro).

28 setembro 2006

Um filme de amor

O interesse pelo vídeo de Cicarelli revela que somos sobretudo frustrados no amor

À FORÇA de receber links para o vídeo de Daniella Cicarelli, acabei dando o clique e assisti ao filme.

São quatro minutos e meio, editados a partir de duas horas de gravação e entrecortados por subtítulos, que introduzem diferentes momentos do convívio do casal. Os subtítulos são em castelhano.

Normal, visto que os fatos aconteceram na Espanha, e o "paparazzo" era espanhol. Mas as frases, numa língua estrangeira e próxima, facilitam, para o espectador brasileiro, uma atitude irônica e zombadora, como se pertencessem a um português macarrônico.

De fato, nas conversas destes dias, o vídeo é sempre evocado com um tom maroto e, sobretudo, burlesco.

À primeira vista, o cômico parece servir para que o espectador esqueça a posição (incômoda e envergonhada) que ocupa: a de uma criança com o olho colado no buraco da fechadura ou, pior, a de um adulto salivando à vista de frutos proibidos.

Digo logo: suspeito que o cômico, neste caso, proteja o espectador de um outro incômodo, maior e, de certa forma, mais triste.

Falando em frutos proibidos, é importante salientar que o vídeo não é nada "ousado". Um sujeito que estivesse procurando por pornografia na internet certamente o descartaria sem hesitação e encontraria, com facilidade, imagens bem mais explícitas.

Alguém dirá que o interesse pelo vídeo depende unicamente do fato de que uma "celebrity" seria assim "exposta". Os títulos (infames) que acompanhavam os e-mails com o link iam nesse sentido. Algo assim: olhe só, Fulana está "dando" na praia... Ou seja, os brasileiros seriam fascinados pela "descoberta" de que uma "celebrity" e um lindo moço se desejam, beijam-se, acariciam-se etc. Essa cena nos ofereceria a certeza confortante de que os deuses do Olimpo não são muito diferentes da gente. Seria um pouco como uma foto de Lula ou de Alckmin mordendo um sanduíche cheio de mostarda e ketchup ou entrando com urgência num banheiro. "Te peguei!".

Pois é, não acredito em nada disso.

Por duas razões.

Primeiro, o vídeo nos mostra um casal que não tem nada de "jet-set". Eles não estão num iate na Sardenha nem numa enseada de sua ilha privada. Estão numa praia qualquer.

Tomam um refresco, comem um sorvete, tiram aquela foto que todos já tiramos, esticando o braço e recuando as cabeças para pegar o sorriso dos dois. Há um momento em que a moça puxa os cotovelos do moço para que ele a abrace; o gesto é comovedor de tão familiar.
Segundo, o distanciamento (facilitado pelos subtítulos irrisórios) mostra o seguinte: o espectador se arma de uma boa pitada de cômico para encarar uma visão que, sem isso, poderia magoá-lo (em geral, rir é um jeito de afastar de nós algo que preferimos ignorar). E acontece que, neste caso, o que queremos afastar certamente não é uma extravagância sexual, explícita ou implícita, pois o vídeo não é de sexo; é um vídeo de amor, um excelente vídeo de amor. Ele poderia ou deveria ser proposto como exemplo nas escolas de cinema, não por suas qualidades técnicas, mas porque é raro que os cineastas consigam mostrar tão bem os gestos do desejo entre duas pessoas que se gostam muito e que se amam (que seja por uma semana, um ano ou uma vida, tanto faz).
A delicadeza dos beijos, dos toques, dos abraços do casal falam de um momento de felicidade amorosa que é o verdadeiro "escândalo" do vídeo. É contra essas imagens de amor que o título chulo e os subtítulos irônicos protegem o espectador, guiando-o para que se convença de que ele está assistindo a alguma devassidão ou se divertindo ao constatar que uma "celebrity" fez "aquilo" que nem a gente.

Sem esse desvio da atenção, o vídeo seria, para quase todos os espectadores, tocante e talvez intoleravelmente triste. Por quê? Simples: alguns podem ser frustrados no sexo, outros podem ser invejosos e estar a fim de dar um pontapé nos pedestais que eles mesmos erigem, mas muitos sentem a falta da delicada intimidade do desejo sexual quando ele acontece entre dois que se gostam e se amam -muitos são frustrados no amor.

Com a ajuda de título e subtítulos, em suma, o tom burlesco dos comentários destes dias serve para que a gente não perceba o que, de fato, o "paparazzo" filmou: uma cena que, ao ser enxergada, produziria em nós a descoberta dolorosa de nossa carência. Pois não se trata de um momento de sexo, mas de uma tarde de amor.

21 setembro 2006

Confusões morais perigosas


O que importa é saber se houve crime; tanto faz que o criminoso seja ou não parecido conosco
PAULO BETTI declarou que não se faz política sem pôr "as mãos na merda". Pode ser, mas há várias maneiras de manipular excrementos: por exemplo, podemos espalhá-los pelas paredes ou enfiar as mãos na massa para desentupir privadas. Não é a mesma coisa.

Seja como for, a declaração de Paulo Betti teve sucesso a tal ponto que um leitor, Lauro Freire, comentou: "A Rose Marie Muraro escreveu um artigo na Folha em que, entre outras barbaridades, escreveu: "Ser moral dentro de um sistema imoral é legitimar a imoralidade". Hoje, o Zé Celso justifica o voto no Lula com coisas como "somos todos mensaleiros e sanguessugas". [...]

Enfim, acho o Zé Celso um cara legal, e Rose Marie também. Como o Boal e outros. Minha pergunta e tema: por que diabos esses caras estão falando essas coisas?". A finalidade das declarações citadas é, obviamente, política, ou seja, elas servem para minimizar os crimes cometidos por membros do governo e do Congresso. Mas me preocupa uma implicação do pensamento que elas expressam.

A lógica implícita é evangélica, numa extensão que inverte os termos habituais: como é que nos autorizaríamos a procurar a trava no olho do outro, se não vemos a palha que está no nosso? É verdade: se você roubou marmelada na infância, essa experiência deve lhe permitir "entender" um deputado sanguessuga ou um ministro corrupto. Ou seja, a "mente" criminosa não é totalmente estrangeira à nossa: podemos compreendê-la.

A partir do século 19, a psiquiatria e a psicologia invadiram os tribunais para mostrar a juízes e jurados que, por trás dos crimes, havia "o criminoso", que era, apesar de tudo, um semelhante. Compreendê-lo significava reconhecer uma circunstância "atenuante": "em situações análogas, eu talvez não tivesse agido de maneira diferente". Até aqui, tudo bem.

Acontece que (descoberta de Michel Foucault) essa atitude generosa também respondia à vontade de policiar o comportamento humano num mundo em que a norma religiosa não tinha mais valor de lei. Como assim?

A novidade da lei moderna é a seguinte: criminosos são os atos, nunca os sujeitos. Na hora de julgar, no tribunal ou no foro íntimo, o que importa é saber se o ato de Fulano é um crime; a pessoa Fulano é sem interesse. Essa mudança coloca um problema para quem gosta de ordem e controle (nada a ver com "ordem e progresso"), pois nossa lei proíbe uma série de atos, mas, quanto ao resto, deixa cada um livre para se comportar como ele bem entende.

É aqui que se revela a "utilidade" da consideração da pessoa do criminoso, que foi trazida, simpaticamente, para desculpá-lo (ao menos, em parte). Funciona assim: se, na hora de julgar, considero o criminoso (sua pessoa), e não seus atos, não vejo por que, na hora de reprimir, eu consideraria apenas os atos criminosos (como manda a lei), e não as pessoas.

Eis um bom exemplo. O presidente Lula saiu em defesa do senador Suassuna afirmando que ele é "leal" e tem comportamento "decente". José Alencar defendeu Freud Godoy por ele ser "uma pessoa correta". Esses comentários amigáveis não nos dizem se foram cometidos ou não atos ilegais. Se essas declarações valessem como defesas, sua implicação seria a seguinte: a culpa não é a de "sanguessugar" dinheiro público, mas a de ser desleal, incorreto ou indecente.

De repente, o que está em jogo é nossa liberdade, nada menos. Pois, se declarações como a de Lula e de Alencar constituíssem uma defesa, criminosos seriam não os atos (desconsiderados nas declarações), mas os comportamentos de quem não é "decente" - por exemplo, de quem se masturba, coleciona pornô, come sem garfo, é gay etc.

"Entender" o sujeito que cometeu um crime (porque todos teríamos uma disposição a cometer atos análogos) é uma operação cognitiva e afetiva simpática, que ameniza nossa severidade. Mas essa atitude tem pouco a ver com o funcionamento da lei ou da moral, a não ser que a gente queira viver um pesadelo repressivo em que os objetos do julgamento legal ou moral não seriam os atos, mas as pessoas.

Em suma, a aparente clemência de quem invoca que somos todos "pecadores" tem, como avesso, uma Justiça e um pensamento moral que, em vez de perseguir crimes e pecados, preferiria vigiar o comportamento de todos nós, supostamente criminosos e pecadores.

31 agosto 2006

O voto radical chique


A escolha do candidato pode ser apenas uma questão de imagem do próprio eleitor

NA ÚLTIMA pesquisa de opinião, Heloísa Helena é a candidata preferida por 20% dos eleitores com ensino superior (na população em geral, ela é escolhida por 10% dos entrevistados).
Talvez a decepção com os escândalos do governo seja maior entre os sujeitos supostamente mais informados. Além disso, os eleitores que apostam em modelos centralizados (taxa de juros e de câmbio decididas politicamente, questionamento das privatizações etc.) são provavelmente mais numerosos entre os "cultos" e "pensantes", que sempre tendem a confiar firme no poder das idéias que eles acham certas (doa a quem doer). Mas há uma parte (pequena, imagino) desses 20% que parece preferir Heloísa Helena por uma razão mais pitoresca.

Encontrei vários paulistanos, de classe A para cima (com graduação completa), que anunciam seu voto em Heloísa Helena sem conhecer o programa político e econômico da senadora e, certamente, sem simpatizar nem um pouco com seu moralismo em matéria de costumes.
Saindo de um jantar em que duas comensais declararam seu voto pela senadora, um amigo comentou: "É a esquerda-caviar".

A expressão "esquerda-caviar" foi lançada na França, na época de Mitterand, para estigmatizar os gostos luxuosos de intelectuais, altos funcionários e simpatizantes do governo socialista: "São socialistas e comem caviar?".

Ora, contam que, um dia, um jornalista perguntou a Léon Blum (primeiro-ministro socialista francês nos anos 30): "Como o senhor pode ser socialista, visto que, por sua origem e cultura, seus gostos são afastados dos gostos do povo?". Blum teria respondido: "Sou socialista porque não gosto do povo". Antídoto contra o populismo: não somos socialistas por acharmos que a comida a quilo seja a melhor do mundo, mas por querermos que todos possam degustar a cozinha de Alex Atala.

Mas o fenômeno "HH xodó dos Jardins" não evoca apenas a esquerda-caviar. Em 1970, em "Radical Chique" (um dos ensaios fundadores do "novo jornalismo"), Tom Wolfe descreveu uma festa organizada por Leonard Bernstein (o compositor e diretor de orquestra) para levantar fundos em favor dos revolucionários das Panteras Negras. Convidar Stokely Carmichael ou Angela Davis e manifestar-lhes apoio era, para a "inteligentsia" nova-iorquina da época, uma excentricidade elegante.

Na festa radical chique, revolucionários e extremistas têm uma vantagem sobre capas Prada, bolsas Louis Vuitton ou vestidos Armani: eles odeiam seus anfitriões. É óbvio que é radicalmente chique usar, como cachecol, um bicho vivo e venenoso.

A turma radical chique:

1) evita pensar em soluções efetivas para os problemas do país (nada de discursos, que são chatos e estragam a festa);

2) curte as experiências exclusivas ("Sabe quem estava na minha festa?") e cultiva uma imagem aventureira de si mesma (a presença do convidado revolucionário afirma que o anfitrião, contra todas as aparências, não é um integrado);

3) cultiva o autodesprezo para absolver-se de sua culpa social (no caso, nem preciso me odiar por ser integrado, pois meu convidado se encarrega disso). Na falta de Panteras Negras, a turma radical chique pode escolher candidatos intelectuais da pesada (melhor se forem ex-exilados). Fernando Henrique e José Serra, em outras épocas, poderiam ter sido xodós do radical chique brasileiro; ninguém leria seus livros, mas seria elegante tê-los numa festa, também porque, supostamente, eles desprezariam a futilidade de seus anfitriões. Sem dúvida, a turma radical chique gostava do Lula barbudo e escabelado do começo. Hoje, perdida a aparência de metalúrgico antiburguês, Lula não é mais chique.

Quanto a Alckmin, médio, invisível, animado por lugares comuns religiosos, ele é tudo o que o radical chique não quer ser ou avizinhar na vida.

Heloísa Helena é, hoje, a escolha perfeita. Ela odiaria servir de decoração na festa radical chique, mas, por isso mesmo, é a convidada ideal.

A turma radical chique deve ser eleitoralmente pouco significativa, mas ela nos lembra que, numa sociedade narcisista, a escolha do candidato é também uma questão de imagem. De imagem, quero dizer, do eleitor: alguns decidem seu voto como escolhem sua roupa.

PS. A edição mais recente do ensaio de Tom Wolfe está em "Radical Chique e o Novo Jornalismo", livro lançado em 2005, pela Cia. das Letras. O leitor também pode se divertir (bastante) com os quadrinhos de Miguel Paiva ("Livro do Pensamento da Radical Chic", Record).



24 agosto 2006

O espírito das casas

O espaço no qual circulamos é um dos grandes protagonistas de nossas vidas

NUMA MESMA tarde, assisti (com prazer) a duas estréias da sexta passada: uma história de horror, "Almas Reencarnadas", de Takashi Shimizu, e uma história de amor, "A Casa do Lago", de Alejandro Agresti.

Os dois filmes têm em comum um clima sobrenatural. No primeiro, um diretor de cinema filma a história de uma série de assassinatos que aconteceram num hotel 35 anos antes; com isso, o passado se desperta. No segundo, um homem e uma mulher se correspondem e se amam: eles estão vivendo em épocas diferentes (ele, em 2004; e ela, em 2006), mas na mesma casa.

Interessei-me pelos filmes porque gosto daquela tradição narrativa na qual o espaço concreto, em que os personagens vivem e circulam, é por sua vez uma personagem importante da história. No primeiro filme, o hotel (ou sua reconstrução no estúdio) parece impor a repetição do passado. No segundo, a casa do lago, na qual, em épocas diferentes, ambos os protagonistas escolhem viver, é a ponte entre eles, o lugar onde se abre uma brecha no tempo. Em geral, subestimamos o espaço concreto no qual vivemos. Não acreditamos que sentimentos, afetos e relações dependam também do cenário concreto de nossa vida.

Ora, os militantes do espírito new age adotaram a arte do feng shui para corrigir as energias negativas de casas e escritórios. Mas não é preciso disso para entender que o espaço no qual moramos nos determina e nos expressa. Que seja ou não escolhido por nós, ele diz qual é a convivência com os outros que desejamos ou que nos permitimos: banalmente, o tipo de mesa (não só seu tamanho) diz se queremos jantar em companhia ou cada um no seu canto, a disposição do sofá diz se preferimos conversar com os amigos ou parar na frente da televisão, e por aí vai. O mesmo vale para o espaço urbano: temos a vida pública que nossas cidades nos impõem. Quando, numa mudança, estamos apostando no futuro, sonhamos com uma casa e uma decoração desenhadas pelo próprio Walter Gropius, modernistas, limpas, funcionais, despojadas.

Tempo atrás, Ana Verônica Mautner, numa crônica do caderno Equilíbrio, da Folha, comentou a proliferação de caçambas pelas ruas de São Paulo: reformamos custosamente até os apartamentos que alugamos porque queremos fazer tábula rasa na hora de mudar de casa, queremos evitar que nossos novos caminhos sigam as passagens que foram desenhadas no chão pelos hábitos de quem lá morou antes da gente.

Uma vez instalados, esvaziamos as caixas de nosso passado e nos tornamos, aos poucos, Biedermeier e kitsch, enchendo o espaço de móveis que limitam as potencialidades da casa e de lembranças que nos forçam a continuar sendo quem sempre fomos (a foto do casamento dos avós, a coleção de pedras que nosso filho juntou no primário, um quadro horrendo que compramos na lua-de-mel). Um bom arquiteto ou decorador, ao visitar nossos aposentos, deveria poder descobrir as grandes linhas de nossa vida relacional: talvez ele pudesse até enxergar, atrás da vida que temos, a vida que desejaríamos ter.

Aviso: se seu parceiro ou sua parceira muda de repente a disposição dos móveis de casa, não é apenas de estética que se trata. Nas minhas gavetas tenho alguns romances inacabados. Um deles é a história de alguém que compra uma casa cujos antigos donos saíram fugindo, sem nem fazer as malas.

O comprador deixa tudo assim como está (a roupa espalhada, a forma oca dos corpos nas camas desfeitas, os pratos do almoço interrompido etc.) e se dedica a adivinhar cada detalhe da existência de seus predecessores. Claro, comecei esse romance logo após a morte de meus pais. Isso me leva de volta ao clima comum aos dois filmes: não sou muito fã do sobrenatural, mas confesso o seguinte.

Numa casa que já abandonei, em Brookline (EUA), eu tinha construído um quarto-biblioteca que evocava, descobri depois, a biblioteca da casa de minha infância. Um dia, Maria, a jovem mulher que nos ajudava a cuidar da casa (e que dizia ser dotada de poderes mediúnicos), anunciou: "Doutor, seu pai está na biblioteca". "Meu pai está morto", respondi. Fui com ela até a biblioteca.

"Ele está lá, sentado", apontou Maria. Eu não via nada e não acredito em espíritos, mas perguntei, sem brincadeira nenhuma: "Poderia falar com ele?". Maria: "Não, mas lhe garanto que ele está sorrindo, feliz".

17 agosto 2006

"Anjos do Sol"


"Os nossos" apenas chegam no cinema de Hollywood. É só um truque de marqueteiro?

ESTRÉIA AMANHÃ "Anjos do Sol", de Rudi Lagemann.

O filme conta a história de Maria, uma menina do sol que se torna menina da noite. A cada ano, centenas de meninas, mal chegadas à adolescência, são vendidas pelos pais, leiloadas a notáveis famintos de carne virgem (carne do sol, não é?) e entregues a cafetões que as escravizam pelas zonas rurais e pelos garimpos do país.

A existência desse pequeno exército foi denunciada pelo dossiê "Crianças da Amazônia" e, logo, em 1991-92, pelas reportagens de Gilberto Dimenstein nesta Folha, que confluíram no livro "Meninas da Noite". Agora, as meninas da noite têm uma cara em nosso imaginário coletivo: a cara de Maria.

"Anjos do Sol" é terno e brutal, narrado com simplicidade e sem simplismo. Os atores são notáveis: além de Fernanda Carvalho (Maria), é preciso mencionar Antônio Calloni (Saraiva, o cafetão do garimpo), Bianca Comparato (Inês) e Mary Sheila (Celeste). A história prende, comove e indigna. Na saída do cinema, fiquei questionando um pensamento que me acompanhou ao longo do filme. Enquanto assistia a "Anjos do Sol", "sabia" que ninguém ajudaria Maria e suas companheiras. Um trunfo final da justiça me pareceria "falso". No entanto, eu não parava de esperar que, naquele garimpo perdido, aparecesse um Bruce Willis que esvaziasse sua Colt 45 automática na cara do Saraiva e do torvo guardinha sentado na entrada do bordel com um calibre 12 na mão.

Esperava pela chegada de John Wayne e do sétimo regimento de cavalaria, dos médicos de "ER", de Arnold Schwarzenegger ou da turma de "Law and Order". O Inspetor Clouseau teria sido suficiente. CADÊ OS NOSSOS? Fora a irritação contida de um agente de saúde reduzido ao silêncio pelas ameaças veladas de Saraiva, não chegou ninguém. Você, leitor, dirá que olho para o mundo pelos moldes colonizadores das narrativas hollywoodianas típicas.

Concordo. E admito que as narrativas hollywoodianas parecem ser construídas para gratificar nosso narcisismo: mesmo nas piores, podemos nos identificar com o herói salvador que nunca falta no elenco. Mas essa retórica hollywoodiana talvez não seja apenas estratégia de marketing. Explico. Em "Anjos do Sol", há uma longa fila de adultos que têm o destino de Maria nas mãos: família, intermediário, transportadores, cafetina e cafetão, capataz, deputado, fazendeiro com seu filho adolescente, garimpeiros, agente de polícia vendido. Como disse, parecia-me verossímil que nessa fila não houvesse ninguém para dizer: "Basta".

Não penso que, em outras latitudes, Maria teria tido mais chances de esbarrar em alguém que, além de se indignar, decidisse arriscar, agir, se meter. Ao contrário, quem leu "Meninas da Noite" lembra que, no fim, Dimenstein conseguiu levar a Polícia Federal até o bordel. Alguém, um jornalista, não se contentou em registrar os fatos e se indignar: tomou posição, disse "não" e desfez uma corrente de perversidades. Por que, então, ao assistir a "Anjos do Sol", parecia-me verossímil que ninguém resistisse? A sensação de verossimilhança (como já notou Aristóteles) não depende dos fatos e de sua probabilidade.

Ela é, por assim dizer, o efeito de uma expectativa cultural. Para nós, no caso, é mais verossímil uma narrativa sem Dimenstein chegando de helicóptero. Alguém dirá: "Melhor assim, não estamos aqui para gratificar nossos sonhos de glória, mas para enxergar a feiúra do mundo". Legal, mas pergunto: a chegada dos "nossos" no cinema hollywoodiano é só um achado de marketing para alegrar o público? Ou será que corresponde à expectativa cultural de que o homem comum se sinta compelido a erguer a cabeça e encarar o que lhe parece errado?

O final hollywoodiano pode parecer inverossímil, feito para nos seduzir com o devaneio de nosso próprio heroísmo. Mas seu contrário talvez alimente uma cinismo das belas almas, em que a indignação importa mais do que a ação. Um olhar pretensamente mais "maduro" e menos "alienado" por finais felizes pode ser a armadilha de uma disposição cultural em que a indignação serve sobretudo para inocentar: indignei-me, logo, fiz minha parte.

E os atos, cara pálida? Cá entre nós: Inês teria gostado caso, na ausência de Bruce Willis, ao menos o helicóptero de Dimenstein chegasse a tempo.

10 agosto 2006

A face grotesca do poder

A truculência do poder serve para confirmar nossa submissão e nossa dependência

APESAR DAS numerosas exceções, o conjunto de nossos governantes e representantes eleitos parece encenar teimosamente uma farsa grotesca de corrupções baratas (ou caras), de poltronices, de ignorâncias arrogantes e, enfim, de desprezo convicto pelo bem público (ou seja, pelo nosso bem).

Aparentemente, os que escolhemos para nos governar e nos representar não são os melhores entre nós. Será que, por alguma razão misteriosa, elegemos quase sistematicamente os piores? Não compro a tese segundo a qual governantes e representantes seriam o retrato de seus eleitores (portanto, teríamos o governo e o congresso que correspondem ao nosso feitio). Ou seja, não acho que a farsa em questão seja a versão pública da debilidade moral dos cidadãos em sua vida privada.

Não acredito que "os brasileiros" (por alguma herança infeliz) sejam adequadamente representados por trapaceiros que vendem e compram ambulâncias. Prefiro me perguntar: de onde vem a necessidade (ou a vontade) de instituir e manter um poder propriamente grotesco? Na primeira aula de seu seminário de 1974-75, "Os Anormais" (Martins Fontes, 2005), Michel Foucault afirma que a eventual infâmia dos governantes não é um contratempo do poder, mas um mecanismo essencial ao seu funcionamento.

Foucault nota que, desde a antigüidade (o Império Romano é uma mina de exemplos), é freqüente que os governantes sejam teatralmente desqualificados. Ora, o antropólogo Pierre Clastres ("A Sociedade contra o Estado", Cosacnaify, 2003) entendia que, nas sociedades ditas primitivas, a demonstração da indignidade do governante era um ritual necessário para limitar os efeitos do poder: que o soberano seja (ou apareça como) um idiota ou um pilantra, eis que nos daria, a nós governados, uma certa independência. Seríamos mais livres porque obedeceríamos, no mínimo, com cautela. Foucault pensa, ao contrário, que a indignidade do poder serve para demonstrar que ele é incontestado.

Segundo Foucault, o governante e o poderoso grotescos (desde o burocrata caspento assinando ordens de deportação até o imperador tocando música enquanto contempla o incêndio de sua cidade), justamente por serem indignos, confirmam nossa inércia diante do poder, seja qual for a caricatura que o encarna. Tendo a concordar com a hipótese de Foucault. Tanto faz que o lado grotesco do poder seja alimentado por nossas escolhas eleitorais ou revelado por nossa capacidade crítica. De qualquer forma, a infâmia de quem governa nos serve, sobretudo, para celebrar o caráter inelutável de nossa submissão, para afirmar que, mesmo assim, continuamos súditos. Como entender essa estranha vontade de sermos governados por mediocridades truculentas? Freud talvez possa ajudar.

É freqüente que os pré-adolescentes passem por um longo momento em que o pai (ou outro homem supostamente desejado pela mãe) parece-lhes grotesco, nojento. De repente, os jovens descobrem que ele cheira mal ou come de boca aberta com barulhos repugnantes: sua presença se torna vulgar e abusiva. Esse momento da pré-adolescência (que, muitas vezes, prolonga-se na vida adulta) pode ser entendido e vivido como uma declaração de independência: na direção otimista apontada por Clastres, os meninos afirmariam assim que o pai não é seu único modelo, e as meninas afirmariam que há outros homens, diferentes do pai, que elas podem amar.

Mas essa declaração de independência esconde um ato de submissão: ambos, meninas e meninos, preferem abandonar o corpo materno nas mãos de um "gorila", porque é mais fácil e seguro reconhecer uma potência paterna que seja irresistível e truculenta. Os sujeitos que, de uma maneira ou de outra, permanecem presos nessa experiência pré-adolescente pagam um preço: no melhor dos casos, eternizam esse momento numa fantasia erótica de submissão a estupradores brutais.

Mais freqüentemente, sem prazer nenhum, eles engrossam as fileiras dos que passam a vida baixando a cabeça (das vítimas de violência doméstica que não saem de casa até aos funcionários exemplares que dizem sempre sim). Em outras palavras, se, como propõe Foucault, não sabemos nem queremos nos livrar da face grotesca do poder, se fazemos o necessário para perpetuá-la, talvez seja porque um pai abusivo nos parece melhor que um pai fraco e, sobretudo, melhor que pai nenhum.

03 agosto 2006

Estamira e "Transamérica"

Odiamos o outro não por ele ser diferente, mas para ignorar que ele é parecido conosco

DURANTE QUATRO anos, Marcos Prado escutou Estamira, uma senhora de mais de 60 anos que vivia entre seu barraco (habitado e cuidado com a dignidade devida a uma casa) e seu lugar de trabalho (um aterro de lixo, onde ela passava dias e noites a fio).

Dessa experiência, Prado fez um filme, "Estamira", que é um extraordinário documento sobre a humanidade da loucura. Ele nos apresenta o território de Estamira (o mundo físico pelo qual ela anda), suas relações (de família e de amizade) e seu mundo íntimo, ou seja, o sentido que ela atribui ao seu ser.

Alguns psicólogos reconhecerão nessa tríade (mundo físico, relações e intimidade) as três categorias da psicologia existencial de Ludwig Binswanger. Pensei em Binswanger e na generosidade de sua clínica e de seu pensamento quando, comentando o filme, uma amiga e colega me disse: "Estamira é delirante, mas suas palavras, poéticas, fantásticas ou brutais, são coisas que ela diz não porque é psicótica, mas porque é ela, Estamira".

Que falemos lugares-comuns (como a maioria dos neuróticos) ou expressemos curiosas visões do mundo (como quem parece delirar), de qualquer forma, não há quadro clínico que possa (e deva) anular a unicidade de nossa presença no mundo, a dignidade do que se chamava, tempo atrás, nossa "pessoa". Marcos Prado permitiu que Estamira lhe (e nos) falasse porque quis e soube escutá-la como se escuta, em princípio, um semelhante. Com isso, o filme é absolutamente imperdível para quem, "psi" ou não, esteja disposto a se aproximar da loucura, ou melhor, a descobrir que o "louco" é estranhamente próximo da gente.

A cosmologia de Estamira (o além, o além do além, o mundo abarrotado que transborda) e sua religião (uma briga constante com Deus e com o Trocadilho, face diabólica e maldita do mesmo) não são menos verossímeis do que muitas de nossas crenças. A diferença é que nossas crenças são delírios que tiveram sucesso e ganharam credibilidade por serem compartilhados pela maioria.

Estamira (esse talvez seja o drama fundamental da loucura) deve inventar sozinha os meios de dar sentido à sua presença no mundo. Ela consegue essa façanha atribuindo-se o destino de ter de transmitir o que ela vê.

O Trocadilho, ao persegui-la, lhe deu uma missão, que é (como esperar outra coisa de um deus com esse nome?) um jogo de palavras: Estamira é esta mira, o olhar que tudo vê e tudo deve revelar. Missão cumprida, graças a Marcos Prado.

Corolário: quem não acredita na reforma psiquiátrica veja o filme e se pergunte: será que nossa sociedade pode tolerar a loucura só na margem extrema (o além do além) do lixão ou na clausura dos hospícios?

Quero mencionar um outro filme, antes que saia de cartaz. "Transamérica", de Duncan Tucker, é uma ficção e, à primeira vista, pouco tem a ver com "Estamira". Salvo que ambos os filmes nos forçam a descobrir destinos e jeitos de estar no mundo que são, no melhor dos casos, objetos de nossos olhares compassivos ou, mais freqüentemente, de exclusão, zombaria e ódio. O ódio, nesses casos, é o índice de uma cegueira proposital: odiamos o outro não por ele ser diferente de nós, mas para poder ignorar que ele é parecido conosco.

O herói (ou a heroína) de "Transamérica" é um transexual que, na hora em que obtém, enfim, o direito de ser operado e mudar de gênero, descobre que é pai de um filho adolescente. Difícil assistir ao filme sem entender de vez o seguinte: o drama de quem vive num corpo que lhe parece estrangeiro (por ser de um gênero no qual ele não se reconhece) tem pouco a ver com os avatares do desejo sexual. É um drama de identidade.

Algumas leituras para a fila do cinema. A Martins Fontes publica os seminários de Michel Foucault: no ano passado, "Os Anormais" e, neste ano, "O Poder Psiquiátrico". O Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos acaba de publicar "Política, Direitos, Violência e Homossexualidade, Pesquisa na Nona Parada do Orgulho GLBT São Paulo 2005", de Carrara, Ramos, Simões e Facchini. A pesquisa confirma que, em matéria de discriminação, o transexual, que discorda de seu próprio gênero, é a vítima preferida.

É difícil abandonar o conforto da crença de que nós somos os "normais". Mais difícil ainda é admitir que a anatomia de nosso corpo possa não bastar para nos dar a certeza de que somos homem ou mulher.

27 julho 2006

Segurança, melancolia e inércia

A visão melancólica do país e de nós mesmos nos torna inertes e um pouco covardes

NA FOLHA de 16 de julho, Marcelo Beraba, ombudsman do jornal, observou que a imprensa não soube se servir da crise paulista das últimas semanas para comparar e questionar as propostas de segurança pública dos candidatos ao governo do Estado e à Presidência. Talvez, segundo ele, a imprensa não dispusesse de "quadros com bons conhecimentos" na área.
Nestes dias, o "Observatório da Imprensa", de Alberto Dines, propôs uma pergunta aos internautas: "O combate à violência pode entrar na disputa eleitoral? Sim ou não?". A grande maioria (80%) optou pelo sim. Faz sentido: afinal, a segurança pública é uma preocupação crucial dos cidadãos.

Ora, no domingo passado, a Folha publicou uma comparação das opiniões sobre segurança pública de Serra, Mercadante e Quércia. A reportagem, de Lilian Christofoletti, tentava diferenciar as propostas, mas, à vista das respostas dos candidatos, a conclusão era que, em matéria de segurança pública, os três pensam de maneira parecida.

É lógico que seja assim. Há 15 anos, participo de encontros e congressos sobre segurança urbana. Escutei enfoques diferentes e discordâncias quanto à ordem das prioridades. Mas, no conjunto, chega-se, de qualquer modo, a uma lista com a qual todos concordam e que é mais que conhecida. A ponto que talvez o silêncio dos "experts" (do qual se queixa Beraba) seja, sobretudo, sinal de cansaço.

Hoje, em matéria de segurança pública, o problema não é inventar o que fazer. O problema é fazer o que sabemos que deve ser feito. A segurança pública não é (ou não é mais) um problema político. Os secretários de Segurança, estaduais e federais, não precisam mudar segundo as fortunas dos partidos; eles poderiam ser escolhidos por sua competência e mantidos no cargo como "técnicos", encarregados de implementar as medidas com as quais todos concordam. Por isso, aliás, na pesquisa do "Observatório", optei pelo "não".

Pergunta: se sabemos o que fazer, por que não acontece quase nada? Proponho mais uma explicação. A lista das ações necessárias para melhorar a segurança pública no país é sempre encabeçada por uma declaração geral do tipo: "A sociedade brasileira deveria se tornar menos desigual e, com isso, não produzir nem reproduzir exclusão social".

Não há quem discorde. Mas essa recomendação inaugural, fundamental e justa, regularmente lembrada quando é proposta uma ação concreta qualquer, acarreta consigo a sensação de um destino nefasto: injustiça e desigualdade são a herança que nos constitui, o nosso DNA. De repente, as outras recomendações da lista parecem esparadrapos cosméticos sobre uma ferida que não sara.

É um tipo de armadilha freqüente na nossa vida cotidiana: "Tenho 40 anos, não completei o colégio e não tenho futuro", "Tenho 60, e meu casamento de 30 anos está sem graça, agora é tarde", "Nasci no lugar e no momento errados", "Com os pais que eu tive, não adianta". Qualquer terapeuta sabe que, diante desses autodiagnósticos radicais, "totais", a primeira tarefa é a de decompor a massa amorfa do desespero até encontrar seus elementos e organizá-los no tempo e no espaço.

Na vida política não é diferente: uma visão global negativa desqualifica os esforços para mudar, que parecem fúteis esparadrapos. Somos fascinados pelas autodefinições (sobretudo pejorativas: "O Brasil é assim mesmo") e, com isso, preguiçosos na análise dos detalhes e na ação para alterá-los. Essa atitude melancólica exerce um forte charme, pois ela dá sentido aos nossos males e nos dispensa de pensar e agir: nossa dificuldade é inevitável, ela é nossa essência. A autodepreciação nos revela quem somos; ela nos resume e nos define. Com isso, ela também nos apazigua: por que lutar contra nosso "ser"? Melhor fazer de nossa vida um longo lamento.
À primeira vista, a queixa radical contra a história e o "espírito do povo" parece mais séria do que o trabalho de formiga de quem tenta alterar o que pode ser alterado. Mas a eterna reclamação de que "o buraco é muito mais em baixo" acaba nos tornando inertes e um pouco covardes.

PS. Boa notícia: vários leitores da coluna da semana retrasada me comunicaram que há duas (ótimas) naturezas-mortas de Morandi no MAC da USP, doações de Francisco Matarazzo e Yolanda Penteado.

20 julho 2006

Cadê os cidadãos de São Paulo?

O crime conta com a falta de espírito cívico. Seria boa oportunidade para desmenti-lo

NESTES DIAS de violência (que continuam em surdina), houve e há um grande ausente: nós, o povo de São Paulo. Claro, pedimos políticas e intervenções públicas à altura; segundo nossa inclinação, insistimos nos direitos da população carcerária ou na necessidade de uma repressão severa, mas tanto faz: em ambos os casos (que, aliás, não são contraditórios), ficamos em casa esperando que Deus nos acuda. Você perguntará: "Fazer o quê?".

Pois é, espanta-me que as grandes organizações da sociedade civil, os sindicatos, as igrejas, os partidos (indistintamente), as associações corporativas etc. não tenham convocado (nem planejem convocar, aparentemente) uma manifestação de massa, silenciosa, sem palanques, só para afirmar que, seja qual for a convicção política de cada um, as ruas da cidade são nossas, não da barbárie.

Somos capazes de fechar bancos, repartições e comércios para assistir a um jogo da Copa ou por medo do crime. Será que não saberíamos parar a cidade para proclamar que ela nos pertence?
Não seria um gesto retórico, sem conseqüência efetiva. Pergunte-se: o que o crime organizado espera de nós?

Assassinaram policiais e agentes penitenciários. Destruíram ônibus, caminhões da coleta do lixo, uma ambulância, agências de banco, lojas. Mas evitaram produzir a morte indiscriminada de cidadãos quaisquer. Duvido que haja, atrás dessa estratégia, uma preocupação com nossas vidas. Mas talvez haja, isso sim, uma tentativa de ganhar ou de não perder nossa "cumplicidade". É uma palavra forte?

Na quinta-feira passada, alguns usuários, irritados pela ausência de ônibus nas ruas, tentaram queimar os poucos que circulavam ("Se não há transporte, não há para ninguém", diziam). É a reação esperada pelo crime, uma reação que confirmaria nossa incapacidade de entender o seguinte: o que é "público" é nosso, as ambulâncias e os caminhões do lixo são nossos, os ônibus são privados, mas seu serviço é nosso, e o mesmo vale para bancos e lojas.

Quanto aos policiais e aos agentes carcerários, eles são, literalmente, "os nossos". Na noite de quinta-feira passada, passei de carro na frente do posto da PM da rua Jesuíno Arruda, no Itaim Bibi. Sete ou oito cones de plástico forçavam os motoristas a se afastar um pouco (dois metros) da calçada.

Fora isso, tudo como sempre. O edifício não tinha sido transformado em bunker fortificado com policiais armadíssimos espreitando pelas frestas de portas e janelas fechadas: três homens fardados estavam de pé, perto da entrada, atentos, mas tranqüilos naquele momento, sorridentes. Apenas carregavam suas armas ordinárias e vestiam o habitual colete à prova de balas.

Imprudência? Pode ser, mas eu fui tocado pela declaração de força e coragem, implícita na decisão de assegurar o plantão de sempre. O posto estava normalmente aberto para o serviço dos cidadãos de São Paulo.

Teria gostado que crianças estivessem comigo naquele momento, para que pudesse lhes mostrar os gestos, grandes e pequenos, que tornam e mantêm "habitável" nossa cidade, para que sentissem orgulho de "sua" polícia.

Na minha São Paulo ideal, aliás, uma outra coisa já teria acontecido. Com a ajuda dos grandes cotidianos e da mídia do Estado, o governador teria lançado uma subscrição pública para constituir um fundo de indenização para as famílias de policiais e agentes assassinados ou feridos.
Ele teria convocado um conselho de probos para administrar o fundo e distribuir rapidamente as indenizações. A imprensa publicaria a cada dia, em destaque, o valor acumulado pelas doações dos paulistas. O governo federal quer ajudar? Que uma medida provisória torne imediatamente dedutíveis do imposto (não do imponível, do imposto) as doações a esse fundo.

Como você acha que o crime organizado se sentiria num Estado e numa cidade em que milhões de cidadãos desfilassem pelas ruas afirmando sua vontade de viver sem medo? E num Estado e numa cidade em que os próprios cidadãos mostrassem sua gratidão cuidando das famílias dos que morrem no serviço da comunidade?

Os momentos de crise podem ser ocasiões de mudanças decisivas. Não tanto de legislação, mas, sobretudo, de espírito. E muitos de nossos males têm sua origem numa falta endêmica de espírito cívico. O crime conta com essa falta. Seria uma boa oportunidade para desmenti-lo.